terça-feira, 15 de dezembro de 2020

QUANDO OS DEUSES SE IRRITAM

 


Logo pela manhã, daquele domingo de Dezembro, quando chegámos ao alto de Fajão, lá mesmo no cume junto aos geradores eólicos, encontrámos uma Serra risonha e acolhedora, coisa que, naquela época do ano, raramente acontecia. A atmosfera estava límpida e o sol, que espreitava por entre nuvens dispersas, tornava a temperatura amena permitindo, assim, um olhar sobranceiro sobre os horizontes, de um lado, grande extensão do Vale do Ceira, do outro, de parte da barragem de Santa Luzia. Serra que, para além de nos arrebatar com as suas magníficas paisagens, também nos convidava para o exercício cinegético que, devido à pandemia e ao confinamento, só agora nos era possível retomar.

Assim, em função das boas condições que ali encontrámos e arrebatados pela paisagem, depressa abandonámos o automóvel, onde nos fazíamos transportar, prontos para a contenda. Munidos do material essencial e equipados com fato aligeirado, partimos, para mais uma jornada, calcorreando os montes serranos, em busca das perdizes bravias. No entanto, estávamos longe de imaginar o que a meteorologia nos reservava para esse dia. Se bem que os Deuses parecem reservar, sempre, o mau tempo para os dias de caça.

Por volta das dez horas, depois de termos percorrido mais de dois quilómetros, escalando rochedos e calcando tojos, carquejas e moitas, já em plena cordilheira do Açor, o Céu fechou-se rapidamente à claridade e em poucos minutos ficámos expostos à intempérie. Como que investido de uma imensa crueldade, o vento virou para nordeste fustigando tudo ao nosso redor e trazendo consigo denso nevoeiro que nos mergulhou na escuridão. No mesmo instante, as nuvens romperam-se parindo farrapos de neve que, aos poucos, iam pintando de branco o chão que pisávamos. Uma mudança brusca no tempo que, para além de nos dificultar a orientação, os movimentos e a respiração, também nos gelava o corpo.

Eu e o Mário, que era o amigo que me acompanhava nesse dia, não tínhamos dúvidas que, perante o quadro que nos envolvia, não seria fácil enfrentarmos a aridez daquela serra nua. Serra que, quando os Deuses se irritam, não deixa de ser madrasta com os incautos. Nada a que já não estivéssemos habituados. Em anos anteriores também nos deparámos com dias de tempo agreste, mas nada daquilo a que, agora, assistíamos. É preciso realçar que, a época do ano, a altitude e a imprevisibilidade da natureza naqueles montes, são determinantes na situação do tempo. Assim, mais uma vez, fomos surpreendidos pela repentina alteração climatérica que não nos permitiu chegar ao nosso abrigo sem passarmos por toda aquela adversidade.

Apesar da visibilidade reduzida pelo nevoeiro e da falta do agasalho apropriado para enfrentar o vento gélido, ainda fizemos um compasso de espera na esperança que as condições, entretanto, melhorassem. Mas, de nada nos serviu. Depois de alguns minutos, em que nos abrigámos numa rocha que apresentava uma saliência em jeito de alpendre, o tempo ainda se agravou. Então, esboçando um esgar de desalento e rendidos à nossa impotência, depressa reconhecemos que não tínhamos outra alternativa senão tentar regressar à base o mais rápido possível.

No nosso escalão etário, sexagenário, tudo se torna mais problemático. O peso das temporadas, agora, já não nos permite facilitar como o fazíamos em tempos idos. Tempos em que o espírito aventureiro associado à nossa juventude era compatível com qualquer cenário, por mais complicado que se apresentasse. Então, sem pensar duas vezes, em lanços quase paralelos e orientados pelos cães perdigueiros, fomos descendo a montanha, por entre piçarras escorregadias e arbustos rasteiros, com cuidados redobrados para evitar uma queda que nos poderia ser fatal.

Não vimos perdizes, mas esse também não era o nosso único objetivo. Ainda assim, apesar das dificuldades que passámos, não deixámos de ter uma manhã proveitosa. Porque ali, em plena jornada de caça, o tempo passa quase sem darmos por isso. Não nos lembramos da pandemia nem de outras preocupações que ensombram o nosso quotidiano. Para nós, a prática cinegética, não passava de um pretexto para dialogar com a natureza agreste e, ainda, usufruir da generosa companhia dos perdigueiros. No meio da dificuldade, ainda assistimos a uma situação aprimorada e bonita de se ver. Os cães, movidos por uma lealdade inquestionável, puseram em evidência todo o seu instinto protetor, colaborando na nossa orientação para fugir ao mau tempo.

Entretanto, quando nos aproximávamos do local onde deixámos o veículo, fomos surpreendidos por um caçador que, utilizando uma viatura todo o terreno, parecia desafiar os Deuses da intempérie ou mesmo tirar partido da adversidade. Era frequente cruzarmos com aquela criatura que alcunhávamos de Fariseu que, talvez para não tirar o lustro às botas, raramente víamos a pisar moiteira. Ainda assim, em marcha muito lenta e iluminado por potentes faróis de nevoeiro, parecia passar à lupa as zonas mais abertas. Sabendo, como nós, que, as perdizes, com o tempo invernoso, procuram as clareiras onde se sentem mais confortáveis, mas também ficam mais expostas ao perigo.

Nós, ao fim de trinta minutos que pareciam não ter fim, sem vermos um palmo à nossa frente, molhados e gelados até aos ossos, chegámos ao conforto da nossa viatura que nos conduziu à tão desejada Malhada do Rei. Local onde buscávamos melhores condições de tempo.

Era ali, no “nosso” abrigo, no aconchego do parque das merendas, situado no sopé da aldeia e contígua à ribeira, que habitualmente nos reuníamos. Era ali, perto da saída do túnel e usufruindo da hospitalidade daquela gente, que tomávamos as refeições em puro convívio com a natureza e os amigos.   

Desta vez, como frequentemente acontecia, contámos com a colaboração do amigo Manuel. Um homem que depressa arranjou lenha para acender a fogueira. Precisávamos de enxugar a roupa e afugentar o frio que teimava em não nos dar tréguas. Para além de outros predicados, aquele amigo era um profundo conhecedor do viver serrano, que não se poupava a esforços para auxiliar os amigos. Era também um excelente comunicador. Sempre que nos encontrávamos não se cansava de contar estórias, algumas verdadeiras outras nem por isso, mas todas eram escutadas com a mesma atenção.

A propósito do túnel, ali existente e, destinado ao transvase da barragem do Alto Ceira para a barragem de Santa Luzia, também guardava algumas recordações que fazem parte da história da obra.  

Contava ele que, há menos de uma década, durante o período de verão, as pessoas mais afoitas da aldeia, ainda utilizavam o túnel como via de ligação apeada entre a Malhada do Rei e as povoações de Ceiroco, Camba, Porto da Balsa e outras. Todas situadas do outro lado da serra. Porque, para além de ficar a menos de metade da distância, o seu traçado, quase plano, era mais fácil de percorrer. Ele próprio o utilizara, vezes sem conta, tanto a pé como de trator agrícola. Até para apanhar trutas sem que as autoridades dessem por isso. Sempre que o caudal baixava, algumas trutas ficavam encurraladas nos charcos e bastava utilizar uma pequena rede para as capturar. Também, em algumas ocasiões, chegou a dar boleia, na bagageira do trator, aos amigos que lha solicitavam. No entanto, em todas as deslocações, era imprescindível usar de uma lanterna pois, era a única forma de dar vida aos quase sete quilómetros de total escuridão, mergulhado nas entranhas da terra.

Depois do almoço, que se prolongou por mais de duas horas e onde, para além de um bom tinto, não faltou o tradicional bacalhau e a castanha assada, dirigimo-nos para a Casa de Convívio da aldeia. Ali, tomámos o café e uma excelente aguardente de mel, de fabrico regional, que nos alegrou o espírito.

Apesar das dificuldades por que passámos, no final, regressámos a casa agradecidos à natureza por nada de mais grave nos ter acontecido e prontos para nova etapa se os Deuses nos concederem essa benesse.


quinta-feira, 20 de agosto de 2020

O DECLÍNIO DO PINHEIRO-BRAVO

Durante grande parte do século passado, a economia serrana assentava, essencialmente, na agricultura de subsistência, na criação de gado ovino e caprino, na produção de carvão e na exploração do pinheiro-bravo. 

O pinheiro-bravo que é originário da Europa mediterrânica resiste ao frio e à seca com alguma facilidade, mas desenvolve-se melhor em terrenos arenosos sob temperaturas mais amenas. Para além da madeira, permite a extração da resina. Nessa época, o pinheiro estendia-se por vastas áreas do território serrano, entre o limite das terras de semeadura e a crista dos cabeços. Embora se trate de uma espécie de crescimento lento, quando implementada em terreno fértil e encostas solarengas, cresce com maior robustez, à média de um metro por ano. A reprodução é feita através do pinhão alado que é libertado pelas pinhas, no fim da primavera, sendo depois levado pelo vento para clareiras onde vai germinar em contacto com a humidade do solo. Infelizmente, devido à doença do “Nemátodo”, aos fogos florestais e ao corte para retirar madeiras, tem vindo a desaparecer do interior do país. Situação que afeta também a indústria resineira que vai ficando sem matéria- prima para produzir os derivados da resina.

Na época, o trabalho da colheita de resina, na região serrana, criou muitos postos de trabalho e permitiu aos proprietários dos pinhais o recebimento dos sempre preciosos tostões, que eram pagos no final de cada temporada, em função do preço contratado e do número de bicas ou sangrias que cada um possuía. Como não existia na região mão-de-obra suficiente e preparada para a extração da resina, recebia imigrantes de localidades como: Idanha-a-Nova, Almaceda ou Castelo Branco e outras que também buscavam os tão desejados postos de trabalho que escasseavam nas suas terras de origem.

Para além dos lucros da resina, quando surgia alguma despesa extraordinária, os proprietários recorriam à venda de pinheiros para equilibrar o orçamento familiar. Apesar de toda essa aparente mais-valia económica que o pinheiro-bravo fornecia, não deixava de ser uma fonte de desentendimentos entre todos os intervenientes. Por um lado, alguns proprietários de courelas encarregavam-se de mudar os marcos e alterar, unilateralmente, as estremas para chamar a si árvores que não lhes pertenciam. Por outro, os resineiros faziam cortes excessivos ou mesmo várias sangrias no mesmo pinheiro, para daí retirar maior quantidade de resina, pagando somente uma bica simples se o proprietário da mata não desse conta disso. Ao mesmo tempo, ignoravam que o excesso de colheita enfraquecia de tal modo o pinheiro que alguns acabavam por sucumbir. Também se enganavam, deliberadamente, nas estremas para resinar um ou outro pinheiro que se mostrava mais pujante, na busca de maior quantidade de resina. Situações que davam origem a discussões. Como se isso não bastasse, os danos nos utensílios da recolha de resina eram frequentes, quer por furto, brincadeira ou mesmo por má-fé e causavam a ira de resineiros, proprietários dos pinhais e até donos das resineiras. Ainda, no início de cada época deparavam-se com a falta de muitos púcaros de barro que se destinavam a aparar a seiva do pinheiro. Alguns eram desviados para uso doméstico, principalmente para beber o vinho nas adegas e até constava que o vinho servido no barro aveludava o paladar.

A propósito de brincadeiras relacionadas com a resina, recordo um episódio ocorrido na década de 1950, quando três jovens, com idades a rondar os quinze anos, que pastoreavam o gado nos arredores da aldeia, se depararam com um barril cheio, com duzentos litros de resina, optaram por um divertimento invulgar. E de que é que eles se haviam de lembrar, lançar o barril pela encosta abaixo pelo simples prazer de o ver rebolar. Escolheram o local mais apropriado para que aquele rolasse autonomamente, soltaram-no e detiveram-se a comtemplar aquele cilindro destrutivo.

O barril, fabricado em madeira de carvalho, aguardava ser recolhido por um de dois carreiros, que se ocupavam naquele tipo de transporte quase em permanência, para um local acessível a uma camioneta, mais concretamente para o estaleiro do sítio das Árvores, junto à Estrada Nacional 112, perto das Moradias. Mas os comparsas não lhe deram oportunidade para que tal.

A descida era muito acentuada e prolongava-se por várias centenas de metros. Como seria de esperar, ao fim de poucos segundos, o barril atingiu tal velocidade que se tornou imparável, derrubando tudo o que se lhe deparava pela frente. Apesar da solidez da resina e da resistência da vasilha, a partir de certa altura, começou a perder o conteúdo, que foi deixando aos poucos ao longo da encosta repleta de vegetação diversa, até se imobilizar no leito do ribeiro. Embora parcialmente esventrado, quando finalmente se imobilizou, deixou os populares, que laboravam nas terras de semeadura, incrédulos com o acontecido, dado que não tinham memória de assistir a algo idêntico. O susto foi enorme com aquela situação invulgar e logo que chegaram à povoação, não se cansaram de relatar o sucedido.

Os autores da façanha, após terem presenciado aquela experiência espetacular, que os surpreendeu, não só pela velocidade que atingiu e ruído que provocou, mas sobretudo pelo rasto de destruição que deixou à sua passagem, congeminaram uma forma de se furtar à responsabilidade. Conhecedores do terreno e de outros potenciais autores, capazes de uma brincadeira semelhante, decidiram atuar por antecipação e atribuir a autoria do delito a três outros jovens da aldeia, também pastores de gado, mas que por sinal, nesse dia, andavam noutro local.

Condenados à partida de pouco valeu aos injustamente incriminados a negação de tal ato, porque logo que o boato se espalhou pela aldeia, não perderam pela demora e levaram um corretivo dos pais. Contudo, o castigo não ficaria por aqui. No dia seguinte, foram intimados a comparecer no Posto da Guarda, em cumprimento de queixa apresentada pelo proprietário da resina. Durante a inquirição, dois dos acusados negaram e quase convenceram as autoridades, mas o terceiro, talvez receando que o interrogatório se tornasse mais rigoroso, deitou tudo a perder, acabando por admitir ter participado no delito e em função disso, os três incriminados tiveram que ressarcir o dono da resina, na quantia de 140 escudos.

Ainda a propósito dos transportes de resina, noutra ocasião, na década de 1960 perto do Vale Dianteiro, dois garotos, um com dez anos de idade e outro com oito, resolveram apanhar boleia num carro de bois que circulava carregado com dois barris de resina. 

O carreiro era um homem com idade a rondar os cinquenta anos e um trabalhador determinado. Fruto do tempo de amargura que se vivia no interior serrano entregava-se à labuta quotidiana, tanto de dia com de noite, sem horários para refeições nem para descanso. Nesse dia fazia o transporte para o estaleiro existente na aldeia. Como habitualmente, aquele, no seu estilo desembaraçado, só conduzia os bois à soga quando o terreno obrigava a maiores cuidados de segurança, caso contrário caminhava à frente dos animais, de aguilhada ao ombro, numa postura que para aqueles garotos parecia distraída. Assim, aproveitando a aparência descontraída, quando o carro se aproximava dos dois petizes, anunciando a marcha numa chiadeira que se assemelhava a um interminável gemido, movidos pela imprudência própria da idade, sentaram-se, sorrateiramente, na traseira do carro, indiferentes ao perigo que corriam e com a convicção de que o carreiro não se havia apercebido. Acomodaram-se como puderam sempre com a preocupação de ocultar a silhueta no bojo dos barris para evitar serem detetados. Apesar do desconforto, a vigem foi prosseguindo com muitos solavancos que o piso irregular obrigava, mas para eles isso não representava obstáculo, apenas queriam usufruir de uma boleia que nunca tinham experimentado. Contudo, depois de terem percorrido perto de um quilómetro, já à entrada da aldeia, local onde o traçado se tornava mais irregular, o carreiro ter-se-á apercebido de presença dos dois passageiros clandestinos e resolveu reprimi-los à vergastada. Sem provocar alarido nem abrandar a marcha, afastou-se, sorrateiramente, da frente dos animais pronto para ação. Com a vara de tocar os bois em riste e pronto a desferir a vergastada, esperou que a traseira do carro se aproximasse da sua posição. Mas imediatamente antes, os dois garotos, num movimento ágil, conseguiram fugir e evitar o corretivo. É claro que, o carreiro quando viu gorados os seus intentos e reparou no riso divertido dos garotos, soltou um chorrilho de impropérios, com a convicção própria de quem não tinha outra alternativa.

          

 

sábado, 25 de abril de 2020

RETALHOS DE VIDA


Naquela manhã, André Sargaço despertou ao som estridente da uma sirene que, pela crescente intensidade do ruído, parecia convergir para a pensão onde pernoitava. Decorridos alguns segundos, ouviu a derrapagem de uma travagem brusca que pôs termo àquela sinfonia perturbadora deixando no ar, apenas, um som monótono que parecia provocado pelo movimento dos rotativos luminosos instalados num veículo, completado, logo a seguir, por vozes que, apesar de indecifráveis, soavam alvoraçadas. 
Impelido por automatismos adquiridos em palco de guerra, saltou da cama e correu à janela na perspetiva de se inteirar do que estaria a acontecer. Através das frinchas da persiana viu os flashes azuis libertados pelos pirilampos de uma ambulância que lhe tolhiam parcialmente a visão. Com a cautela indispensável para não despertar a curiosidade exterior, levantou parcialmente o estore, e presenciou grande agitação à volta do veículo de socorro. Junto daquele encontrava-se um homem prostrado nos paralelos do passeio a quem dois socorristas tentavam prestar ajuda. Então, abriu a janela e escutou vozes que sobressaíam de entre o aglomerado e que indiciavam tratar-se de uma agressão a um transeunte. Pelo que ouviu, no meio de palavras de ordem “vivas à liberdade e morte aos pides”, chegou à conclusão de que o ferido teria sido confundido com um colaborador da extinta PIDE. Embora André Sargaço não concordasse com tal método de justiça também já nada podia fazer para o evitar. 
Depois do ferido ter sido transportado ao hospital, André Sargaço, ainda à janela e mal refeito com o que acabara de ouvir, levantou totalmente o estore e lançou um olhar demorado pela avenida como que saboreando o bom tempo que se fazia sentir. Estava de regresso à capital, onde vivera cinco anos antes de partir para cumprir o serviço militar, que agora começava a despertar para o seu habitual frenesim. Parecia ter a mesma rotina como acontecia antes de deixar a cidade, já lá iam perto de três anos. No entanto, agora, notava algumas alterações, não só pelo que acabara de assistir, como ainda, verificava que algumas fachadas dos edifícios estavam decoradas com slogans, de toda a espécie, alusivos à revolução de 25 de abril. 
Dali, zona central da cidade, observava que os plátanos se iam despindo de folhagem permitindo, assim, uma melhor visibilidade da extensa artéria. Os transeuntes movimentavam-se à pinha inundando os passeios num constante vaivém de marcha apressada e feições carregadas que pareciam esconder as muitas frustrações que a democracia ainda não havia preenchido. Nas faixas de rodagem, os automóveis começavam a amontoar-se em filas e os ocupantes aguardavam, com notada impaciência, a ordem do sinaleiro que, em cima da peanha, regularizava o trânsito de veículos e peões. Um cantoneiro da higiene, com aspeto sonolento, varria, com lentidão, folhagem, beatas e outros detritos que conspurcavam a via. Na praça de táxis, um passageiro gesticulava, irritado, contestando a tarifa que o motorista lhe queria aplicar. O relógio da fachada principal do edifício da Estação do Rossio assinalava oito horas em ponto. À entrada daquele, no piso térreo, junto ao primeiro degrau da extensa escadaria, movia-se um ardina que apregoava os jornais matutinos, numa ladainha contínua e rouca, lembrando um cântico penoso e longínquo, quase um lamento. Um pouco mais adiante, ouviam-se os pregões de um cauteleiro que ecoavam ao longo da avenida. . .
Como que contagiado por aquele fervilhar de vida que lhe despertou o apetite, André Sargaço ataviou-se com roupa aligeirada que comprara em Luanda com o resto do dinheiro que não conseguira transferir para Portugal e logo a seguir correu para a sala de jantar em busca do pequeno-almoço. Ali, cumprimentou a empregada que aguardava a chegada dos hóspedes com um sorriso acanhado que lhe dava graciosidade. Logo que terminou a refeição matinal, despediu-se da moça e partiu sem destino definido. 
Na tarde do dia anterior, desembarcara no Aeroporto de Lisboa num avião comercial ao serviço do Exército Português. Uma viagem que pusera fim à sua comissão militar em Angola, que se prolongara por dois longos anos. Era o fim da incerteza no regresso e início de uma nova etapa. Agora, era tempo de retomar a vida que abandonara aquando fora chamado a servir a Pátria. Mas, para isso, precisava, em primeiro lugar, de recuperar psicologicamente. Sim, porque depois de uma longa servidão, sob stress constante, precisava de tempo para se adaptar à nova realidade do seu quotidiano e do país. Contudo, agora, a cidade, não lhe parecia o local mais apropriado para a sua recuperação psicológica, atendendo aos tempos conturbados que vivera em terras de África e ao ambiente revolucionário com que, agora, era confrontado. Logo que possível iria, certamente, seguir outro rumo. 
Quando chegou à rua, André Sargaço respirou fundo como que sorvendo a ligeira brisa que soprava da barra do Tejo. Acendeu um cigarro e dirigiu-se ao quiosque que ficava implantado em pleno passeio a escassos cinquenta passos. Queria comprar tabaco e uma cautela da lotaria. Embora não tivesse sorte ao jogo resolvera comprar um vigésimo como forma de registar o seu regressado à capital. Então, passou os olhos pelos títulos dos jornais expostos, à mistura com revistas para todos os gostos, que, como normalmente acontecia, relatavam assuntos de âmbito nacional e internacional. Contudo, quando se aproximava do balcão surgiu à sua frente um estropiado, agarrado a uma cadeira de rodas, que, a custo, se movimentava na sua direção e que apelava à caridade dos transeuntes. Pela tatuagem que aquele ostentava num braço e que lhe era familiar, André Sargaço concluiu que se tratava de um deficiente da guerra colonial. 
A ditadura nunca o deixara mendigar, mas agora já se podia movimentar, livremente, pela cidade. Já não tinha receio de mostrar a sua enfermidade. A liberdade de movimentos parecia ser a única conquista que a democracia lhe havia trazido. Escondidos pela ditadura, agora, os pobres, mutilados e outros deficientes, já eram visíveis.
No confronto com a enfermidade daquele homem, André Sargaço considerou-se um afortunado, atendendo a que também calcorreara terrenos em que o perigo espreitava a cada passo e regressara, fisicamente, incólume. Então, pegou na nota de vinte escudos que destinava à lotaria e entregou-lha. Após o agradecimento do mendigo que, certamente, não esperaria uma esmola tão generosa deu por si a pensar nas conquistas que a revolução tinha trazido ao país e apenas vislumbrou a liberdade de expressão e o fim da guerra colonial. No entanto, lembrou-se dos militares que ainda continuavam em África e chegou à conclusão que a realidade no terreno era totalmente diferente do que os políticos propagandeavam. Ali, os agitadores que se infiltravam nas sessões de esclarecimento que se destinavam a preparar a transição causavam crispação crescente entre os guerrilheiros dos movimentos de libertação e os militares portugueses viam-se envolvidos em escaramuças que não estavam autorizados a debelar… Porém, agora, esse assunto estava entregue aos políticos oportunistas e iluminados por ideologias revolucionárias mais interessados em agradar aos antigos inimigos com total abandono das tropas portuguesas que ficaram desarmadas e entregues à sua sorte.
Depois daquele episódio que debilitou o seu estado de alma, demandou, rua fora, sobre um manto de folhagem morta que se misturava com detritos caídos de contentores a abarrotar de lixo. Mais adiante foi surpreendido por uma barricada de rua formada por uma mescla de políticos de ocasião. Um bando de inúteis, cabeludos mal encarados, com calças à boca de sino, que controlavam carros e peões à procura de fascistas. A maioria delinquentes e vadios que, sob as capas partidárias, semeavam a desordem. À mistura com gritos de "terra a quem a trabalha" intimidavam e identificavam os transeuntes, entoando outros slogans progressistas alusivos ao momento e à liberdade. Uma forma revolucionária que, para ele era novidade, mas, ainda assim, colaborou com horda tentando evitar males maiores. 
Enquanto deambulava naquele cenário decadente, acendeu mais um cigarro saboreando o prazer das baforadas como se a nicotina o ajudasse a equacionar novo rumo para a sua vida. O vício do tabaco era mais uma pesada herança da vivência colonial que agora lhe parecia difícil de combater. Acendia um cigarro com o outro quase sem dar por isso, nem sequer equacionava os malefícios que tal prática lhe poderia causar à saúde. Contudo, quando pensava no assunto, prometia, a si próprio, fazer os possíveis para tentar recuperar a liberdade em relação ao vício. 
Na continuação da deambulação, André Sargaço deteve-se na sua vivência militar e chegou à conclusão que perdera os melhores três anos da sua juventude a troco de nada e ao serviço de uma causa que não servira ninguém. Como se o castigo já não bastasse, logo que pisou o território continental ficou entregue a si próprio. Abandonado pelo Regime Democrático nem sequer podia invocar a sua condição de combatente para não ser acusado de colaborador do regime fascista, como fora intitulado naquela barricada de rua. 
Lamentavelmente é talvez, e não só nesse período revolucionário como mais tarde com o regime democrático consolidado, o único país do mundo a desprezar os seus combatentes.  

sábado, 21 de março de 2020

PASSEIO TURÍSTICO À TRUTA


Na abertura da pesca desportiva à truta que ocorreu, como habitualmente, no dia um de março, acompanhado por três amigos, seguimos ao encontro das ribeiras da nossa Serra. Este ano também não foi exceção. Bem cedo, à hora combinada, partimos com destino, inicial, ao rio Ceira a fim de confraternizar com a natureza rude.
Por volta das sete horas da manhã, chegámos aos Cavaleiros, sob o Céu límpido e uma temperatura amena, num cenário envolvente de carquejas e moitas floridas que parecia anunciar a chegada da Primavera. Iniciámos a jornada, contemplando a beleza daquele jardim natural, num local em que o terreno é de configuração sinuosa e afundado entre montanhas, mas onde o eterno cantarolar da corrente nos convidava a lançar a linha à água. Perante a generosidade daquela dádiva da natureza, avançámos rio adentro prontos a enfrentar qualquer adversidade. No entanto, nesse percurso, movimentámo-nos com muita dificuldade devido à proliferação de acácias e salgueiros que, em cada dia, crescem descontroladamente e vão invadindo não só as margens como também as linhas de água. Contudo, logo que nos desenvencilhámos de todo aquele emaranhado vegetal, prosseguimos para montante com destino ao Casal Novo, Mata, Cartamil e Ponte Fajão em busca de melhores condições de progressão. 
No lugar do Casal Novo cruzamos com um pescador do nosso escalão etário, impelido para aquelas andanças por motivo idêntico ao nosso, que nos chamou à atenção para a ausência de pescadores que, em anos anteriores, não faltavam à abertura da pesca. Não foi surpresa, de ano para ano, já era notado algum abandono por pessoas que, até então, se dedicavam à pesca desportiva. Para além desses, também não encontrámos jovens. Indicador de que aquele desporto salutar não desperta o interesse da juventude atual que, certamente, tem assuntos mais importantes para ocupar os tempos livres o que não era o caso no tempo da nossa.  
O que nos move não é a quantidade de exemplares capturados, o que só esporadicamente acontece, mas essencialmente usufruir do reencontro com velhos amigos que são: campos, serranias, rios, ribeiras e riachos. Uma forma de buscar liberdade na tranquilidade dos montes tentando, tanto quanto possível, fugir à balbúrdia citadina e à hipocrisia de alguns políticos com que somos confrontados a cada dia. Pena é que os acessos, repletos de vegetação selvagem, se vão tornando, em cada passo, mais inacessíveis, dificultando a movimentação de qualquer transeunte e obstruindo o habitat de todas as espécies piscícolas.  
Para nós, mais de que um desporto, trata-se de uma forma diferente de dialogar com a nossa Serra, apesar das limitações físicas que a marcha imparável do tempo nos impõe, atendendo ao meio hostil com que somos confrontados, constituído por corrente de água, vegetação densa, rochedos escorregadios e açudes escarpados. 
Durante décadas percorremos rios e ribeiras de toda região centro, mas depois da implementação das concessões de pesca que interditaram muitos desses cursos de água ficámos limitados aos lotes ainda livres que, por sinal, correspondem sempre aos mais inacessíveis que, por sua vez, são sempre os mais afastados das localidades. Naquele tempo, conhecíamos à lupa vários rios como: o Ceira, o Alva, o Unhais e quase todos os afluentes destes dos quais guardamos recordações de momentos inesquecíveis passados em pleno convívio com a natureza.
Hoje, a política de concessões que deveria ter como finalidade o benefício das espécies e do ambiente, em nosso entender, só se destina a burocratizar. Não se trata de uma questão de rebeldia contra as concessões de pesca. Longe disso. Apenas discordamos da sua implementação porque ainda não constatámos nenhuma vantagem neste tipo de regimes. Nem para os desportistas, nem parra o ambiente, nem tão pouco para as espécies. A menos que se façam repovoamentos e se limpem as ribeiras no seu todo, tanto nos lotes destinados à prática desportiva como nas zonas de abrigo ou desova as concessões não terão, em nossa opinião, qualquer mais-valia relativamente aos troços livres. Até lá que nos perdoem os simpatizantes deste sistema, mas nós só destacamos burocracia a que se juntam mais licenças para além das exigidas pelos serviços florestais (ICNF). De qualquer modo e perante tal cenário, só nos resta uma solução que é tentar contornar as areias que fazem os possíveis para emperrar a engrenagem da pesca desportiva em liberdade.   
No meio de tudo isso, reconheço que se aproxima o momento de, também nós, obedecendo à marcha imparável do tempo que caminha rapidamente para o entardecer da vida, desistirmos de uma prática desportiva que nos motivou durante décadas, sobretudo pelo prazer de degustar o farnel na intimidade da natureza. Também outros, do nosso escalão etário, com quem confraternizámos durante a prática desportiva, deixaram de nos acompanhar: uns porque o seu percurso de vida foi subitamente interrompido, outros porque a saúde já não lhes permite correr os riscos que este desporto comtempla. 
Na continuação da nossa etapa, por volta das onze horas, chegámos à ponte de Cartamil sem que tivéssemos capturado qualquer exemplar. No entanto, para além de observarmos os movimentos de diversos corvos marinhos que são hábeis mergulhadores em busca de peixe, convivemos de perto com duas lontras bem alimentadas que, indiferentes à nossa presença, basculhavam, descontraidamente, o leito do rio. E ainda, sem que nada o fizesse prever, fomos surpreendidos por um javali fêmea (javalina) que acompanhava vários filhotes (riscados) que, ao aperceber-se da nossa presença, desencadeou uma corrida tresloucada em direção a um dos nossos elementos que só por milagre se conseguiu furtar ao ataque. Nada que já não nos tivesse acontecido noutros locais, mas devo confessar que é sempre uma situação pouco divertida para quem a vive. 
Logo a seguir, como habitualmente, avançámos para o parque das merendas de Cartamil, (mais propriamente parque Laurinda da Conceição Fernandes) que se situa a cerca de cem metros a montante da ponte que, para nós, foi sempre um local de escala obrigatória, não só pelas suas boas condições como, ainda, por falta de alternativa na região. O dia solarengo que ia temperando o ar fresco que, entretanto, soprava de nordeste, convidava à preparação do almoço. A barriga começava a reivindicar a reposição dos níveis de sólidos e líquidos e nada melhor do que fazer-lhe a vontade. 
Quando chegámos ao parque, muito bem ilustrado por retábulos de santos e lápides com vários poemas de Ramos Mendes, fomos surpreendidos por um velho amigo que resolveu fazer-nos uma surpresa. Era um homem que nos acompanhou nem só na pesca como noutras etapas da vida e enquanto a saúde lhe permitiu respondeu sempre à chamada. Agora, na companhia da esposa e obedecendo ao apelo da alma, resolveu fazer-nos uma surpresa em plena contenda. Conhecendo as nossas rotinas, queria comungar do convívio e da amizade que sempre nos norteou. 
Começámos por acender o grelhador e enquanto se preparavam as brasas para grelhar o bacalhau, íamos degustando os acepipes acompanhados por um bom tinto alentejano e com graçolas à mistura que começaram, desde logo, pelo ataque do javali que foi o tema dominante. 
Durante o almoço, em alegre cavaqueira, demos largas ao apetite e recordámos histórias, vividas ao longo da caminhada da vida, que nos divertiram e nos incentivaram a novos reencontros se a pandemia (Covid – 19), entretanto, nos permitir. No final, por volta das catorze horas, o nosso amigo seguiu o seu destino lamentando o facto de já não nos poder acompanhar como tanto gostava, mas a vida é assim, não se compadece da nossa vontade. E nós partimos em direção à Pampilhosa da Serra, mais propriamente com destino às ribeiras de Pescanseco, a seguir Praçais, depois Carvalho e por fim Pessegueiro. Uma rota que, com o passar dos anos, se foi tornando quase obrigatória não passando de uma visita turística à nossa Serra. 
Apesar de todas as dificuldades que se avizinham em cada um de nós, nem tudo é mau, foi com satisfação que verificamos o trabalho que tem sido desenvolvido em prol da limpeza das ribeiras afluentes do rio Unhais, junto aos povoados, que nos permitiu a passagem em locais que até há pouco tempo nos eram inacessíveis. Um trabalho gigantesco que deixa a nu não só parte das margens como também as linhas de água. Como é sobejamente conhecido, não é um trabalho fácil, atendendo às difíceis acessibilidades e à vastidão da vegetação. Uma selva que engloba árvores de grande porte como: acácias, salgueiros, pinheiros, eucaliptos e amieiros. Tudo envolvido por silvas e vegetação rasteira que impossibilita qualquer movimento. Atendendo a que a natureza se transforma, em cada dia que passa, e a desertificação vai alterando a paisagem de forma irreversível, pensamos que pouco haverá a fazer atendendo a que a limpeza é, economicamente, inexecutável.
                No final da jornada regressámos a casa, e embora as capturas não tenham correspondido às expectativas, com o sentimento de que passamos um dia em puro convívio com a natureza agreste. Sem esquecer o excelente almoço que é, nas atuais circunstâncias, um dos melhores motivos para visitar a nossa Serra. Mas, ainda assim, cientes que estará próximo o tempo de arrumar o material de pesca.