sábado, 25 de abril de 2020

RETALHOS DE VIDA


Naquela manhã, André Sargaço despertou ao som estridente da uma sirene que, pela crescente intensidade do ruído, parecia convergir para a pensão onde pernoitava. Decorridos alguns segundos, ouviu a derrapagem de uma travagem brusca que pôs termo àquela sinfonia perturbadora deixando no ar, apenas, um som monótono que parecia provocado pelo movimento dos rotativos luminosos instalados num veículo, completado, logo a seguir, por vozes que, apesar de indecifráveis, soavam alvoraçadas. 
Impelido por automatismos adquiridos em palco de guerra, saltou da cama e correu à janela na perspetiva de se inteirar do que estaria a acontecer. Através das frinchas da persiana viu os flashes azuis libertados pelos pirilampos de uma ambulância que lhe tolhiam parcialmente a visão. Com a cautela indispensável para não despertar a curiosidade exterior, levantou parcialmente o estore, e presenciou grande agitação à volta do veículo de socorro. Junto daquele encontrava-se um homem prostrado nos paralelos do passeio a quem dois socorristas tentavam prestar ajuda. Então, abriu a janela e escutou vozes que sobressaíam de entre o aglomerado e que indiciavam tratar-se de uma agressão a um transeunte. Pelo que ouviu, no meio de palavras de ordem “vivas à liberdade e morte aos pides”, chegou à conclusão de que o ferido teria sido confundido com um colaborador da extinta PIDE. Embora André Sargaço não concordasse com tal método de justiça também já nada podia fazer para o evitar. 
Depois do ferido ter sido transportado ao hospital, André Sargaço, ainda à janela e mal refeito com o que acabara de ouvir, levantou totalmente o estore e lançou um olhar demorado pela avenida como que saboreando o bom tempo que se fazia sentir. Estava de regresso à capital, onde vivera cinco anos antes de partir para cumprir o serviço militar, que agora começava a despertar para o seu habitual frenesim. Parecia ter a mesma rotina como acontecia antes de deixar a cidade, já lá iam perto de três anos. No entanto, agora, notava algumas alterações, não só pelo que acabara de assistir, como ainda, verificava que algumas fachadas dos edifícios estavam decoradas com slogans, de toda a espécie, alusivos à revolução de 25 de abril. 
Dali, zona central da cidade, observava que os plátanos se iam despindo de folhagem permitindo, assim, uma melhor visibilidade da extensa artéria. Os transeuntes movimentavam-se à pinha inundando os passeios num constante vaivém de marcha apressada e feições carregadas que pareciam esconder as muitas frustrações que a democracia ainda não havia preenchido. Nas faixas de rodagem, os automóveis começavam a amontoar-se em filas e os ocupantes aguardavam, com notada impaciência, a ordem do sinaleiro que, em cima da peanha, regularizava o trânsito de veículos e peões. Um cantoneiro da higiene, com aspeto sonolento, varria, com lentidão, folhagem, beatas e outros detritos que conspurcavam a via. Na praça de táxis, um passageiro gesticulava, irritado, contestando a tarifa que o motorista lhe queria aplicar. O relógio da fachada principal do edifício da Estação do Rossio assinalava oito horas em ponto. À entrada daquele, no piso térreo, junto ao primeiro degrau da extensa escadaria, movia-se um ardina que apregoava os jornais matutinos, numa ladainha contínua e rouca, lembrando um cântico penoso e longínquo, quase um lamento. Um pouco mais adiante, ouviam-se os pregões de um cauteleiro que ecoavam ao longo da avenida. . .
Como que contagiado por aquele fervilhar de vida que lhe despertou o apetite, André Sargaço ataviou-se com roupa aligeirada que comprara em Luanda com o resto do dinheiro que não conseguira transferir para Portugal e logo a seguir correu para a sala de jantar em busca do pequeno-almoço. Ali, cumprimentou a empregada que aguardava a chegada dos hóspedes com um sorriso acanhado que lhe dava graciosidade. Logo que terminou a refeição matinal, despediu-se da moça e partiu sem destino definido. 
Na tarde do dia anterior, desembarcara no Aeroporto de Lisboa num avião comercial ao serviço do Exército Português. Uma viagem que pusera fim à sua comissão militar em Angola, que se prolongara por dois longos anos. Era o fim da incerteza no regresso e início de uma nova etapa. Agora, era tempo de retomar a vida que abandonara aquando fora chamado a servir a Pátria. Mas, para isso, precisava, em primeiro lugar, de recuperar psicologicamente. Sim, porque depois de uma longa servidão, sob stress constante, precisava de tempo para se adaptar à nova realidade do seu quotidiano e do país. Contudo, agora, a cidade, não lhe parecia o local mais apropriado para a sua recuperação psicológica, atendendo aos tempos conturbados que vivera em terras de África e ao ambiente revolucionário com que, agora, era confrontado. Logo que possível iria, certamente, seguir outro rumo. 
Quando chegou à rua, André Sargaço respirou fundo como que sorvendo a ligeira brisa que soprava da barra do Tejo. Acendeu um cigarro e dirigiu-se ao quiosque que ficava implantado em pleno passeio a escassos cinquenta passos. Queria comprar tabaco e uma cautela da lotaria. Embora não tivesse sorte ao jogo resolvera comprar um vigésimo como forma de registar o seu regressado à capital. Então, passou os olhos pelos títulos dos jornais expostos, à mistura com revistas para todos os gostos, que, como normalmente acontecia, relatavam assuntos de âmbito nacional e internacional. Contudo, quando se aproximava do balcão surgiu à sua frente um estropiado, agarrado a uma cadeira de rodas, que, a custo, se movimentava na sua direção e que apelava à caridade dos transeuntes. Pela tatuagem que aquele ostentava num braço e que lhe era familiar, André Sargaço concluiu que se tratava de um deficiente da guerra colonial. 
A ditadura nunca o deixara mendigar, mas agora já se podia movimentar, livremente, pela cidade. Já não tinha receio de mostrar a sua enfermidade. A liberdade de movimentos parecia ser a única conquista que a democracia lhe havia trazido. Escondidos pela ditadura, agora, os pobres, mutilados e outros deficientes, já eram visíveis.
No confronto com a enfermidade daquele homem, André Sargaço considerou-se um afortunado, atendendo a que também calcorreara terrenos em que o perigo espreitava a cada passo e regressara, fisicamente, incólume. Então, pegou na nota de vinte escudos que destinava à lotaria e entregou-lha. Após o agradecimento do mendigo que, certamente, não esperaria uma esmola tão generosa deu por si a pensar nas conquistas que a revolução tinha trazido ao país e apenas vislumbrou a liberdade de expressão e o fim da guerra colonial. No entanto, lembrou-se dos militares que ainda continuavam em África e chegou à conclusão que a realidade no terreno era totalmente diferente do que os políticos propagandeavam. Ali, os agitadores que se infiltravam nas sessões de esclarecimento que se destinavam a preparar a transição causavam crispação crescente entre os guerrilheiros dos movimentos de libertação e os militares portugueses viam-se envolvidos em escaramuças que não estavam autorizados a debelar… Porém, agora, esse assunto estava entregue aos políticos oportunistas e iluminados por ideologias revolucionárias mais interessados em agradar aos antigos inimigos com total abandono das tropas portuguesas que ficaram desarmadas e entregues à sua sorte.
Depois daquele episódio que debilitou o seu estado de alma, demandou, rua fora, sobre um manto de folhagem morta que se misturava com detritos caídos de contentores a abarrotar de lixo. Mais adiante foi surpreendido por uma barricada de rua formada por uma mescla de políticos de ocasião. Um bando de inúteis, cabeludos mal encarados, com calças à boca de sino, que controlavam carros e peões à procura de fascistas. A maioria delinquentes e vadios que, sob as capas partidárias, semeavam a desordem. À mistura com gritos de "terra a quem a trabalha" intimidavam e identificavam os transeuntes, entoando outros slogans progressistas alusivos ao momento e à liberdade. Uma forma revolucionária que, para ele era novidade, mas, ainda assim, colaborou com horda tentando evitar males maiores. 
Enquanto deambulava naquele cenário decadente, acendeu mais um cigarro saboreando o prazer das baforadas como se a nicotina o ajudasse a equacionar novo rumo para a sua vida. O vício do tabaco era mais uma pesada herança da vivência colonial que agora lhe parecia difícil de combater. Acendia um cigarro com o outro quase sem dar por isso, nem sequer equacionava os malefícios que tal prática lhe poderia causar à saúde. Contudo, quando pensava no assunto, prometia, a si próprio, fazer os possíveis para tentar recuperar a liberdade em relação ao vício. 
Na continuação da deambulação, André Sargaço deteve-se na sua vivência militar e chegou à conclusão que perdera os melhores três anos da sua juventude a troco de nada e ao serviço de uma causa que não servira ninguém. Como se o castigo já não bastasse, logo que pisou o território continental ficou entregue a si próprio. Abandonado pelo Regime Democrático nem sequer podia invocar a sua condição de combatente para não ser acusado de colaborador do regime fascista, como fora intitulado naquela barricada de rua. 
Lamentavelmente é talvez, e não só nesse período revolucionário como mais tarde com o regime democrático consolidado, o único país do mundo a desprezar os seus combatentes.