terça-feira, 15 de dezembro de 2020

QUANDO OS DEUSES SE IRRITAM

 


Logo pela manhã, daquele domingo de Dezembro, quando chegámos ao alto de Fajão, lá mesmo no cume junto aos geradores eólicos, encontrámos uma Serra risonha e acolhedora, coisa que, naquela época do ano, raramente acontecia. A atmosfera estava límpida e o sol, que espreitava por entre nuvens dispersas, tornava a temperatura amena permitindo, assim, um olhar sobranceiro sobre os horizontes, de um lado, grande extensão do Vale do Ceira, do outro, de parte da barragem de Santa Luzia. Serra que, para além de nos arrebatar com as suas magníficas paisagens, também nos convidava para o exercício cinegético que, devido à pandemia e ao confinamento, só agora nos era possível retomar.

Assim, em função das boas condições que ali encontrámos e arrebatados pela paisagem, depressa abandonámos o automóvel, onde nos fazíamos transportar, prontos para a contenda. Munidos do material essencial e equipados com fato aligeirado, partimos, para mais uma jornada, calcorreando os montes serranos, em busca das perdizes bravias. No entanto, estávamos longe de imaginar o que a meteorologia nos reservava para esse dia. Se bem que os Deuses parecem reservar, sempre, o mau tempo para os dias de caça.

Por volta das dez horas, depois de termos percorrido mais de dois quilómetros, escalando rochedos e calcando tojos, carquejas e moitas, já em plena cordilheira do Açor, o Céu fechou-se rapidamente à claridade e em poucos minutos ficámos expostos à intempérie. Como que investido de uma imensa crueldade, o vento virou para nordeste fustigando tudo ao nosso redor e trazendo consigo denso nevoeiro que nos mergulhou na escuridão. No mesmo instante, as nuvens romperam-se parindo farrapos de neve que, aos poucos, iam pintando de branco o chão que pisávamos. Uma mudança brusca no tempo que, para além de nos dificultar a orientação, os movimentos e a respiração, também nos gelava o corpo.

Eu e o Mário, que era o amigo que me acompanhava nesse dia, não tínhamos dúvidas que, perante o quadro que nos envolvia, não seria fácil enfrentarmos a aridez daquela serra nua. Serra que, quando os Deuses se irritam, não deixa de ser madrasta com os incautos. Nada a que já não estivéssemos habituados. Em anos anteriores também nos deparámos com dias de tempo agreste, mas nada daquilo a que, agora, assistíamos. É preciso realçar que, a época do ano, a altitude e a imprevisibilidade da natureza naqueles montes, são determinantes na situação do tempo. Assim, mais uma vez, fomos surpreendidos pela repentina alteração climatérica que não nos permitiu chegar ao nosso abrigo sem passarmos por toda aquela adversidade.

Apesar da visibilidade reduzida pelo nevoeiro e da falta do agasalho apropriado para enfrentar o vento gélido, ainda fizemos um compasso de espera na esperança que as condições, entretanto, melhorassem. Mas, de nada nos serviu. Depois de alguns minutos, em que nos abrigámos numa rocha que apresentava uma saliência em jeito de alpendre, o tempo ainda se agravou. Então, esboçando um esgar de desalento e rendidos à nossa impotência, depressa reconhecemos que não tínhamos outra alternativa senão tentar regressar à base o mais rápido possível.

No nosso escalão etário, sexagenário, tudo se torna mais problemático. O peso das temporadas, agora, já não nos permite facilitar como o fazíamos em tempos idos. Tempos em que o espírito aventureiro associado à nossa juventude era compatível com qualquer cenário, por mais complicado que se apresentasse. Então, sem pensar duas vezes, em lanços quase paralelos e orientados pelos cães perdigueiros, fomos descendo a montanha, por entre piçarras escorregadias e arbustos rasteiros, com cuidados redobrados para evitar uma queda que nos poderia ser fatal.

Não vimos perdizes, mas esse também não era o nosso único objetivo. Ainda assim, apesar das dificuldades que passámos, não deixámos de ter uma manhã proveitosa. Porque ali, em plena jornada de caça, o tempo passa quase sem darmos por isso. Não nos lembramos da pandemia nem de outras preocupações que ensombram o nosso quotidiano. Para nós, a prática cinegética, não passava de um pretexto para dialogar com a natureza agreste e, ainda, usufruir da generosa companhia dos perdigueiros. No meio da dificuldade, ainda assistimos a uma situação aprimorada e bonita de se ver. Os cães, movidos por uma lealdade inquestionável, puseram em evidência todo o seu instinto protetor, colaborando na nossa orientação para fugir ao mau tempo.

Entretanto, quando nos aproximávamos do local onde deixámos o veículo, fomos surpreendidos por um caçador que, utilizando uma viatura todo o terreno, parecia desafiar os Deuses da intempérie ou mesmo tirar partido da adversidade. Era frequente cruzarmos com aquela criatura que alcunhávamos de Fariseu que, talvez para não tirar o lustro às botas, raramente víamos a pisar moiteira. Ainda assim, em marcha muito lenta e iluminado por potentes faróis de nevoeiro, parecia passar à lupa as zonas mais abertas. Sabendo, como nós, que, as perdizes, com o tempo invernoso, procuram as clareiras onde se sentem mais confortáveis, mas também ficam mais expostas ao perigo.

Nós, ao fim de trinta minutos que pareciam não ter fim, sem vermos um palmo à nossa frente, molhados e gelados até aos ossos, chegámos ao conforto da nossa viatura que nos conduziu à tão desejada Malhada do Rei. Local onde buscávamos melhores condições de tempo.

Era ali, no “nosso” abrigo, no aconchego do parque das merendas, situado no sopé da aldeia e contígua à ribeira, que habitualmente nos reuníamos. Era ali, perto da saída do túnel e usufruindo da hospitalidade daquela gente, que tomávamos as refeições em puro convívio com a natureza e os amigos.   

Desta vez, como frequentemente acontecia, contámos com a colaboração do amigo Manuel. Um homem que depressa arranjou lenha para acender a fogueira. Precisávamos de enxugar a roupa e afugentar o frio que teimava em não nos dar tréguas. Para além de outros predicados, aquele amigo era um profundo conhecedor do viver serrano, que não se poupava a esforços para auxiliar os amigos. Era também um excelente comunicador. Sempre que nos encontrávamos não se cansava de contar estórias, algumas verdadeiras outras nem por isso, mas todas eram escutadas com a mesma atenção.

A propósito do túnel, ali existente e, destinado ao transvase da barragem do Alto Ceira para a barragem de Santa Luzia, também guardava algumas recordações que fazem parte da história da obra.  

Contava ele que, há menos de uma década, durante o período de verão, as pessoas mais afoitas da aldeia, ainda utilizavam o túnel como via de ligação apeada entre a Malhada do Rei e as povoações de Ceiroco, Camba, Porto da Balsa e outras. Todas situadas do outro lado da serra. Porque, para além de ficar a menos de metade da distância, o seu traçado, quase plano, era mais fácil de percorrer. Ele próprio o utilizara, vezes sem conta, tanto a pé como de trator agrícola. Até para apanhar trutas sem que as autoridades dessem por isso. Sempre que o caudal baixava, algumas trutas ficavam encurraladas nos charcos e bastava utilizar uma pequena rede para as capturar. Também, em algumas ocasiões, chegou a dar boleia, na bagageira do trator, aos amigos que lha solicitavam. No entanto, em todas as deslocações, era imprescindível usar de uma lanterna pois, era a única forma de dar vida aos quase sete quilómetros de total escuridão, mergulhado nas entranhas da terra.

Depois do almoço, que se prolongou por mais de duas horas e onde, para além de um bom tinto, não faltou o tradicional bacalhau e a castanha assada, dirigimo-nos para a Casa de Convívio da aldeia. Ali, tomámos o café e uma excelente aguardente de mel, de fabrico regional, que nos alegrou o espírito.

Apesar das dificuldades por que passámos, no final, regressámos a casa agradecidos à natureza por nada de mais grave nos ter acontecido e prontos para nova etapa se os Deuses nos concederem essa benesse.