sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

O MOEDOR DOS SUBÚRBIOS


Naquele dia, Joaquim Melro, depois de bem almoçado, saiu à rua, acendeu um cigarro e partiu com a intenção de se dirigir ao local onde estacionara o carro. Porém, durante o percurso, deparou-se com o compadre Ricardo que estava sentado à porta da adega, saboreando a sombra da latada que envolvia o edifício, e como normalmente acontecia Joaquim parou para o cumprimentar. Ricardo levantou-se, estendeu-lhe a mão e depois da normal saudação disse em voz bem audível:
   Compadre! Ainda bem que aparece! Acabei de abrir uma pipa e estava precisamente à sua espera para provar a pinga!
A tarde estava quente, mas os dois sexagenários não precisavam de qualquer pretexto para refrescar a garganta com um copo de tinto. Mas aqui, Melro não anuiu prontamente ao convite como seria o normal a esperar. Cofiou o bigode, pensativo, como se fizesse uma análise ao seu historial de tintos e só depois disse:  
    Compadre!... Não me leve a mal, mas hoje almocei bem e bebi melhor! Acho que até já ultrapassei o meu limite! – ao mesmo tempo e enquanto falava ia-se aproximando da porta da adega.
   Deixe-se de filosofias, homem!... Venha daí e vamos provar o vinho! – teimou o Ricardo.
      Bem!... já que tanto insiste, vamos a isso! 
Assim que entraram na adega, Ricardo apressou-se a encher um copo e entregou-o ao Joaquim Melro que, de imediato, o levou à boca e foi sorvendo em pequenos goles como se de um enólogo se tratasse. No intervalo de cada gole, mascava como se analisasse os extratos do néctar. Enquanto ele saboreava o vinho, o compadre observava-o, atentamente, à espera de um parecer entendido e no final questionou:
       Então que tal?
  Este palheto é muito aveludado, mas hoje o meu paladar não está, suficientemente, apurado para analisar vinho. Talvez depois de beber mais um copito ou dois lhe possa dar uma opinião mais avalizada! 
       Não seja por isso, compadre! Caramba, a pipa está cheia!
 Pois!... Mas não posso abusar! Sabe que está na hora de travar os apressados e não vá a minha missão altruísta virar pesadelo…
Após a reforma, Melro descobriu um processo invulgar de ocupar o tempo. Como discordava da velocidade que o trânsito fluía na estrada nacional resolveu colocar em prática um método para tentar impor alguma moderação à circulação automóvel. Assim, passou a fazer o percurso várias vezes ao dia, no seu carro, a partir da povoação onde vivia, até à entrada da cidade e vice-versa, numa distância aproximada de quatro quilómetros. A marcha que utilizava era tão lenta que só muito raramente chegava aos trinta quilómetros hora, estimulando, deste modo, a paciência de muitos condutores. Mentalizou-se que, com a sua intervenção, para além do divertimento pessoal, prestava um bom serviço à comunidade local, servida por aquela via.
   Ah!... Então é por causa disso que o compadre Melro hoje está esquipático? Deixe essa tarefa às autoridades que é para isso que pagamos impostos! 
       Vossemecê fala bem! – fez uma pausa para acender um cigarro, libertou uma densa baforada e continuou: – Com os políticos não podemos contar que só se preocupam em tratar dos seus próprios interesses. A polícia raramente cá passa e ninguém quer saber da nossa segurança. Eu ainda nem sei para que servem os limites de velocidade de 50 Km/hora, quando eles passam aqui a mais de 100! Até estou admirado como é que aqui ainda não ocorreram acidentes. 
    Pois!... Mas tenha cuidado! Olhe que eu já ouvi comentários muito desfavoráveis à sua pessoa, sabe que aquilo a que chama missão altruísta perturba a vida a muita gente.
        Francamente, não me diga que também está do lado deles! Olhe que eu não esperava isso de si! 
     Oh Melro! Parece que me conhece há dois dias! Eu apenas o estou a aconselhar. Nunca se sabe quando aparece algum diabo capaz de lhe dar uma “cachaporrada”. Vontade parece que não lhes falta! Bom!... Deixemos isso e vamos beber mais um tinto que como este o compadre bebe pouco! 
    É melhor é! A conversa deu-me securas – disse Melro forçando um sorriso. Esperou que Ricardo enchesse os copos e de seguida bebeu o seu de um só trago e no final exclamou: – Parabéns compadre! Este merecia ser premiado com a medalha de ouro! 
        Se o Melro o diz! 
      É muito bom! Mas voltando ao assunto!... Ai daquele que me tente agredir que não perde pela demora. Era só o que faltava, proibirem-me de transitar na via pública as vezes que eu quiser!
  A discordância deles reside apenas na velocidade, muito lenta, que vossemecê imprime ao seu carro, que provoca a ira de alguns automobilistas. Sabe muito bem que, em mais de quatro quilómetros, é proibido ultrapassar! – disse Ricardo, enquanto voltava a encher os copos.
   Paciência! O meu carro, que agora apelidam de papa-reformas, não dá mais de 30 Km/hora, quem tiver pressa que se vá queixar ao construtor – interrompeu a fala para beber mais um tinto e no final, com visível ansiedade, acrescentou: – Até já, compadre Ricardo! Agora, vou dar a volta ao percurso e no regresso, se cá estiver, bebo mais um copo!  
Assim, já bem bebido, Joaquim Melro ocupou o lugar ao volante do seu carro e abalou deleitado para mais um dos seus passeios. Logo que entrou na estrada nacional, em direção à cidade, foi brindado por uma buzinadela de um transeunte já familiarizado com aquela habitual marcha lenta que o forçava a uma penitência cansativa. Mas as contestações não desalentavam Melro, antes pelo contrário, extravasava até um certo divertimento, face aos protestos evidenciados pelos condutores, através de gestos e graçolas.  
Logo que terminou a primeira parte da viagem, antes de inverter o sentido de marcha, decidiu parar para comprar tabaco. Despreocupado, estacionou o carro da forma que lhe pareceu mais cómoda e entrou no café. Quando se abeirava do balcão notou que, tinha bebido em excesso, estava a ficar tonto, sentou-se, pediu um café e ficou a aguardar que as suas faculdades lhe permitissem regressar a casa.
Meia hora mais tarde, sentiu-se melhor e resolveu retomar o seu itinerário. No entanto, quando chegou junto ao carro, verificou que este havia sido vandalizado. Tinha várias manchas de tinta escura por toda a estrutura que contrastavam nitidamente com a cor branca, original da viatura. Não se cansou de protestar a plenos polmões, mas como não obteve resposta ocupou o lugar ao volante sem se lembrar mais do motivo que o levara ali e partiu de tal modo perturbado que espevitou o carro até aos setenta quilómetros hora, que era a velocidade máxima que na realidade atingia. Contudo, a determinada altura, ao entrar numa curva, carregou no pedal do acelerador em vez de acionar o travão e entrou em despiste de encontro a uma barreira. Ainda assim, para além de danos materiais avultados, saiu fisicamente ileso. No entanto, quando abandonava o habitáculo, parou junto a si um carro da polícia.