sábado, 10 de abril de 2021

ROÇADA NA SERRA

 

Ainda mal refeito da jornada da véspera, o ti Manuel da Fonte saltou da cama logo que o relógio da sala bateu as quatro horas da manhã. Por norma dormia pouco, mas quando agendava um compromisso para a madrugada do dia seguinte quase não pregava olho a noite toda. Assim, logo que se ataviou, despediu-se da esposa e passou pela cozinha para tomar a dejejua. Como era seu costume, comeu dois figos secos, bebeu uma golada de aguardente, muniu-se do indispensável e partiu apressado. Logo que chegou à rua, olhou o céu estrelado e concluiu, para seu gaudio, que o dia iria estar risonho. Deu alguns passos, pegou no acendedor clandestino e acendeu um cigarro, com tabaco da sua produção, que embrulhara na véspera, numa mortalha de capa de milho.

Embora não tivesse licença do isqueiro e o plantio do tabaco estivesse vedado ao comum dos cidadãos ele não se amedrontava. Indiferente à fiscalização, numa espécie de rebeldia ao sistema político vigente, usava o acendedor, em qualquer local público, sempre que precisava. Da mesma forma rebelde, cultivava as plantas sob a ramagem dos medronheiros para iludir a fiscalização. Ao mesmo tempo, com essa forma de cultivo, conseguia um crescimento mais viçoso e uma qualidade mais apurada. Logo que as folhas atingissem a maturidade migava-as e secava-as à sombra, um processamento que, segundo dizia, dava ao tabaco puro um sabor mais aveludado.

Agora, enquanto se deslocava, libertou duas baforadas que impregnaram o ar com um aroma alcoviteiro e, encaminhou-se para o estábulo que distava da sua residência perto de cem metros. Precisava de aparelhar os bois para mais uma jornada de trabalho árduo. Apesar dos animais serem dóceis, mesmo para um carreiro com a sua experiência, atrelar uma parelha, era sempre uma operação demorada.

Tinha, nos seus sessenta anos, uma vida marcada pela labuta constante, porque os tempos de carência, de meados do século XX, assim o obrigavam. Embora a idade já recomendasse alguma contenção em trabalhos mais esforçados, continuava a ser um homem com uma atividade incessante. O seu quotidiano dividia-se entre a faina do campo na agricultura de subsistência e o serviço de carreiro. No carro de bois transportava tudo o necessário: resina, madeira, mato e toda a variedade de produtos agrícolas. Embora nem sempre se alimentasse bem, nunca tinha preguiça para se entregar ao trabalho. Para além do cigarro ao canto da boca, que não abandonava, na sua indumentária usava o habitual fato de cotim, ao que associava o chapéu preto já descolorado pelo uso prolongado.

À semelhança de muitos conterrâneos, só ao domingo, fazia uma pausa nos seus afazeres, cortava a barba, tomava banho e vestia roupa lavada e engomada. Logo pela manhã assistia à missa e assim que terminava a devoção leiloava, no largo à porta da capela, as oferendas destinadas ao Santo Padroeiro. Depois de almoço, por vezes, reunia-se em convívio com os amigos no jogo das cartas.

O ti Manuel da Fonte reservara aquele dia de Maio para roçar uma carrada de mato destinado ao empalho dos milheirais e outras hortícolas. Uma operação importante para as plantas que, devido à elevada temperatura que chegara antes de tempo, estavam a precisar da primeira rega. Independentemente do tempo que se fizesse sentir, o empalho era uma tarefa que se renovava, anualmente, durante a primavera. Logo que as plantas despontassem era tempo de deitar mãos à obra. Agora, para levar a cabo esse trabalho, contava com a colaboração dos vizinhos que, quando souberam da sua intenção, logo se prontificaram a ajudar.

Como ainda estava escuro, logo que entrou no curral, acendeu a lanterna, a petróleo, para se orientar. Embora luz daquela fosse bastante débil ajudava-o a preparar a canga e os arreios para aparelhar os animais. De seguida, levou a parelha ao bebedoiro e só depois a atrelou ao carro. Para concluir a operação, muniu-se de um pedaço de sabão azul e besuntou o eixo do veículo. Queria evitar a chiadeira característica que aquele provocava com o movimento pois, para além de proteger a madeira reduzindo a fricção, também faria com que não despertasse a vizinhança.   

Antes de partir, pegou em dois manelos de palha de milho, destinados à dejejua dos quadrúpedes, e atou-os ao taipal. Também se muniu com sacholas, cordas e roçadoras, tudo material necessário para o corte e transporte do mato. Acondicionou ainda o cesto de verga com o farnel para o mata-bicho: queijo de cabra, uma broa de milho e uma garrafa de aguardente bagaceira. Depois de tudo arrumado, sentou-se na traseira do carro encostado a um fueiro e deu ordem de partida aos animais. Assim, ainda na penumbra, iniciou a marcha ao encontro do cume da serra que distava dali mais de dois quilómetros e que naquela época do ano apresentava um colorido matizado deslumbrante.

Aqueles bois, nos itinerários costumeiros, dispensavam condutor e Manuel da Fonte, já no outono da vida, aproveitava as deslocações em vazio para descansar e passar pelas brasas. Por vezes, só acordava à chegada ao destino ou quando os animais fossem barrados pelas autoridades fiscalizadoras. Na realidade, dar autonomia de condução aos quadrúpedes era uma prática que, além de proibida, poderia constituir um elevado perigo, mas ele confiava nos animais. No entanto, essa ousadia já lhe havia custado uma multa e até altercações. A mais complicada, que chegara mesmo ao confronto físico, fora com um cantoneiro que o tentara impedir de circular alegando que o rodado do veículo danificava o pavimento. Mas ele ia arriscando, que diabo, naquela via em terra batida, também não seria fácil ser apanhado pela fiscalização. Agora, do cantoneiro Juventino nada tinha a recear, para além de se ter tornado seu amigo, só se apresentava ao trabalho por volta das nove horas. Em relação às restantes autoridades não tinha razões de queixa. Então, como a parelha era pachorrenta meteu-se ao caminho sem se preocupar com multas nem, tão pouco, com os ajudantes da roçada que esperava depressa o alcançassem.

Atendendo a que a procura do mato era grande, no dia anterior, percorrera uma vasta área da serra, para onde, agora, se dirigia, em busca de um local onde pudesse fazer a roçada. Queria evitar atritos com os vizinhos porque, na época, não era fácil encontrar uma paveia de mato sem que os proprietários das courelas não criassem obstáculos. Mesmo que não tivessem intenção de o roçar defendiam as suas leiras como se de algo muito valioso se tratasse. Em função disso, Manuel da Fonte, depois de muito procurar, encontrou, naquele terreno baldio, uma encosta de acesso difícil, mas onde carquejas, urzes e moitas, para além de viçosas, estavam no crescimento ideal para roçar. Antes que outro se antecipasse, programou logo a roçada para o dia seguinte.

Naquele tempo, nos minifúndios serranos, durante o mês de Maio, quando as culturas começavam a despontar, era imperioso empalhar mato nos terrenos semeados para assentar a terra. Como as courelas eram de baixa produtividade e algumas de sequeiro que as tornavam ainda mais estéreis, os aldeões faziam todos os possíveis para inverter a situação. Para isso, aconchegavam os pedúnculos das plantas para manter a fresquidão depois das regas. Assim, para o empalho e para as camas dos animais, as gentes serranas buscavam o mato como que se de um produto de primeira necessidade se tratasse. Uma situação que não deixa de ser irónica pois, naquele tempo, queriam mato e não o tinham e hoje há muito não havendo quem o corte.

Naquela manhã, ainda o ti Manuel da Fonte não tinha percorrido um quilómetro quando foi alcançado por um rancho de gente. Entre homens e mulheres eram um total de seis. Logo que chegaram ao destino, indiferentes beleza natural que os rodeava, todos se agarraram ao trabalho com determinação. Enquanto uns cortavam os outros acondicionavam no veículo e, desta feita, depressa se fez a roçada. Assim, por volta das oito horas iniciaram o mata-bicho já com o carro carregado.

Texto que, para além de retratar a realidade serrana de grande parte do século XX, é uma pequena homenagem ao meu avô materno, Manuel Gonçalves Batista, mais conhecido por Manuel da Ribeira que, também ele, ainda muito jovem, abraçou o trabalho de carreiro. À semelhança de muitos conterrâneos, começou bem cedo a calcorrear as serras em busca do pão que o diabo amassou, fazendo o transporte regular de mercadorias, (sal, mercearias, matérias de construção, carvão, etc.), principalmente, entre o caminho-de-ferro da Lousã e as aldeias serranas e vice-versa. Viria a abandonar essa função ao ser chamado ao serviço militar sendo depois mobilizado para Moçambique devido à Primeira Guerra Mundial.