Logo pela manhã, daquele domingo de Dezembro, quando
chegámos ao alto de Fajão, lá mesmo no cume junto aos geradores eólicos, encontrámos
uma Serra risonha e acolhedora, coisa que, naquela época do ano, raramente
acontecia. A atmosfera estava límpida e o sol, que espreitava por entre nuvens
dispersas, tornava a temperatura amena permitindo, assim, um olhar sobranceiro
sobre os horizontes, de um lado, grande extensão do Vale do Ceira, do outro, de parte da
barragem de Santa Luzia. Serra que, para além de nos arrebatar com as suas magníficas
paisagens, também nos convidava para o exercício cinegético que, devido à
pandemia e ao confinamento, só agora nos era possível retomar.
Por volta das dez horas, depois de termos
percorrido mais de dois quilómetros, escalando rochedos e calcando tojos,
carquejas e moitas, já em plena cordilheira do Açor, o Céu fechou-se
rapidamente à claridade e em poucos minutos ficámos expostos à intempérie. Como
que investido de uma imensa crueldade, o vento virou para nordeste fustigando tudo
ao nosso redor e trazendo consigo denso nevoeiro que nos mergulhou na escuridão.
No mesmo instante, as nuvens romperam-se parindo farrapos de neve que, aos
poucos, iam pintando de branco o chão que pisávamos. Uma mudança brusca no
tempo que, para além de nos dificultar a orientação, os movimentos e a
respiração, também nos gelava o corpo.
Eu e o Mário, que era o amigo que me
acompanhava nesse dia, não tínhamos dúvidas que, perante o quadro que nos
envolvia, não seria fácil enfrentarmos a aridez daquela serra nua. Serra que,
quando os Deuses se irritam, não deixa de ser madrasta com os incautos. Nada a que
já não estivéssemos habituados. Em anos anteriores também nos deparámos com
dias de tempo agreste, mas nada daquilo a que, agora, assistíamos. É preciso
realçar que, a época do ano, a altitude e a imprevisibilidade da natureza naqueles
montes, são determinantes na situação do tempo. Assim, mais uma vez, fomos
surpreendidos pela repentina alteração climatérica que não nos permitiu chegar ao
nosso abrigo sem passarmos por toda aquela adversidade.
Apesar da visibilidade reduzida pelo nevoeiro e
da falta do agasalho apropriado para enfrentar o vento gélido, ainda fizemos um
compasso de espera na esperança que as condições, entretanto, melhorassem. Mas,
de nada nos serviu. Depois de alguns minutos, em que nos abrigámos numa rocha
que apresentava uma saliência em jeito de alpendre, o tempo ainda se agravou.
Então, esboçando um esgar de desalento e rendidos à nossa impotência, depressa
reconhecemos que não tínhamos outra alternativa senão tentar regressar à base o
mais rápido possível.
No nosso escalão etário, sexagenário, tudo se
torna mais problemático. O peso das temporadas, agora, já não nos permite facilitar
como o fazíamos em tempos idos. Tempos em que o espírito aventureiro associado
à nossa juventude era compatível com qualquer cenário, por mais complicado que
se apresentasse. Então, sem pensar duas vezes, em lanços quase paralelos e orientados
pelos cães perdigueiros, fomos descendo a montanha, por entre piçarras
escorregadias e arbustos rasteiros, com cuidados redobrados para evitar uma
queda que nos poderia ser fatal.
Não vimos perdizes, mas esse também não era o nosso
único objetivo. Ainda assim, apesar das dificuldades que passámos, não deixámos
de ter uma manhã proveitosa. Porque ali, em plena jornada de caça, o tempo
passa quase sem darmos por isso. Não nos lembramos da pandemia nem de outras
preocupações que ensombram o nosso quotidiano. Para nós, a prática cinegética, não
passava de um pretexto para dialogar com a natureza agreste e, ainda, usufruir da
generosa companhia dos perdigueiros. No meio da dificuldade, ainda assistimos a
uma situação aprimorada e bonita de se ver. Os cães, movidos por uma lealdade
inquestionável, puseram em evidência todo o seu instinto protetor, colaborando
na nossa orientação para fugir ao mau tempo.
Entretanto, quando nos aproximávamos do local
onde deixámos o veículo, fomos surpreendidos por um caçador que, utilizando uma
viatura todo o terreno, parecia desafiar os Deuses da intempérie ou mesmo tirar partido
da adversidade. Era frequente cruzarmos com aquela criatura que alcunhávamos de Fariseu que, talvez para não tirar o
lustro às botas, raramente víamos a pisar moiteira. Ainda assim, em marcha muito
lenta e iluminado por potentes faróis de nevoeiro, parecia passar à lupa as
zonas mais abertas. Sabendo, como nós, que, as perdizes, com o tempo invernoso,
procuram as clareiras onde se sentem mais confortáveis, mas também ficam mais expostas
ao perigo.
Nós, ao fim de trinta minutos que pareciam não
ter fim, sem vermos um palmo à nossa frente, molhados e gelados até aos ossos,
chegámos ao conforto da nossa viatura que nos conduziu à tão desejada Malhada
do Rei. Local onde buscávamos melhores condições de tempo.
Era ali, no “nosso” abrigo, no aconchego do
parque das merendas, situado no sopé da aldeia e contígua à ribeira, que habitualmente
nos reuníamos. Era ali, perto da saída do túnel e usufruindo da hospitalidade
daquela gente, que tomávamos as refeições em puro convívio com a natureza e os
amigos.
Desta vez, como frequentemente acontecia, contámos
com a colaboração do amigo Manuel. Um homem que depressa arranjou lenha para
acender a fogueira. Precisávamos de enxugar a roupa e afugentar o frio que
teimava em não nos dar tréguas. Para além de outros predicados, aquele amigo era
um profundo conhecedor do viver serrano, que não se poupava a esforços para auxiliar
os amigos. Era também um excelente comunicador. Sempre que nos encontrávamos
não se cansava de contar estórias, algumas verdadeiras outras nem por isso, mas
todas eram escutadas com a mesma atenção.
A propósito do túnel, ali existente e, destinado ao transvase da barragem do Alto Ceira para a barragem de Santa Luzia, também guardava algumas recordações que fazem parte da história da obra.
Contava ele que, há menos de uma década, durante o período de verão, as pessoas mais afoitas da aldeia, ainda utilizavam o túnel como via de ligação apeada entre a Malhada do Rei e as povoações de Ceiroco, Camba, Porto da Balsa e outras. Todas situadas do outro lado da serra. Porque, para além de ficar a menos de metade da distância, o seu traçado, quase plano, era mais fácil de percorrer. Ele próprio o utilizara, vezes sem conta, tanto a pé como de trator agrícola. Até para apanhar trutas sem que as autoridades dessem por isso. Sempre que o caudal baixava, algumas trutas ficavam encurraladas nos charcos e bastava utilizar uma pequena rede para as capturar. Também, em algumas ocasiões, chegou a dar boleia, na bagageira do trator, aos amigos que lha solicitavam. No entanto, em todas as deslocações, era imprescindível usar de uma lanterna pois, era a única forma de dar vida aos quase sete quilómetros de total escuridão, mergulhado nas entranhas da terra.
Depois do almoço, que se prolongou por mais de
duas horas e onde, para além de um bom tinto, não faltou o tradicional bacalhau
e a castanha assada, dirigimo-nos para a Casa de Convívio da aldeia. Ali,
tomámos o café e uma excelente aguardente de mel, de fabrico regional, que nos
alegrou o espírito.
Apesar das dificuldades por que passámos, no
final, regressámos a casa agradecidos à natureza por nada de mais grave nos ter
acontecido e prontos para nova etapa se os Deuses nos concederem essa benesse.
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