segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

SIMBA - O ÉPAGNEUL ABANDONADO






Para tentar fugir à intempérie, estuguei o passo, rua fora, entregue às minhas cogitações e sem dar atenção ao que se desenrolava à minha volta. Contudo, a certa altura, olhei casualmente para trás e, então, reparei que estava a ser seguido, a poucos metros, por um cachorrito ainda jovem que, desde logo, despertou a minha curiosidade. Com a graciosidade própria da idade, o animal corria, saltitava e farejava, indiferente ao bulício que nos envolvia e sem perder o meu rasto. Embora eu nunca tivesse tido um cão, achei graça ao seu estilo vivaço e brincalhão, mas continuei apressadamente o meu caminho receando que a chuva me apanhasse no trajeto. Porém, depois de percorrer uma centena de metros, repeti o movimento para o observar e para surpresa minha, constatei que o bicho continuava a seguir-me apesar de cruzarmos com alguns transeuntes que se deslocavam em sentido oposto ao nosso. Perante isso e atendendo à sua idade juvenil, deduzi que me confundira com o seu dono e resolvi esclarecer aquela confusão.
Não se tratava de um rafeiro qualquer era um Épagneul-breton, matizado de branco e castanho, orelha caída, cauda normal, porte de cerca de dois meses de idade e aparentemente mal alimentado. O meu conhecimento em relação a canídeos resumia-se às jornadas cinegéticas onde era frequente cruzar com caçadores que se faziam acompanhar por animais daquela raça.
Perante o quadro que se me deparava e desconhecendo o que acontecera ao cachorrito, fiz, então, várias tentativas para o intimidar, ao longo do percurso, para que se afastasse, mas a sua atitude não poderia ter sido mais surpreendente: sentava-se e movia alternadamente a cabeça para um lado e para o outro, como se procurasse a melhor maneira de me escutar, mas não ligava ao que eu dizia, nem se afastava. Contudo, mal lhe virava as costas retomava a marcha atrás de mim no mesmo estilo alegre e decidido.
Enquanto me dedicava ao Épagneul, o dia fechou-se rapidamente à claridade e uma enorme chuvada abateu-se, repentinamente, sobre a região. A água era tanta que, cada um de nós, procurou refugiar-se o melhor que pode. Assim, corri para uma paragem de autocarro que se localizava no outro lado da rua, onde partilhei o abrigo e troquei banalidades, sobre a intempérie, com outros cidadãos também a contas com o mau tempo. Com a agitação do momento, deixei de ver o cão que provavelmente se teria refugiado debaixo de algum veículo estacionado por perto. Ao fim de alguns minutos, o tempo melhorou e todos seguimos o nosso caminho. Arranquei em passo rasgado em direção a casa que distava dali menos de quinhentos metros sem, no entanto, me lembrar mais do animal.
Na manhã seguinte, quando cheguei à rua deparei-me com o cachorrito deitado no passeio à porta de uma mercearia. Assim que me viu, ensaiou alguns passitos na minha direção exteriorizando o seu contentamento num dócil e apelativo abano de cauda.
Embora, desde o início, tivesse simpatizado com aquele bicho franzino e indefeso, naquele momento, fiquei um pouco indeciso quanto à melhor forma de resolver a situação. Contudo uma certeza invadiu de imediato o meu consciente: o Épagneul devia estar com fome e precisava de ser alimentado. Quanto ao resto, haveria, certamente, tempo para decidir.
Nunca tinha pensado em adotar um cão, desde logo, por o espaço exíguo de um pequeno apartamento que habitava anteriormente não me deixar grande alternativa. Depois, queria evitar um sem fim de burocracias que vão desde o licenciamento até às vacinas, passando pelos chips e seguros. Tudo isso, sem esquecer, naturalmente, os preços praticados pelas clínicas veterinárias que, logo à partida, desencorajam quem pretende ter um animal de estimação. Agora, residia num bairro dos subúrbios, ordenado por vivendas de âmbito familiar, habitado maioritariamente por gente ordeira e trabalhadora, onde raramente surgiam alterações na civilidade. Razão para que também não tivesse tido necessidade de um cão de guarda. Por último, contava abandonar o desporto cinegético para me livrar das infindáveis exigências que, por seu lado, ano após ano, vão reservando aquela paixão primitiva às elites privilegiadas.
Os motivos que, até àquela data, adiaram a decisão, não me deixavam agora, ali, indiferente ao olhar ingénuo e apelativo daquele cachorro que teimava em me seguir. Não sabia a origem do cão, nem conhecia os seus tiques de personalidade, mas acabei por lhe dar abrigo sem equacionar os contratempos que daí poderiam resultar.
Noutras jornadas, ouvira comentar que o Épagneul-breton para além de possuir um faro apuradíssimo é polivalente, tanto a parar como a cobrar qualquer tipo de caça menor. Ainda assim, aquela raça tem uma aptidão especial para a caça de pena. A par destes excelentes predicados, é inteligente, infatigável, dócil, fácil de treinar e é, ainda, dotado de uma admirável fidelidade ao dono. Apenas um senão, é uma raça muito vulnerável às enfermidades e porventura muito mais frágil do que as raças híbridas. Razão que à partida desmotiva muitos donos e até criadores.
Logo que regressei a casa, no final do dia, a minha esposa sugeriu o nome de Simba para o cachorro, com o qual concordei. Assim, depois de lhe dar banho, instalei-o sem sequer conhecer os progenitores, nem tão pouco lhe fazer um pequeno teste de personalidade.
A acomodação do Simba à sua nova casa não podia ter sido melhor: depois de bem alimentado, enroscou-se no ninho e em pouco tempo adormeceu. Contudo, a adaptação iria ser bastante problemática. Logo na segunda noite começaram as reivindicações. Como não queria ficar sozinho desatou a ganir com tal intensidade que parecia querer pôr em alvoroço toda a vizinhança. Porém, logo que algum de nós se aproximava, calava-se de imediato, numa espécie de jogo psicológico para nos convencer a tirá-lo da solidão.
Para além da perturbação inicial, aquele acolhimento viria também a condicionar muita coisa no nosso quotidiano futuro. Desde logo, perdemos alguma liberdade e como se isto não bastasse, ainda ficámos com a casa virada do avesso. Para além de defecar e urinar por todo o lado, escavava o jardim e arrancava plantas com uma persistência interminável. Escolhia para brincar precisamente tudo o que tinha utilidade para nós. Para além disto, sempre que lhe era barrado qualquer acesso, reivindicava com intransigência o seu direito à destruição, traduzido num protesto de latidos ingénuos de ameaça. O resultado, está claro, era um nunca acabar de coisas destruídas. Mas pouco podíamos fazer para o evitar a partir do momento em que decidimos adotá-lo.
À medida que os dias se iam sucedendo, o cachorrito, sem nunca abdicar da sua personalidade, foi-se adaptando às regras e ao seu espaço: escolheu um local para fazer as suas necessidades fisiológicas e deixou de nos transtornar o sono.
Entretanto, já a pensar na nova temporada de caça, resolvi pedir informações a caçadores experimentados com perdigueiros, sobre o melhor método de o preparar para a prática cinegética e ainda me documentei com manuais de treino para o tentar ensinar. Apesar de todo o meu empenho, os primeiros resultados não foram encorajadores. Mas, a partir do momento em que começou a saber distinguir uma simples brincadeira de um treino de obediência básica, que surgiu por volta dos seis meses de idade, tudo começou aos poucos a modificar-se.
Para atingir bons resultados, tive a generosa colaboração de um amigo que um dia resolveu fazer-me uma visita. Logo que se encontrou com o bicho aplicou-lhe a trela e começou por lhe fazer alguns testes para lhe estudar o temperamento, em termos de obediência, timidez e agressividade. Depois prosseguiu com alguns exercícios, tais como sentar, deitar e levantar, partindo sempre da ideia de que, cada um deveria ser de curta duração para não provocar saturação no animal. No final, deu-me algumas dicas sobre a melhor forma de continuar o treino. Onde salientava que todo o cachorro deve ser acarinhado e compensado sempre que os exercícios corram bem.    
Por volta de um ano de idade, passou, de um dia para o outro, a evidenciar alguma agressividade. Começou por atacar as pessoas estranhas que se deslocassem lá a casa, expondo assim os seus instintos ancestrais. Os condutores de veículos de duas rodas tornaram-se nos seus alvos preferenciais. Penso que a sua aversão estaria relacionada com o uso do capacete de proteção por parte daqueles. Numa certa ocasião, o carteiro depois de desmontar do ciclomotor foi entregar o correio, mas como fazia uso do capacete não perdeu pela demora. O cachorro aproximou-se, sorrateiramente, rasgou-lhe as calças e deixou-lhe os dentes marcados numa perna. Também uma vendedeira, que carregava à cabeça os seus produtos agrícolas, ficou imóvel até à chegada da minha esposa, enquanto o cachorro, em estilo intimidativo, descrevia círculos contínuos à sua volta forçando-a a imobilizar-se, sem, no entanto, a chegar a molestar. Comportamento que nos obrigou a tomar medidas preventivas para acautelar outros incidentes.
Numa tarde de verão, resolvi levar o Simba ao rio, para que fizesse algum exercício físico, numa fase do ano em que o tempo convida muita gente para as áreas fluviais. Escolhi propositadamente uma zona que, embora espaçosa e de fácil acesso, era pouco frequentada por banhistas, logo ideal para que o cão se movimentasse sem lhes causar incómodo.
Ainda em casa, prendi-o pela trela para durante a deslocação o defender de alguns condutores apressados que habitualmente conduziam naquela artéria que era a única que dava acesso ao nosso destino. Depois, seguimos pela berma, ao longo de um quilómetro que era a distância que nos separava daquele curso de água.
Era a primeira vez que o animal tomava contacto com aquele local, mas assim que avistou a água ficou de tal modo excitado que salivava abundantemente e não parava de me puxar. Entrámos pela margem direita e logo que chegámos ao areal tirei-lhe a trela para que se movimentasse livremente. Assim que o soltei, entrou água dentro com tal vivacidade que parecia nada o poder parar. Corria, nadava e rebolava na areia, com grande euforia.
Decorridos os instantes iniciais, durante o qual libertou muitas energias, veio ao meu encontro para me desafiar a imitá-lo. Simulava atacar-me e depois afastava-se veloz, mas logo a seguir repetia o movimento provocatório. Tudo isso revestido de uma alegria contagiante. Não resisti. Acabei por me associar à brincadeira e, durante perto de uma hora, diverti-me como não imaginara.
A certa altura, na margem contrária à que nos encontrávamos, surgiu um casal, de um escalão etário a rondar os quarenta anos que se fazia acompanhar por um caniche peludo e gordo que, à distância a que me encontrava, se assemelhava a um ouriço-cacheiro, em ponto grande. Tudo decorria normalmente, até então, mas assim que o pequenote avistou o Épagneul correu desafiante ao seu encontro, ameaçando travar-se de razões com ele, que por sua vez o olhou com curiosidade, mas não lhe dispensou a importância que aquele julgara merecer. Entretanto a senhora, de ar altivo, fingindo tentar conter a suposta ameaça, exclamou:
    Lion, vien ici! Vien ici, mon chéri!
Apesar do chamamento, a pequena fera prosseguiu numa correria desenfreada e investiu areal dentro até entrar na água e perder o pé. Aí as coisas complicaram-se: devido ao seu porte pesado começou, aos poucos, a afundar-se e a ser levado pelo fraco caudal, ao ponto de só ficar com o focinhito à vista. Por mais que se esforçasse não conseguia flutuar e sair daquela situação embaraçosa.
    Vien ici, mon petit! – continuava ela, sem qualquer êxito e sem se aproximar da corrente, mas exibindo um francês todo repenicado. Por sua vez, o homem, em estilo desportivo, deambulava serenamente pelo areal, entregue ao prazer de um cigarro, sem dar importância ao cachorro nem ao que a senhora dizia. Perante o quadro que se apresentava teria de ser eu a socorrer o caniche. Então, sem esperar qualquer êxito, disse:
    Simba! Vai buscar o refilão antes que ele se afogue!
Ele olhou para mim, com ar intrigado, como se quisesse certificar de que eu falava a sério para então agir.
    Vai buscar o peludo! – insisti – que ele é frágil e já mal consegue respirar.
De imediato, o cachorro desatou a correr e depois a nadar no encalce do caniche que, entretanto, já se afastara três dezenas de metros. Logo que o alcançou, abocou-o pelo pescoço e arrastou-o até à areia seca, na margem de onde aquele viera. Depois, receando que o rufia ainda não estivesse suficiente longe do perigo, abocou-o novamente e transportou-o até o poisar junto à madame. Quando viu que me deslocava para ver de perto o que estava a acontecer, deixou a vítima e caminhou vaidosamente ao meu encontro como se esperasse uma recompensa pelo que fizera.
Foi bonito de se ver: não só a façanha do Simba, como a cara de espanto da senhora que ficara tão surpreendida quanto eu. Também o caniche que apesar de ofegante deixava sair uma expressão cabisbaixa parecendo estar rendido à valentia daquele que antes tomara como seu inimigo. Devo confessar que nunca imaginei assistir a uma cena tão genuinamente altruísta, envolvendo o reino animal, o que poderia ser um excelente exemplo para gente, com quem nos cruzamos na rua e que perante uma situação idêntica seria incapaz de dar alguns segundos do seu tempo, para auxiliar o seu semelhante. Fiquei maravilhado com o desenrolar daquela ação digna de ser filmada para que a pudesse rever.
Depois de uma breve conversa com a madame, esta juntou-se ao companheiro que, entretanto, se aproximara de nós e partiram com a mesma ligeireza descontraída com que haviam chegado.
Assim que ficámos a sós, o Simba ficou mais calmo: parecia cansado e as minhas pernas também já acusavam fadiga provocada não só pela falta de treino como também pela areia que tornou aquele exercício muito mais desgastante. Foi uma fuga ao quotidiano em que usufrui da generosa companhia de um amigo. Corri, pulei e brinquei, como um adolescente.
 
 

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

LUA SEDUTORA




Ainda não eram cinco horas da manhã quando João Nicolau despertou à claridade que lhe entrava pela janela do quarto. Saltou da cama, dirigiu-se  à janela para olhar o céu e verificou que a única nuvem visível deixara a lua a descoberto que, assim liberta, inundava de luz todo o lugar de Vale da Ponte. 
Finalmente, depois de algumas semanas tristonhas com chuva frequente, aquela madrugada de março chegara risonha como que anunciando a primavera. Animado pela chegada do bom tempo, Nicolau decidiu partir de seguida para a cafetaria que possuía no outro extremo do lugar. Embora o horário de abertura fosse só às oito horas, antes disso, tinha que se ocupar das tarefas de manutenção e limpeza do todo o espaço comercial.
Nicolau tinha a fama de mulherengo. Uma espécie de diploma que conquistara no Algarve, aquando ali arranjara trabalho no ramo hoteleiro, onde convivera de perto com turistas, na sua maioria nórdicas. Mais tarde, depois de casar com a Josefina foi perdendo esse estilo galã e leviano que lhe dera a fama, mas a esposa continuava desconfiada. Agora, aos quarenta anos de idade, estava estabelecido na terra onde nascera e só pensava em rentabilizar ao máximo o seu estabelecimento comercial. 
Naquela manhã, antes de sair de casa, foi sussurrar ao ouvido da esposa que ainda dormitava: 
–  Podes dormir mais um pouco! Eu vou preparar a esplanada para o dia solarengo que se avizinha. Tenho cá um pressentimento que o negócio vai melhorar. 
–   Deus te oiça, que a vida está difícil! – disse Josefina, que entretanto despertara.
–    De qualquer modo, não precisas de lá aparecer antes das onze horas que eu vou orientando o serviço. 
–   Até parece que me queres ver longe! Ou será que vais ao encontro de alguma apaixonada? 
–  Francamente!... Quero que aproveites a manhã para descansar! – disse Nicolau. 
–    Hum!... Não estou habituada a esses cuidados! Vai tranquilo que eu não te vou incomodar!
–   Como sabes tenho de carregar os frigoríficos, depurar a máquina do café, varrer a esplanada e preparar a montra… Não quero que os clientes reclamem! Ainda não me esqueci da multa que apanhámos por causa do alfacinha. Aquele empertigado que cá veio passar as férias de verão e que por um motivo fútil exigiu o livro de reclamações onde escreveu aquilo que lhe apeteceu. Uma brincadeira que não nos ficou nada barata! – justificou-se Nicolau.
–    Como é que eu posso esquecer de uma coisa dessas? Esse vaidoso que não me apareça mais à frente, senão… De qualquer forma ainda não percebi o motivo da tua pressa! – disse ela.
–    Não sabes que tenho muito trabalho a fazer!... 
–    Ou será que tens lá alguma à tua espera? – teimou Josefina.
–    Para mim és a única mulher e a mais bonita do mundo!
–    Hum!...
Depois de dirigir o galanteio à esposa, Nicolau meteu-se ao caminho decidido a dar início às tarefas a que se propusera. Contudo, logo que saiu de casa, Josefina seguiu-lhe os passos tentando descobrir se o que ele dissera correspondia à verdade.  
A desconfiança dela começara a avolumar-se no dia em que a sua comadre lhe viera contar que Nicolau passara uma manhã inteira a conversar com uma rapariga estrangeira que dias antes ali tinha estado a pedir emprego. Agora, até as vizinhas da Josefina falavam da forma descarada como a rapariga se sentava no café mostrando as pernas de forma exagerada. 
Perante tal falatório, Josefina decidira que logo a oportunidade surgisse iria pôr um fim àquela pouca-vergonha. Foi com essa ideia em mente que meteu os pés ao caminho confiante de que iria apanhar o marido em flagrante. 
Assim, obedecendo à sua intuição, logo que se aproximou do rio, viu o marido especado em cima da ponte, de olhar tão concentrado, como se aguardasse por um sinal vindo da parte do casario que se situava a montante do rio. Para não se denunciar, escudou-se atrás de um tronco de uma Mongólia até ele dobrar a esquina ao fundo da rua. Depois, tentou seguir-lhe a peugada à distância. No entanto, mal ele chegou ao largo que tinha como pano de fundo a sua cafetaria, perdeu-lhe o rasto.  
Para Josefina só restavam duas opções: regressar a casa na ignorância do destino do marido, ou esperar que ele voltasse ao local de trabalho para o questionar com a pertinência que a situação exigia. Então, acabaria por optar pela segunda, mantendo-se de tocaia a um canto afastado. Como ele tardava, tomou a iniciativa de abrir a porta à cafetaria indiferente às perguntas que daí iriam, naturalmente, resultar.

Quando João Nicolau abandonou a viela onde residia e entrou na rua principal, já clareava o dia, mas não se vislumbrava vivalma ao longo da artéria que se prolongava, em linha reta, por mais de duzentos metros. Embora soprasse uma ligeira brisa de leste, que trazia consigo alguma humidade, a temperatura era agradável. Nicolau já não se recordava de ter saído de casa tão cedo. Assim, atravessar o lugar àquela hora da manhã, sorvendo as fragrâncias e os silêncios matinais, não deixava de ser uma deleitosa experiência que tencionava repetir. Entretanto, quando atravessava o rio, olhou casualmente para o largo da fonte, local de paragem das carreiras de transportes públicos e reparou que o seu amigo Horácio se apressava a entrar para um autocarro expresso com destino à capital. Sem saber muito bem porquê, logo que o veículo arrancou, Nicolau parou e deteve-se por instantes a olhar o forte caudal que corria sob a ponte fruto da chuva dos dias anteriores. De repente, veio-lhe à memória o que Francisca lhe dissera na véspera:
–    Amanhã, o Horácio vai a Lisboa. Fico sozinha o dia todo!
Na altura, Nicolau não dera a devida atenção ao que Francisca lhe dizia. 
Agora, aquela conversa já fazia sentido. O terreno estava livre pois, vira o Horácio a embarcar no autocarro.
–   Não, da última vez que estive com ela prometi a mim próprio que não voltaria a acontecer. Além disso, tenho muito trabalho para fazer e na ruela onde ela mora há beatas muito bisbilhoteiras. – pensava ele, como a querer convencer-se do contrário, e continuou – mas não deixa de ser penoso recusar uma oferta generosa daquela mulher bonita e muito carente que, certamente, não me dará outra oportunidade. 
Naquele momento, reconhecia um significado tão real nas palavras dela que não as conseguia afugentar da mente. Nem mesmo a amizade que o ligava a Horácio constituía qualquer entrave pois, nunca tivera preconceitos dessa natureza.
O seu único receio assentava, sobretudo, na exposição aos olhos da vizinhança, especialmente, quando se tratava de mulheres comprometidas como era o caso de Francisca. 
O sol estava quase a nascer e Nicolau tinha que tomar uma decisão antes que surgisse algum transeunte e lhe complicasse as coisas. De repente, como que iluminado por uma ideia genial, retomou a marcha e foi ao encontro dela. 
Depois de deixar a rua principal, percorreu os cerca de cinquenta metros de acesso ao beco com a máxima precaução. Logo que se enquadrou com a janela do edifício que a Francisca habitava, abrigou-se e fez-se anunciar atirando um pequeno grão de areia de encontro ao vidro, tentando, assim, não atrair atenções indesejadas. Como se já o aguardasse, ao fim de poucos segundos, ela abriu-lhe a porta e ele entrou em silêncio.
O tempo foi passando sem que os dois amantes dessem por isso. Uma hora mais tarde, o Quelho dos Gaios, como era conhecido, o beco onde Francisca morava, tornou-se barulhento criando, assim, enormes preocupações a Nicolau. 
–   Está na hora de ir abrir o café! – sussurrou  Nicolau, ao ouvir o ambiente ruidoso que os envolvia.
–   Ainda é cedo! – disse ela, puxando-o para si.
Nesse momento bateram à porta. Batimento que gelou de imediato os corações ainda afogueados dos dois amantes. Nicolau ficou de tal modo perturbado que saltou da cama e agarrou a roupa com determinação, acabando por vestir as calças do avesso. 
–    Quem é? – questionou Francisca, um pouco estonteada, enquanto tentava apanhar o roupão. – Quem é? – repetiu no mesmo tom atabalhoado. Como não obteve resposta, foi espreitar à janela com o coração acelerado. Deparou-se com a dona Miquelina, a sua sogra, que de imediato disparou:
–    Caramba, até parece que estás surda! São lá horas para estar na cama! 
–    Estou com dores de cabeça! – respondeu Francisca.
–    Trata de abrir a porta! Quero falar contigo! 
Ao ouvir a voz impertinente da Miquelina, Nicolau ficou ainda mais inquieto. Não pensou duas vezes. Com a ajuda da Francisca saltou por uma janela que dava para as traseiras do prédio e aí se manteve até tomar consciência de que o seu caminho estava desimpedido.

Entretanto, na cafetaria, um dos primeiros fregueses foi o Saraiva, um negociante de madeiras, que passava por ali com alguma frequência. Depois de ter pedido um café, questionou: 
–    Então, o amigo Nicolau ficou a dormir? 
–    Perdeu-se pelo caminho! – respondeu ela, lacónica.
–    Talvez a senhora me saiba informar se ele já vendeu os eucaliptos?
–    Não sei não!
–    Qual será a melhor hora para falar com ele?
–    Isso também eu queria saber! 
–    Foi às compras?
–  As compras devem ter sido outras. Mas quando ele chegar vai ter que me explicar tudo direitinho… – resmungou Josefina, num estilo descortês e carrancudo.
–   Não há problema! – respondeu ele, poisando uma moeda em cima do balcão para pagar a despesa e acrescentando: 
–    Não se rale! Eu passo cá mais tarde!
–    Faça como entender!
Assim, Saraiva, que ocupou grande parte do dia a tratar dos seus negócios, a meio da tarde, voltou ao café para falar com Nicolau sobre os eucaliptos que aquele lhe quisera vender na semana anterior. Passou pela esplanada e atravessou a sala sem ver vivalma. Quando se abeirou do bar apercebeu-se, então, de uma silhueta masculina sentada atrás do balcão. Tinha a cabeça curvada sobre os joelhos numa pose angustiada.
–   Com que então hoje resolveu fazer gazeta? – exclamou Saraiva em forma de saudação. 
Nesse momento, João Nicolau levantou-se com notada dificuldade. Tinha o rosto parcialmente desfigurado por vários traumatismos e uma vista afetada por um enorme hematoma.
–    Afinal que trabalho foi esse? – questionou de imediato Saraiva.
–   Nem queira saber, há dias que não devíamos sair à rua. – respondeu Nicolau, abatido e cabisbaixo.
–    Não me diga que isso foi obra de algum marido ciumento? 
–   Antes fosse, que era sinal de que tinha tido algum proveito! Sabe que gerir um negócio destes não é tarefa fácil. Entra um cliente e paga um copo, a seguir eu pago outro e no final do dia as coisas complicam-se. Assim, ontem à noite, quando regressava a casa, com um grãozinho na asa, dei uma queda que me deixou neste estado.
–    Já foi ao oftalmologista? 
–    Ainda não, amigo Saraiva.
–   A sua vista está muito feia! Vá ao hospital antes que as coisas piorem! Com os olhos não se deve facilitar!
–   É isso mesmo que você acha? – perguntou Nicolau, num estilo acabrunhado, bem longe do seu porte galã que lhe dera fama.
–    Acho que deve ir ao médico quanto mais depressa melhor!
–    Se eu pudesse conduzir até já tinha ido!
–    Feche a porta e venha comigo! Eu vou para Coimbra e levo-o à urgência! 
 –  Nicolau!... Tu não vais a lado nenhum!... – exclamou Josefina que surgiu repentinamente na sala sem que eles dessem por isso, num tom de causar calafrios a um coração empedernido que calou os lamentos do Nicolau. 
–   Francamente, você já reparou bem no estado em que o seu marido tem a vista? – advertiu Saraiva.
–   Sabe o que é que eu acho? É que ele ainda levou poucas! Mas não perde pela demora! 
–    Oh!... Oh!... Isso é lá coisa que se faça, dona Josefina! 
–    Ele que fique bem caladinho, para não levar mais! 
–    Amigo Nicolau e quanto aos eucaliptos?
–    Hoje não estou em condições para falar de negócios.  
–    Então! Você quer boleia ou não? – insistiu Saraiva.
–    Eh!... Eh!... Deixe lá! Acho que não vale a pena, isto passa com o tempo! – rematou o pobre Nicolau.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

MISSÃO ATRIBULADA



Naquele dia, por volta das onze horas, os quatro fiscais fronteiriços faziam-se transportar num volkswagen “carocha”, conduzido por Jean Pierre, o mais novo da equipa. Como todos os veículos daquela marca e modelo tinha o habitáculo bastante acanhado e a bagageira que se localizava à frente, também era pouco espaçosa. O que, para além do desconforto dos ocupantes, também dificultava a arrumação das bagagens.
Os primeiros quilómetros do percurso decorreram com bastante lentidão, mas logo que deixaram o perímetro urbano a velocidade aumentou para não chegarem atrasados ao local de serviço (rendição). Em função disso, mal o velocímetro atingiu cento e dez quilómetros hora a bagageira abriu-se, de supetão, de encontro ao tejadilho. Para além da violência do impacto, ficou a impedir toda a visibilidade para a frente. Embora não tivesse partido o para-brisas, não foi fácil, ao condutor, controlar o veículo na sua faixa de rodagem e evitar um possível acidente de consequências imprevisíveis. Mas, ainda assim, com a deslocação do ar, tudo o que ia no porta-bagagem, onde se incluíam os almoços dos agentes, voou para a retaguarda a tal velocidade que acabaria espalhado pela via e parcialmente destruído.
Quando o carro finalmente se imobilizou, os homens entreolharam-se como se procurassem uma resposta para o que acontecera. Porta mal fechada? Deficiência do material? Mas, antes de equacionar respostas procuraram de imediato minimizar os efeitos do incidente. Começaram por desimpedir a via e regularizar o tráfego. Logo que a situação se normalizou, acondicionaram o que ainda era recuperável. Por fim, detiveram-se na porta da bagageira, desamolgando e forçando a estrutura, para que as dobradiças cedessem e a chaparia se aproximasse da forma original. Não obstante, o aspeto amarrotado da viatura e os sorrisos divertidos de alguns curiosos, que, entretanto, surgiram no local, retomaram a marcha com cuidados redobrados para que o incidente não se repetisse.
Ao fim de uma hora de marcha, a equipa chegou finalmente ao posto fronteiriço do porto de Le Perthus pronta a desempenhar a sua função.  
    Já chegámos! Agora, como vamos resolver o problema? – questionou Jean Pierre, com a ansiedade desalentada de quem nunca se vira numa situação idêntica. Sabia que, para além das avarias perfeitamente justificáveis, qualquer dano era em primeiro lugar da sua responsabilidade. 
    Tenha calma! Tudo se vai resolver! – respondeu o Chefe Henri, aparentemente descontraído, mas a pensar numa forma de arranjar uma solução. Era um cinquentão de sólida formação moral, ponderado e dotado de grande espírito de camaradagem. Todavia, a sua longa carreira ensinara-o a ser cauteloso nas decisões. Assim, depois de uma ligeira pausa, prosseguiu:
    O que me preocupa agora é a falta do almoço! Era uma Quiche Lorraine, que devia estar uma delícia! Mas infelizmente tudo se perdeu. – deixou sair uma sentida gargalhada, como se tivesse achado graça ao que dissera e prosseguiu em tom vincadamente irónico:
    Enfim!... Sobrou um pedacito de pão! A não ser que alguém se lembre de mim e vá ao restaurante buscar o almoço. – aí, os três subordinados entreolharam-se na expetativa de qual deveria tomar a iniciativa.
    Calma, calma, como posso ter calma?!... Já esqueceu que hoje é sábado e as oficinas estão fechadas. – insistiu Jean Pierre com o mesmo ar desalentado. 
    Como ninguém tem nada para dividir comigo, nem para si próprio, tratem de ir buscar o almoço! Penso que hoje ninguém vai ser exigente com a ementa. Para mim basta uma costeleta de novilho! – rematou o Chefe Henri, com ar trocista de quem não esperava ser levado a sério e acrescentou:
    Ah!... Não esqueçam que à refeição gosto de um tinto encorpado.
Sem ripostar e visivelmente contrariado, Jean Pierre partiu em busca de uma solução. Enquanto se afastava, o Chefe Henri, de olho pregado no veículo, não resistiu a um gracejo:
 Pobre carro! Até parece que participou numa batalha!... – De seguida, atravessou a rua, sob a sombra densa de frondosos plátanos, em direção a uma casa pré-fabricada que ficava isolada do resto do casario. Ali, bateu levemente a uma janela que dava para um pequeno jardim, onde lírios e malmequeres se misturavam com arbustos selvagens, na esperança de ajuda.
Longe iam os tempos em que o velho Antoine se dedicava à pesca do marisco, na costa africana. Agora, já quase não saía de casa, a saúde débil e os seus setenta anos de idade já não lhe permitiam entrar nessas aventuras. Na verdade, ia sobrevivendo com uma magra pensão que mal lhe dava para a alimentação e remédios. Para esse rol de dificuldades, muito teria contribuído o naufrágio da sua pequena embarcação, que ocorrera num dia de faina, junto da costa marroquina. A indemnização, que recebeu do seguro, não chegou para os prejuízos e o velho Antoine não voltaria a recuperar a estabilidade económica.
Agora, o Chefe Henri esperou dois minutos, mas como não obteve resposta repetiu o chamamento, com mais vigor. Passados poucos segundos, a esposa do antigo pescador espreitou pelo postigo da cozinha tentando descortinar quem batia. Assim que o reconheceu, abriu a porta suavemente e disse em surdina:
    O Antoine ainda está a dormir!
    Não faz mal, volto mais tarde!
 Não é preciso!... – bradou Antoine, em voz rouca, no seu porte alto e escanzelado, estendendo o braço tisnado sobre o ombro da mulher, dizendo:
    Está bom, amigo Henri?
    Felizmente estou bem! E o amigo Antoine, como tem passado?   
    À medida que me vou aproximando do ocaso da vida, em cada dia que passa, o abismo de incertezas é maior. Cafum, cafum, cafum…
  Amigo Antoine, então, ainda não foi ao médico, como lhe recomendei da última vez que o vi!? 
  Estou farto de correr para lá! Não faz ideia do dinheiro que já gastei! De médico para médico e até agora os remédios não me têm servido para nada. Estou desconfiado que é a mesma moléstia que vitimou o meu parente Lourent!
    Amigo Antoine, isso é lá coisa que se diga? Você nunca teve o vício do tabaco!
    Pois não!
  Bom!... Antes de me alongar mais, lamento tê-lo acordado tão cedo, mas durante a nossa viagem aconteceu o seguinte:…
  Deixe-se de desculpas… homem…, – disse depois de se ter inteirado da situação – nós não nos conhecemos há dois dias! Eu até lhe agradeço ter-me acordado. Quando durmo demais acordo mal-humorado. – estendeu o braço na direção da parede e disse:
  Pegue já na chave do meu carro para aquilo que for necessário. O resto também se vai resolver... Cafum, cafum… Vou falar com o técnico e daqui a pouco já lhe digo mais alguma coisa! – disse o Antoine.
Enquanto esperavam pelo resultado das diligências de Antoine, as mentes dos quatro fiscais afundavam-se num mar de congeminações que só poderiam terminar com a reparação do volkswagen.
Não esperaram muito tempo! Ao fim de vinte minutos, chegou junto deles o bate-chapas que esperavam, precisamente, no momento o Chefe Henri e os subordinados devoravam dois franguitos de aviário que o Jean Pierre trouxera. Embora ainda lhes sobrasse apetite e a travessa já estivesse quase vazia, estenderam o convite ao homem que aceitou, sem hesitar, a pretexto de fortalecer o estômago para um gole de vinho.
Depois de se inteirar da dimensão dos danos na viatura, o bate-chapas disse:
    Podem ficar tranquilos! Antes da meia-noite fica pronto.
Entretanto, a circulação na fronteira foi-se processando sem problemas de maior. Contudo, a meio da tarde, os agentes foram surpreendidos por um veículo vindo do lado espanhol que se aproximava em marcha rápida, debitando do escape muitos decibéis, ampliados pelo som de duas colunas que despejavam música rock. Era um jovem francês, com ar estonteado, que, ao aproximar-se do controlo, resolveu atuar em antecipação, estacionando em plena faixa de rodagem. Logo a seguir, saiu a correr em direção ao posto, mas tropeçou no lancil e acabou estatelado no passeio. Apesar disso, levantou-se com a mesma genica com que iniciara a deslocação e irrompeu bruscamente porta dentro, exclamando:
  Estou com pressa para chegar a casa e não tenho nada a declarar! posso seguir? 
Sentado à secretária, O Chefe Henri levantou a cabeça franzindo a testa e olhou-o como se lhe pesquisasse a alma, mas continuou a ler o processo que tinha à sua frente fingindo que aquela conversa não lhe dizia respeito. Uma das suas virtudes era a tolerância, mas não pactuava minimamente com qualquer forma de irreverência. No entanto, a experiência ensinara-o que neste tipo de situações devia encarar os problemas com frieza, ser comedido nas palavras e ponderado na atuação. Por isso, falava apenas o essencial e disse:  
    Aguarde um momento que o agente Augustin já vai tratar do seu caso!
   Afinal, o que é que têm contra mim? Não vê que estou com muita pressa! – atirou o forasteiro, de modo arrogante.
  Mostre-me os documentos para tratarmos do assunto! – disse calmamente Augustin.  
    Aguarde um instante, enquanto os vou buscar ao carro! – deu meia volta e saiu apressado. Enquanto o condutor se afastava, o Chefe Henri, adivinhando sarilho, fez uma ligeira pausa no que estava a fazer, baixou lentamente a persiana como se quisesse preservar a privacidade e, olhou apreensivo na direção a Augustin que, entretanto, se posicionara de forma a vigiar todos os movimentos do forasteiro. Depois, sabendo da imprevisibilidade humana, ficou atento a tudo o que pudesse surgir do exterior. Volvidos alguns segundos, o homem regressou com os documentos na mão e exteriorizando um sorriso provocador que, por si só, não indiciava um desfecho pacífico.
    Estão aqui, mas são meus! – exclamou.
 Faculte-me os documentos que tenho outros assuntos para tratar! – disse Augustin calmamente.
 Francamente, ainda não viu que eu não os vou entregar! – respondeu de imediato o condutor. Como o Chefe previra, estava a chegar o momento de intervir. Não podia deixar prolongar mais aquela linguagem de desafio sob pena de perder o controlo da situação. Assim, num gesto enérgico e sem esboçar comentários, levantou-se, afastou a cadeira para longe e avançou decidido para o forasteiro. Pegou-lhe pela gola do casaco e levantou-o meio metro acima do solo, dizendo em tom inalterado:
    Faça o favor de entregar os documentos ao meu colega!
O forasteiro, que não esperava uma reação tão inesperada, esboçou um ar de espanto pela surpresa, esticou o braço trémulo e entregou de imediato os documentos a Augustin.
    Muito bem! Pode ter a certeza que escolheu o local e as pessoas erradas, para extravasar as suas frustrações! – disse o Chefe Henri, no momento em que o colocava no chão.
    Peço desculpa, que eu não estava em mim!
    Então, vamos ver se nos entendemos de uma vez por todas! Não tem o direito de descarregar a sua má disposição sobre estas almas pacíficas e cansadas de aturar gente mal formada como o senhor! – rematou o Chefe. O condutor, que ouviu sem tirar os olhos dos agentes, fez um trejeito de concórdia, com a cabeça e murmurou:
    Têm toda a razão! A vida não me tem andado a correr bem. Por isso, peço desculpa pelo que aconteceu.
Logo que foi submetido ao controlo normativo, seguiu viagem no mesmo estilo estonteado. Os agentes lá continuaram na sua função, aturando indisposições e iludindo o cansaço.
Com o passar lento das horas, o crepúsculo caiu quente sobre aquele vale fronteiriço. Entretanto, uma aura suave, soprando de Sul, trazia consigo nuvens densas de mosquitos, famintos, que transformavam aquele local num calvário permanente. O Chefe Henri, desfrutando de um cigarro confortador, ia afugentando, por sufoco, os insetos que empastelavam o espaço reduzido da sala.
Mais tarde, pelas vinte e três horas, o “carocha”, dava entrada nas instalações e com ele chegava também a tranquilidade dos homens. O retorno da viatura pusera fim a várias horas de expetativa impaciente, tendo sempre presente que de um momento para o outro poderiam surgir complicações de vária ordem. Mas desta vez tudo decorreu sem imprevistos!


terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

O POLÍCIA AUSTERO







Enquanto João Pimenta, acompanhado por um grupo de amigos, aguardava que o almoço lhe fosse servido aproveitou para relatar o que lhe acontecera no dia anterior:
    Antes de mais – começou ele – faço questão de pedir alguma tolerância aos presentes, especialmente aqui ao meu amigo Gervásio, que é militar do exército e como tal ligado à disciplina militar, para alguma frase menos simpática da minha parte, mas quero, desde já, salientar que não tenho a mínima intenção de ofender quem quer que seja e muito menos os amigos.
    Francamente, fale à vontade homem! Era só o que faltava! Não obstante um conjunto de normas, recentemente implementadas, que parecem visar a privação de algumas liberdades, ainda não existe censura no país! – contrapôs o Gervásio.
    Então foi assim! – prosseguiu João Pimenta – quando regressava a casa, acompanhado aqui do meu compadre Sebastião, depois de ambos termos participado numa largada de perdizes num monte alentejano, na região de Avis, passei por uma situação bastante delicada. Como todos sabemos, por mais cuidado que tenhamos, nem sempre é fácil cumprir as regras de trânsito e ao mínimo descuido ficamos logo inquietados. Assim, quando me aproximava da cidade de Tomar, entrei por uma via secundária, para responder a uma necessidade fisiológica. Até aqui, nada mais natural, acontece a qualquer um e quando menos se espera. Porém, no regresso, logo que me apercebi de que para retomar o meu itinerário teria de percorrer uma distância superior a três quilómetros, resolvi atalhar por uma viela que não tinha mais de quinhentos metros e dava acesso direto à estrada principal. Com um senão, tinha um sinal de sentido proibido do lado em que eu me deslocava. É claro que àquela hora havia pouco trânsito e não pensei duas vezes. Arranquei, estrada fora, com o cuidado indispensável para não colocar a nossa vida em risco nem a de terceiros. Contudo, para mal dos meus pecados, mal percorri uma centena de metros deparei-me com um carro da polícia, parado na berma, onde os agentes pareciam estar a acertar contas com um pobre diabo qualquer que, certamente, cometera o mesmo delito que eu. Evidentemente que não liguei à sua presença e continuei normalmente o meu caminho esperando não hipotecar a minha boa disposição. Não perdi pela demora. Assim que os agentes me viram, ouvi uma forte apitadela que até assustou aqui o meu compadre. Confrontado com o som agudo da advertência, travei repentinamente e olhei em redor fingindo descortinar de onde partira o aviso. Contudo, logo que me encarei com um agente, questionei-o em voz alta:
    Há algum azar senhor polícia?
 O senhor está a circular em sentido proibido! Não viu o sinal? – disse prontamente o agente, que no momento me lançou um olhar impertinente de quem há muito esperava por uma transgressão.
    Qual sinal? – questionei fingindo desconhecer do que ele falava.
  O sinal que está colocado no cruzamento, mais precisamente no local onde entrou nesta via! – respondeu o polícia enquanto se deslocava ao meu encontro para me solicitar a documentação.
  Mais essa! Não! Não vi sinal algum senhor polícia! Só se estiver escondido atrás de algum arbusto, como acontece em muitos locais por este país fora! – repliquei, pensando daí retirar dividendos.
    E o cavalheiro que o acompanha também não viu o sinal?
    Oh!... Ele nem sequer tem carta de condução e muito menos conhece os sinais de trânsito! – atalhei de imediato, para evitar que o Sebastião abrisse a boca, receando que derrubasse as minhas defesas.
    Então saia do carro e venha comigo! Vamos lá confirmar para a eventualidade de, entretanto, ter sido arrancado! – ordenou o polícia com cara de poucos amigos.
Embora eu soubesse que tinha cometido a infração, tentei fazer prevalecer o meu ponto de vista para ver se me safava. Então, saí do carro e acompanhei o agente até ao cruzamento onde eu entrara que era precedido de uma ligeira curva. Assim que chegámos junto do sinal, o polícia, não se ficou por meias palavras, olhou para mim de semblante carregado e disparou:
    Se o senhor não viu um sinal deste tamanho, francamente, sou forçado a dizer-lhe que está a precisar de óculos! Tenho de o propor a uma junta médica!
 Tem toda a razão! Não reparei no sinal! – respondi, engolindo em seco e ouvindo atentamente o que ele me dizia.
    Muito bem! Está provado que desobedeceu à sinalização vertical colocada nos termos regulamentares! Portanto, por muito que me custe, sou forçado a levantar-lhe uma coima! – aventou de imediato o polícia.
    Deixe passar isso, homem!... Sabe que ultimamente tenho andado com o sótão desarrumado, devido a um rol infindável de complicações que o senhor nem imagina! – disse eu.
    Uma coisa não tem a ver com a outra!
   A minha atitude não foi intencional e ainda lhe digo mais, foi a primeira vez que tal coisa me aconteceu! E pode acreditar que tenho percorrido o país de norte a sul! – respondi-lhe, tentando amolecer a sua vontade de me multar, mas ele não me pareceu estar pelos ajustes.
    Então, fique sabendo que hoje já ouvi cinco versões idênticas à sua! Se eu lhe tivesse dado ouvidos ainda não tinha elaborado nenhum auto.
    Acredito, mas o que acabei de dizer é a pura verdade!
  Tenho muita pena, mas não o posso atender! – retorquiu ele com um leve sorriso que me pareceu de satisfação.
Aí, quase perdi as estribeiras e apesar do agente estar a cumprir a sua função, passei ao ataque tentando com isso tirar alguns dividendos e acrescentei de imediato:
    É fantástico! Percorro diariamente as estradas da região, desde que começou o tempo invernoso, já lá vão quase dois meses e nunca por aqui vi um polícia. Hoje, para mal dos meus pecados, assim que apareceu uma réstia de sol, já estou inquietado. Francamente! Será que vossas excelências não têm nada mais importante para fazer, ou estavam precisamente à minha espera para me chatear? Não vê que já venho farto de trabalhar! – ripostei quase em tom de desafio. Mas o agente continuava a escrever numa calma tão perturbante que parecia ignorar o que eu dizia, mas logo que me calei disse-me em tom vincadamente irónico:
    É isso mesmo! Como é que adivinhou? Mas aconselho-o a moderar os seus comentários!
    Não me diga que não me posso defender! – insisti.
   Tem todo o direito do mundo, desde que não ultrapasse o limite! – respondeu ele.
Eu via nos seus olhos que perante as minhas afirmações de desafio fazia um enorme esforço para não me responder de forma rude, como as minhas palavras indelicadas poderiam merecer. Ainda assim, limitou-se a uma pequena advertência para além de, naturalmente, de me punir. Mas, em abono da verdade, agora até acho que foi bem aplicada. Eu estava a pedi-las e apenas me limitei a dizer:
    Quer então dizer-me que já ganhei o dia, não é?
  Interprete como achar mais conveniente! Como sabe, estou a desempenhar o meu trabalho e não posso branquear as situações de infração só para agradar ao transgressor. Para isso, não valia a pena estar aqui. Bastaria colocar cá um placard, com a fotografia de um polícia, que dava o mesmo resultado e não precisavam de me pagar o ordenado! O que é que acha desta minha ideia?
    Que vocês arranjam sempre maneira de dar a volta ao texto como melhor vos convém! – respondi sem dar o braço a torcer.  
    Francamente, não me diga que não tenho razão? – insistiu o polícia com ar risonho de quem sabia ter ganho a causa. 
    Olhe, fique com a razão toda para si! Aquilo que eu sei é que, quem ganha a vida honestamente, por mais que tente, nunca consegue evitar os sarilhos.
   É o seu ponto de vista! – rematou ele, no momento em que me mandava assinar o auto.
No final, apesar de todo esse meu sentimento de indignação, fiz inversão de marcha e arranquei estrada fora, rindo de mim próprio pela forma corajosa como dei voz ao meu protesto. De qualquer modo, devo confessar que a caçada nesse dia me ficou muito cara.
Agora de uma coisa tenho a certeza, aquele confronto verbal a par da multa serviu-me de emenda para futuras situações. – rematou, João Pimenta, terminando a sua história, sem que os companheiros o tivessem interrompido.