Naquela manhã, André Sargaço despertou ao som estridente da uma sirene que, pela crescente
intensidade do ruído, parecia convergir para a pensão onde pernoitava.
Decorridos alguns segundos, ouviu a derrapagem de uma travagem brusca que pôs
termo àquela sinfonia perturbadora deixando no ar, apenas, um som monótono que
parecia provocado pelo movimento dos rotativos luminosos instalados num
veículo, completado, logo a seguir, por vozes que, apesar de indecifráveis,
soavam alvoraçadas.
Impelido por automatismos
adquiridos em palco de guerra, saltou da cama e correu à janela na perspetiva
de se inteirar do que estaria a acontecer. Através das frinchas da persiana viu os
flashes azuis libertados pelos pirilampos de uma ambulância que lhe tolhiam
parcialmente a visão. Com a cautela indispensável para não despertar a
curiosidade exterior, levantou parcialmente o estore, e presenciou grande agitação à volta do veículo de
socorro. Junto daquele encontrava-se um homem prostrado nos paralelos do
passeio a quem dois socorristas tentavam prestar ajuda. Então, abriu a
janela e escutou vozes que sobressaíam de entre o aglomerado e que indiciavam
tratar-se de uma agressão a um transeunte. Pelo que ouviu, no meio de palavras
de ordem “vivas à liberdade e morte aos pides”, chegou à conclusão de que o ferido teria sido confundido com um colaborador da extinta PIDE. Embora André Sargaço não concordasse com tal método de justiça também já nada podia fazer para o evitar.
Depois do ferido ter sido transportado ao hospital, André Sargaço, ainda à janela
e mal refeito com o que acabara de ouvir, levantou totalmente o estore e lançou um olhar
demorado pela avenida como que saboreando o bom tempo que se fazia sentir.
Estava de regresso à capital, onde vivera cinco anos antes de partir para
cumprir o serviço militar, que agora começava a despertar para o seu habitual frenesim.
Parecia ter a mesma rotina como acontecia antes de deixar a cidade, já lá iam perto
de três anos. No entanto, agora, notava algumas alterações, não só pelo que
acabara de assistir, como ainda, verificava que algumas fachadas dos edifícios
estavam decoradas com slogans, de toda a espécie, alusivos à revolução de 25 de
abril.
Dali, zona central da
cidade, observava que os plátanos se iam despindo de folhagem permitindo,
assim, uma melhor visibilidade da extensa artéria. Os transeuntes
movimentavam-se à pinha inundando os passeios num constante vaivém de marcha
apressada e feições carregadas que pareciam esconder as muitas frustrações que
a democracia ainda não havia preenchido. Nas faixas de rodagem, os automóveis
começavam a amontoar-se em filas e os ocupantes aguardavam, com notada
impaciência, a ordem do sinaleiro que, em cima da peanha, regularizava o
trânsito de veículos e peões. Um cantoneiro da higiene, com aspeto sonolento, varria,
com lentidão, folhagem, beatas e outros detritos que conspurcavam a via. Na
praça de táxis, um passageiro gesticulava, irritado, contestando a tarifa que o
motorista lhe queria aplicar. O relógio da fachada principal do edifício da Estação do
Rossio assinalava oito horas em ponto. À entrada daquele, no piso térreo, junto
ao primeiro degrau da extensa escadaria, movia-se um ardina que apregoava os
jornais matutinos, numa ladainha contínua e rouca, lembrando um cântico penoso
e longínquo, quase um lamento. Um pouco mais adiante, ouviam-se os pregões de
um cauteleiro que ecoavam ao longo da avenida. . .
Como que contagiado por
aquele fervilhar de vida que lhe despertou o apetite, André Sargaço ataviou-se com roupa aligeirada que comprara em Luanda com o resto do dinheiro que não conseguira transferir para Portugal e logo a seguir correu para a sala de jantar em busca do pequeno-almoço. Ali, cumprimentou a
empregada que aguardava a chegada dos hóspedes com um sorriso acanhado que lhe
dava graciosidade. Logo que terminou a
refeição matinal, despediu-se da moça e partiu sem destino definido.
Na tarde
do dia anterior, desembarcara no Aeroporto de Lisboa num avião comercial ao
serviço do Exército Português. Uma viagem que pusera fim à sua comissão militar em Angola,
que se prolongara por dois longos anos. Era o fim da incerteza no regresso e
início de uma nova etapa. Agora, era tempo de retomar a vida que abandonara
aquando fora chamado a servir a Pátria. Mas, para isso, precisava, em primeiro
lugar, de recuperar psicologicamente. Sim, porque depois de uma longa servidão,
sob stress constante, precisava de tempo para se adaptar à nova realidade do seu
quotidiano e do país. Contudo, agora, a cidade, não lhe parecia o local mais
apropriado para a sua recuperação psicológica, atendendo aos tempos conturbados
que vivera em terras de África e ao ambiente revolucionário com que, agora, era confrontado. Logo que possível iria, certamente, seguir outro rumo.
Quando chegou à rua, André
Sargaço respirou fundo como que sorvendo a ligeira brisa que soprava da barra
do Tejo. Acendeu um cigarro e dirigiu-se ao quiosque que ficava implantado em
pleno passeio a escassos cinquenta passos. Queria comprar tabaco e uma cautela
da lotaria. Embora não tivesse sorte ao jogo resolvera comprar um vigésimo como
forma de registar o seu regressado à capital. Então, passou os olhos pelos
títulos dos jornais expostos, à mistura com revistas para todos os gostos, que,
como normalmente acontecia, relatavam assuntos de âmbito nacional e internacional.
Contudo, quando se aproximava do balcão surgiu à sua frente um estropiado,
agarrado a uma cadeira de rodas, que, a custo, se movimentava na sua direção e
que apelava à caridade dos transeuntes. Pela tatuagem que aquele ostentava num
braço e que lhe era familiar, André Sargaço concluiu que se tratava de um deficiente
da guerra colonial.
A ditadura nunca o
deixara mendigar, mas agora já se podia movimentar, livremente, pela cidade. Já
não tinha receio de mostrar a sua enfermidade. A liberdade de movimentos parecia
ser a única conquista que a democracia lhe havia trazido. Escondidos pela
ditadura, agora, os pobres, mutilados e outros deficientes, já eram visíveis.
No confronto com a enfermidade
daquele homem, André Sargaço considerou-se um afortunado, atendendo a que
também calcorreara terrenos em que o perigo espreitava a cada passo e regressara,
fisicamente, incólume. Então, pegou na nota de vinte escudos que destinava à
lotaria e entregou-lha. Após o agradecimento do mendigo que, certamente, não
esperaria uma esmola tão generosa deu por si a pensar nas conquistas que a revolução
tinha trazido ao país e apenas vislumbrou a liberdade de expressão e o fim da
guerra colonial. No entanto, lembrou-se dos militares que ainda continuavam em África
e chegou à conclusão que a realidade no terreno era totalmente diferente do que os políticos propagandeavam. Ali, os agitadores que se infiltravam nas sessões de esclarecimento que se destinavam a preparar a transição causavam
crispação crescente entre os guerrilheiros dos movimentos de libertação e os militares
portugueses viam-se envolvidos em escaramuças que não estavam autorizados a
debelar… Porém, agora, esse assunto estava entregue aos políticos oportunistas e iluminados por ideologias revolucionárias mais interessados em agradar aos antigos inimigos com total abandono das tropas portuguesas que ficaram desarmadas e entregues à sua sorte.
Depois daquele episódio
que debilitou o seu estado de alma, demandou, rua fora, sobre um manto de
folhagem morta que se misturava com detritos caídos de contentores a abarrotar
de lixo. Mais adiante foi surpreendido por uma barricada de rua formada
por uma mescla de políticos de ocasião. Um bando de inúteis, cabeludos mal encarados, com calças à boca de sino, que controlavam carros e peões à procura de fascistas. A maioria delinquentes e vadios que, sob as capas partidárias, semeavam a desordem. À mistura com gritos de "terra a quem a trabalha" intimidavam e identificavam os transeuntes,
entoando outros slogans progressistas alusivos ao momento e à liberdade. Uma forma
revolucionária que, para ele era novidade, mas, ainda assim, colaborou com
horda tentando evitar males maiores.
Enquanto deambulava
naquele cenário decadente, acendeu mais um cigarro saboreando o prazer das
baforadas como se a nicotina o ajudasse a equacionar novo rumo para a sua vida.
O vício do tabaco era mais uma pesada herança da vivência colonial que agora lhe
parecia difícil de combater. Acendia um cigarro com o outro quase sem dar por
isso, nem sequer equacionava os malefícios que tal prática lhe poderia causar à
saúde. Contudo, quando pensava no assunto, prometia, a si próprio, fazer os
possíveis para tentar recuperar a liberdade em relação ao vício.
Na continuação da
deambulação, André Sargaço deteve-se na sua vivência militar e chegou à
conclusão que perdera os melhores três anos da sua juventude a troco de nada e
ao serviço de uma causa que não servira ninguém. Como se o castigo já não
bastasse, logo que pisou o território continental ficou entregue a si próprio.
Abandonado pelo Regime Democrático nem sequer podia invocar a sua condição de
combatente para não ser acusado de colaborador do regime fascista, como fora intitulado naquela barricada de rua.
Lamentavelmente é talvez,
e não só nesse período revolucionário como mais tarde com o regime democrático
consolidado, o único país do mundo a desprezar os seus combatentes.
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