sexta-feira, 21 de março de 2014

FUGINDO À INDIGÊNCIA






Cansado de um quotidiano de penúria, Joaquim Boavida resolveu dar novo rumo à sua vida. Apesar de trabalhar muitas horas por dia, quase de sol a sol, não ganhava o suficiente para sustentar a família que ia sobrevivendo no limiar da indigência.
Naquela época, o país estava mergulhado numa grande crise económica, (um pouco à semelhança do que se passa atualmente em que a ditadura dos mercados estabelece as suas regras e tudo gira à volta delas), e muita gente buscava na emigração, especialmente para França, a solução para a pobreza que grassava por quase toda a classe operária. Para isso, contatavam emigrantes já consolidados, reuniam o dinheiro exigido pelos passadores e partiam ilegalmente em busca de alguns francos que lhes mitigassem as carências.
Assim, Joaquim Boavida logo que recebeu uma resposta positiva de um amigo, emigrante em França, a quem solicitara que lhe arranjasse trabalho naquele país não pensou duas vezes: pediu dinheiro emprestado a um familiar, procurou um passador e na data acordada meteu-se a caminho.
Na madrugada da véspera de Natal de 1965, apanhou o comboio em Coimbra com destino a Vilar Formoso. Logo no início da viagem, receando vir a ser roubado, descalçou uma bota e acondicionou uma nota de mil escudos, entre a meia e o peito do pé. Uma reserva para fazer frente a qualquer emergência que pudesse surgir. Na bagagem, que se limitava a um pequeno saco de linhagem, levava, apenas, uma muda de roupa, por sinal, já muito ponteada pela sua esposa e alguns pedacitos de pão com sabor a conduto. Ainda se fazia acompanhar de um pequeno feixe de vides com a finalidade de não despertar a atenção da polícia política portuguesa, (PIDE), que à data controlava todos os movimentos dos cidadãos. Fora, assim, aconselhado pelo passador para dar a ideia de que ia trabalhar na vinha daquela região do país. 
Assim, em função do combinado, Joaquim Boavida abandonou o comboio no apeadeiro da Freineda, com o molho de vides debaixo do braço, à espera de um sinal que lhe desse alguma tranquilidade. Logo que se apeou, foi interpelado por um indivíduo que se pronunciava em castelhano e que de imediato o encaminhou para um barracão agrícola, onde já se encontravam outros sete candidatos a emigrantes, oriundos de várias regiões do país. Passaram ali a noite de coração apertado e rodeados de carências. Na madrugada seguinte, foram divididos em dois grupos. O grupo onde se integrava Joaquim Boavida foi o primeiro a sair. Orientado por uma mulher ainda jovem que conduzia um burro carregado com três molhos de vides, caminhou ao longo das propriedades em poisio, com o gelo a estalar debaixo dos pés até chegar a um abrigo improvisado junto à Ribeira de Tourões, já perto da fronteira onde ficaram à espera de ordens. Mais tarde, chegaria também ali o segundo grupo.
Ao início da noite, todos os elementos tiraram a roupa e fizeram a travessia da ribeira a vau, com água pela cintura, enfrentando a torrente e a temperatura gélida que ao crepúsculo ainda se tornara mais inclemente. Mas a vontade de vencer era grande e o frio cortante não constituiu obstáculo para lhes criar desmotivação. Logo que chegaram à outra margem foram conduzidos a outro esconderijo, um aqueduto que se situava perto da fronteira de Vilar Formoso, onde foram informados que a vigilância fronteiriça havia sido reforçada e como tal teriam que esperar o tempo que fosse necessário até aquela abrandar. Ao frio e mal alimentados, só ao início da noite seguinte, receberam uma refeição ligeira trazida por uma senhora idosa que lhes deu informações sobre a situação.
Finalmente, ao início da terceira noite, foram recolhidos pelo mesmo indivíduo que viram em Freineda e que conduzia um Citroen DS, vulgarmente conhecido como boca de sapo, de matrícula espanhola. Após uma rápida troca de palavras com aquele, ficaram a conhecer as regras a seguir durante a viagem em território espanhol. Joaquim Boavida e outro individuo, que eram os mais franzinos, foram encarcerados na bagageira e os restantes seis no habitáculo. 
Quando Joaquim Boavida entrou naquele espaço acanhado, sem ventilação e onde quase não se podia mexer, teve pensamentos de toda a espécie. Desde a ironia do seu apelido, passando pela possibilidade de via ser preso, até ao limite da sua resistência física, tudo lhe passou pela mente. Só ali, naquela clausura, mergulhado na escuridão e sujeito aos mais variados solavancos tomou verdadeira consciência da difícil aventura em que se metera. No entanto, sabia que não tinha alternativa. Não queria ser detido e estava totalmente dependente do passador, que apenas conhecera quando lhe entregara os treze mil e quinhentos escudos para o passar para França. Agora, desistir, para além de uma manifestação de fraqueza, seria alimentar um drama ainda maior. No país não tinha forma de ganhar o dinheiro para o poder restituir a quem lho emprestara. Por isso, não podia fracassar, teria de resistir até ao limite das suas forças sem esboçar protesto.
 Ao fim de quatro horas na mesma posição, mergulhado na escuridão, sentia-se tonto, já mal conseguia respirar e os membros já não reagiam aos seus impulsos cerebrais. Contudo, ia resistindo com a convicção de que a sua vida iria mudar para melhor. Quando lhe abriram a porta, estava paralisado e teve a nítida sensação de que acordara de um sonho de terror em que, por momentos, chegara a perder a consciência. Mas assim que respirou a brisa fria da noite conseguiu recuperar, momento em que foi informado que estava numa estação de serviço, perto de Burgos. Na continuação da viagem, foi substituído na bagageira por outro desgraçado, por sinal um pouco mais encorpado, que não fazia a mínima ideia da tortura que o esperava.
Mais tarde, a caminho dos Perineus, o motorista foi forçado a uma manobra de diversão para se furtar aos agentes da polícia espanhola que mandaram parar o veículo. Assim, depois de alguns quilómetros de uma correria desenfreada, por estradas secundárias, sinuosas e esburacadas, onde só um verdadeiro milagre evitou o acidente, os emigrantes foram deixados numa barraca abandonada, em plena floresta. Por seu turno, o motorista substituiu as chapas de matrícula do Citroen o mais rápido que lhe foi possível e logo a seguir desapareceu no meio do arvoredo deixando, apenas, a intenção de voltar logo que a situação o permitisse.
Ali, em território hostil, de barriga vazia e receando o pior, esperaram até ao início da noite. Momento em que foram surpreendidos por outro espanhol que, depois de entregar um pão a cada um, os encaminhou para um veículo pesado estacionado nas imediações. Assim que o ocuparam ficaram a saber que estava adaptado com uma divisória na caixa de carga. À retaguarda carregava legumes e na outra extremidade, junto à cabine, tinha uma caixa falsa para acomodar os emigrantes. O acesso era pela cabine, através de uma pequena abertura no banco do motorista, pela qual foram empurrados, um a um, como gado para abate. Assim, a situação de clausura repetia-se, agora, até final da viagem. Com uma agravante, o cheiro era insuportável.
No final do dia seguinte, chegaram aos arredores de Paris onde cada um ficou entregue a si próprio. Joaquim Boavida nem queria acreditar de que se livrara daquela viagem atribulada em que passara os dias mais amargurados da sua existência. Todavia, tinha um pressentimento de vitória. Estava feliz, porque acabara de chegar a um país onde lhe era possível sonhar com melhores dias. Com esse espírito em mente, apanhou um táxi a caminho de Maison Laffitte onde o esperava uma vida de muitos sacrifícios, mas também com algumas compensações.
Começou por tratar da sua legalização que lhe ficou em trezentos francos, adiantados pelo patrão que, desde logo, lhe passou a pagar quatro francos por cada hora de trabalho.
Ali, fugindo à indigência, encontrara a sua segunda pátria!    
 

sexta-feira, 14 de março de 2014

SONHO JUGULADO


Falésias que são um promontório,
Ponta de um continente em agonia.
Espelho de um europeísmo ilusório,
Vela moribunda, que já não alumia.

Com impudência chamaram-lhe União,
Ignorando a sua falta de homogeneidade.
E agora que têm pela frente o Rubicão,
Procuram alijar a sua responsabilidade.

Essas mentes que se julgam brilhantes,
Apontam regras que se dizem necessárias.
Entre elas a de se tornarem assaltantes,
Decididos a pilhar até as contas bancárias.

E que não existam quaisquer ilusões:
Eles introduzir-se-ão no nosso lar,
Para nos levar os derradeiros tostões,
E tudo o que estivar à mão de semear.

São homens que mostram pouca valia,
Sempre numa atitude altaneira e patética.
Apajeados por uma medonha burocracia,
Que vê gorduras numa União esquelética.

Parece um estranho mundo de idiotas,
Cujas decisões só servem para inquietar,
Facilitando a vida de abutres e agiotas,
Que com avidez tudo procuram sugar.

Talvez fosse melhor para este vetusto país,
Desligar-se desta situação que é decadente,
Como se abandonasse uma velha meretriz,
Que, já sem atrativos se tornasse exigente.

André Sargaço

segunda-feira, 3 de março de 2014

O ÉPAGNEUL NA SERRA AGRESTE





Avizinhava-se a nova temporada de caça que eu aguardava com inegável ansiedade, não só, pelo prazer das deambulações pelo monte, mas também, para ver em ação o instinto natural do Simba face às espécies cinegéticas. Com várias ideias a povoarem os meus pensamentos e, quiçá, o meu imaginário, logo que me surgiu uma oportunidade, corri para a serra para que o Épagneul tomasse contacto com a aridez dos montes. 
Naquela fase do ano em que os novos bandos de perdizes, ainda, não atingiram a plena maturidade, movimentam-se pelas courelas de restolho sem o receio que costumam manifestar assim que os primeiros tiros ecoam pelos outeiros. Nesse período, apesar do seu sedentarismo, ficam mais desconfiadas, mudam algumas rotinas e até de habitats. Essas alterações estão diretamente relacionadas com a chegada do outono e das primeiras chuvas, que dão origem a novas pastagens e bebedouros em territórios mais elevados. São esses locais que as aves passam a ocupar e que lhes fornecem espaços menos sombrios, com maior facilidade de movimentos e logo uma maior alternativa de defesa, face aos diferentes predadores. Teoricamente, a perdiz faz os seus voos em triângulo, de outeiro para outeiro, embora na prática tudo isso dependa das características do terreno e da sua necessidade de fuga. 
Logo que me instalei na aldeia serrana, região onde habitualmente desenvolvia a prática venatória, o Simba resolveu dar nas vistas sem que eu fizesse a mínima ideia do que ele preparava nos bastidores do seu intelecto canino. Assim, pressentindo uma capoeira por perto, acomodou-se traiçoeiramente no pátio à espera de uma distração minha e da dona Alice, a proprietária do galinheiro. Quando a oportunidade surgiu, saltou o muro e invadiu a capoeira. À medida que ia apanhando as aves, fazia o itinerário inverso e levava-as para casa. Cena que foi repetindo até o galinheiro ficar vazio. 
Quando me apercebi do alarido invulgar que chegava da rua, corri à janela para me inteirar do que acontecera e qual não foi o meu espanto quando vi a dona Alice, num pranto desesperado, apregoando aos quatro ventos que o meu cão lhe matara as galinhas.
Receando o pior, corri para o pátio onde o cenário não poderia parecer mais desconcertante para não dizer assustador. Para além do cacarejo em uníssono que, por si só, gerava um enorme alvoroço as penas voavam por todo o lado criando uma espécie de cortina que impedia uma visão nítida sobre a área onde se desenrolava o confronto. Assim que me aproximei do confronto vi que algumas franganitas cambaleavam. Outras, um pouco aturdidas, tentavam desesperadamente saltar o muro sendo de imediato aplacadas pelo Simba. Claro que com a minha presença a situação depressa acalmou. No entanto, para a integridade física das aves, já era demasiado tarde.   
No final, as oito galinhas estavam vivas, mas a maioria aparentava ter vivido momentos bastante conturbados, a avaliar pelas escoriações de toda a ordem, indiciando uma convalescença prolongada. 
Para o instinto do Épagneul a caçada fora uma extraordinária façanha, mas para mim tornara-se num enorme pesadelo, não só pelo dano causado como, acima de tudo, pelo facto de assistir ao desespero da dona Alice. 
A pobre senhora, que se via assim privada das suas galinhas de estimação, estava inconsolável e nem a minha pronta intervenção, assumindo a responsabilidade pelo sucedido, foi suficiente para lhe acalmar o ânimo. Depois, ainda insatisfeita, prosseguiu com a sua lamúria pela aldeia, anunciando o que acontecera aos seus galináceos. Impotente para a demover a não fazer mais alarido, tive de esperar que esta ficasse vencida pelo cansaço para depois podermos acertar a valor da indemnização. Contudo, o cachorro acabaria por ficar nas bocas do mundo e pelas piores razões.
Na madrugada seguinte, depois de uma noite em que o sono só muito a custo me veio visitar, decidi-me por um passeio pedestre, entre dois montes, para matar saudades dos locais onde, na infância, convivi de perto com as coisas simples da vida, a par da natureza pura e agreste: tanto nos campos, como nos riachos. 
Após o café da manhã, ataviei-me com calçado e roupas apropriadas para calcorrear os trilhos pedregosos que faziam a ligação terrestre entre a aldeia e os outeiros mais isolados que a circundavam. Não passavam de sulcos estreitos no terreno xistoso, parcialmente, ocultos pela vegetação selvagem. Assim, segurei no Simba pela trela, como se fosse a caminho de um campo de treino que, por sinal, ali não existia e abri o portão de acesso à via pública. Logo que cheguei ao exterior deparei-me com um nevoeiro cerrado salpicado de cacimbo que deixava as múltiplas gotículas suspensas nos arbustos. Perante estas condições do tempo retraí-me um pouco, mas o animal estava ansioso. Eu precisava de ultrapassar o que acontecera na véspera e também não queria deixar passar a oportunidade de contemplar a beleza da serra rude de que os meus olhos andavam gulosos. E na verdade, sempre que percorria aqueles montes sentia a tranquilidade das gentes que aprenderam a viver rodeadas das limitações próprias daquela natureza agreste. Assim, imbuído de um espírito libertino, fiz-me ao caminho como se procurasse expurgar a alma, fugindo às preocupações, aos vícios citadinos e às amarguras da vida.
No momento em que o relógio da torre da igreja badalava as oito horas entrei na rua principal. Mal ali cheguei, fui interpelado pelo amigo Gervásio que, depois de sentidas gargalhadas relacionadas com o relato do assalto que o meu cão fizera à capoeira da vizinha Alice, me aconselhou a não me deslocar ao monte antes do sol enxugar as plantas. Para além da molha certa, a humidade iria, certamente, prejudicar o faro do cachorro. Devo confessar que perante o conselho daquele homem experiente e companheiro de algumas jornadas da vida, ainda vacilei, mas como a oportunidade de ali voltar, a curto prazo, era muito escassa, acabaria por levar a minha intenção por diante.  
Depois de trocar algumas graçolas com o Gervásio, que me redobraram o ânimo, deixei o cantinho da aldeia e demandei serra dentro desbravando a natureza rude em busca de sossego. Enveredei por um carreiro de cabras, contornando troncos de oliveiras centenárias, quase despidas de ramagem que, já em fase de morte anunciada, disputavam, desesperadamente, o espaço com arbustos selvagens. Durante as primeiras centenas de metros fui acompanhado pelo piar ainda envergonhado dos pardais que me chegava dos beirais da velha escola primária, situada nas proximidades e, fechada há muito tempo por falta de alunos. 
Com a neblina, o teto estava baixo e, a visibilidade não ia além de dez metros, mas, para mim, isso não constituía qualquer impedimento. Conhecia bem aqueles caminhos e ainda algumas das boas gentes que, às vezes, os utilizavam. Era o caso da senhora Joaquina, uma aldeã com quem me viria a cruzar uma centena de metros mais adiante que, apesar da idade avançada, continuava a amanhar uma pequena courela de onde, em algumas colheitas, nem sequer retirava os espécimes destinados à semente. Não era caso único. O minifúndio, por toda a região, era de baixa produtividade e escondia sacrifícios impensáveis para quem não convivesse de perto com essa realidade. Como se isso não bastasse, as doenças e os predadores, javalis e os veados, se encarregavam de danificar as culturas. Alguns resistentes, já no outono da vida, ao verem o produto do seu trabalho completamente destruído e sem qualquer tipo de indemnização, tomados pelo desânimo, deixavam as terras em pousio.
Naquele dia, a dona Joaquina transportava à cabeça uma cesta de verga, com alguns produtos hortícolas, que os braços frágeis e as mãos calejadas tentavam amparar com notada dificuldade. O pescoço, pressionado pelo peso excessivo, parecia afundar-se-lhe ainda mais no tronco já mirrado por longa servidão. As pernas, quiçá, arqueadas pelo esforço de muitos carregos, oscilavam e anunciavam desequilíbrio a cada passada. Contudo, assim que nos encontrámos no trajeto, a senhora parou para me cumprimentar e conversar sem dar mostras de pressa ou desalento, como se esperasse que o nosso diálogo lhe aliviasse as agruras. Antes de se despedir, também ela lamentou o que o meu cão fizera às galinhas da vizinha Alice, que eram, segundo dizia, as melhores poedeiras da aldeia, mas, ainda assim, concluiu o diálogo fazendo rasgados elogios à beleza do Simba que ali via pela primeira vez.
Perante as afirmações da dona Joaquina fiquei com a sensação de que não fora, suficientemente, generoso com a senhora Alice e o que lhe pagara, pelas lesões dos galináceos, ficara muito abaixo do seu valor estimativo. Porém, logo que regressasse à aldeia iria remediar a situação para que não sobrassem quaisquer ressentimentos. 
Embora soubesse que na aridez daqueles montes não existia um campo de treino, nos termos regulamentares, soltei o Simba que, nos instantes iniciais, me pareceu um pouco estonteado. Corria e saltava com tal alegria que aparentava querer beber de uma só vez toda aquela liberdade que, só os montes agrestes podem proporcionar e que, até então, ainda não havia experimentado. Tudo para ele era novidade. Qualquer pássaro, inseto ou lagartixa, por mais insignificante que fosse, lhe despertava a atenção, mas aos poucos foi acalmando e depressa enveredou pelos seus instintos naturais de caçador. Assim, começava por farejar todos os odores, com uma elegância discreta e persistente, sem, no entanto, se afastar de mim mais do que meia dúzia de metros. 
Mais adiante, quando me abeirava de um vale, sem arredar pé do carreiro que contornava os incontáveis penhascos, fui surpreendido por um habitante de uma povoação vizinha que se deslocava na minha direção. Era o Manuel da Quinta, uma criatura com quem eu já me tinha cruzado, algumas vezes, mas nunca tinha chegado à fala, para além da singular saudação. 
Tratava-se de um sexagenário, escanzelado e rude, que via em cada semelhante um potencial inimigo. Todo o seu historial de vida, cego de entendimento, assentava na insociabilidade beligerante e na violação constante das leis. Caçava e pescava o ano inteiro, indiferente ao período de defeso das espécies, sem qualquer abalo de consciência. 
Nesse dia, o homem caminhava em passo rasgado e com um barrete, esverdeado, enfiado até às orelhas. Vestia uma espécie de gabardina, matizada de castanho e verde-escuro, que lhe cobria o corpo até às galochas de cano alto. Logo que encarou comigo, estacou bruscamente e, ficou pasmado de olhar esgazeado tentando recuperar fôlego, como se tivesse sido atingido por uma violenta detonação. Depois, para dissimular o seu espanto pela surpresa avançou, alguns metros, na minha direção dando a ideia de que me iria barrar o caminho. Então, logo que me apercebi da sua intenção parei na expetativa do resultado. Porém, à medida que se aproximava de mim, reparei que debaixo do impermeável que envergava se notava o contorno de uma espingarda. Arma que transportava à ilharga e tentava dissimular a todo o custo obliquando propositadamente o tronco. Logo a seguir, parou e estendeu o braço para me cumprimentar, como o faria a um amigo, sem, no entanto, conseguir disfarçar alguma atrapalhação e até contrariedade que aquele encontro inesperado lhe causara. Tudo isso perante o olhar atento do Simba que, especado, observava todos os movimentos do desconhecido sem lhe demonstrar qualquer hostilidade.
    Que faz um cavalheiro da cidade a passear um rafeiro aqui por estas bandas? – interrogou Manuel da Quinta, em tom vincadamente irónico que acompanhava com um sorriso trocista.
    A saborear o ar puro da serra! – respondi com frontalidade, mas não resisti a uma provocação:
    E o senhor? O que faz por aqui, com todo este nevoeiro e com tanta pressa?

 Manuel da Quinta franziu o sobrolho, olhou-me inquiridor, fazendo um compasso de espera, como se estudasse uma resposta, enquanto deixava cair sobre o rosto uma máscara de amargura indiciando que algo de trágico lhe havia acontecido e disse:
    Olhe, para lhe ser franco, vou ali ao outro lado da serra procurar um podengo que me desapareceu! – e continuou – um animal que era um encanto, habituado ao bom trato, inteligente, meigo, bom caçador e amigo do dono. Só queria que você o visse! Tinha a pelagem tão luzidia que era um regalo. Bem, para lhe ser franco, desconfio que mo roubaram, mas se descubro quem foi o larápio, pode você ter a certeza que, ele vai ter de se haver comigo! Na realidade, estamos cercados e nem aqui na pacatez da serra podemos andar tranquilos. Não acha? 
    Pois!... Infelizmente a insegurança chega a todo lado. – disse eu, em jeito de resposta.
    Bem!... Já trocámos alguns pontos de vista e está na hora de ir andando. Vou ver se encontro o diabo do cachorro que já deve andar cheio de fome! 
    Faz muito bem! No entanto, se ainda tiver tempo, gostaria de lhe fazer uma pergunta.
    Quando estou perante alguém que considero amigo nunca tenho pressa. Faça as perguntas que bem entender!
    Olhe, gostava que me dissesse se vai à procura do pobre do animal para o abater?! – aventei com ar risonho e indiferente à crença de que falava para um homem de menor caráter.
    Francamente! Nunca pensei que, vossemecê, fosse capaz de me questionar sobre uma coisa dessas! Eu sou lá homem capaz de fazer mal a alguém!... E muito menos aos meus cães que são do melhor que há!
    Então, se não é para matar o bicho, para que precisa da espingarda que aí leva atendendo a que estamos no período de defeso da caça e que você ainda não descobriu o tal ladrão? – rematei.
    Cale-se lá, homem! Não sabe o que está a dizer! – retorquiu o Manuel, de olhos esbugalhados, virando-me as costas e retomando a marcha num sussurro indecifrável. Percorreu mais uma dúzia de passos, parou, voltou-se novamente para mim e exclamou com impertinência: 
    Só me faltava mais essa! Nunca imaginei que alguém fosse capaz de me falar dessa maneira. Tem sorte em estar a dialogar com um pacifista, senão… 
    Não foi minha intenção ofendê-lo! – disse eu, tentando suavizar o discurso, enquanto ele se diluía no nevoeiro. 
Logo que se afastou, reiniciei o passeio ao longo do valeiro – atento aos movimentos do Simba e na esperança de ver saltar as perdizes – sorvendo o silêncio daquele lugar original e onde as marcas do passado, ainda, estavam bem visíveis. Era só abrir os olhos e contemplar as, inúmeras, edificações em pedras nuas de xisto, como que esculpidas na paisagem pelos outeiros em redor. Todas encerram, naturalmente, muitas histórias de vida: alegrias e tristezas, esperanças e angústias, perdidas para sempre nas brumas do tempo com os seus protagonistas. 
Casebres e mais casebres que, para além de terem servido de habitação às populações locais, foram simultaneamente utilizados como abrigos dos animais domésticos, adegas e celeiros dos parcos haveres que se iam arrancando à terra madrasta. Paredões e mais paredões sustendo os socalcos aráveis ou apenas servindo de suporte a uma oliveira ou a outra, qualquer, árvore de fruto. Lá mais ao fundo, junto ao riacho, repousavam os escombros do velho moinho de moer o pão depois de séculos, de trabalho, ao serviço da comunidade local. O telhado cedera às infiltrações de água e as mós, quiçá para que fim, rumaram a outras paragens. 
Foram gerações de trabalho árduo e de incontáveis sacrifícios para erguer, pedra a pedra, uma obra gigantesca, executada de forma engenhosa com ferramentas rudimentares e, porventura, idealizada pelos deuses. Por ironia da vida e obedecendo à marcha imparável do tempo aguardava, agora, servir de combustível aos sucessivos incêndios que vão devastando a natureza de forma irreversível, criando, ao mesmo tempo, as condições para a erosão dos solos. 
Enquanto por ali deambulava, entre flores de carquejas e de urzes a murchar, tentando observar todos os mimetismos do perdigueiro, o nevoeiro foi-se dissipando sem que eu, quase, desse por isso. Assim, logo que atingi uma planura, senti-me envolvido pelo sol retemperador que alegrava e aquecia todo aquele universo serrano, a perder de vista, de onde se poderiam recolher imagens de uma beleza invulgar e guardar para a posteridade. A menos de dez passos à minha frente, um coelho correu veloz a caminho da lura procurando escapar aos dentes do Épagneul que, um pouco surpreendido por aquele ser estranho, quase não reagiu à sua fuga. 
Mais adiante, não resisti ao convite de um regato de água que gorgolejava barroco abaixo, por entre rochas e arbustos e, desprovido de preconceitos, debrucei-me sobre uma pequena cascata para refrescar a garganta sequiosa. Porém, ainda não a tinha saboreado quando ouvi o som insólito de dois tiros que pareciam ter tido origem no cume da serra e que ecoavam, pavorosamente, em ecos sucessivos ao redor daqueles montes risonhos. 
Surpreendido pelos disparos, ergui-me apressado e por pouco não fui atingido por uma perdiz que descia a colina em fuga vertiginosa, enquanto os chumbos fustigavam a ramagem plantada junto ao regato. Quando a vi surgir em voo picado mal tive tempo para desviar a cabeça da trajetória da ave que, em poucos segundos, dobrou a encosta e desapareceu ao fundo do barroco. Sem perder tempo, numa reação determinada, abri a boca e bradei a plenos pulmões: 
    Cuidado com os tiros! Aqui em baixo anda gente!... Que diabo! Será que já nem aqui há sossego? 
Logo que os silvos e o brado se desvaneceram todo aquele imenso vale ficou envolto num pesado silêncio. Apenas eram audíveis os movimentos estonteados do Simba numa tentativa inútil para detetar o que se havia passado. Finalmente, volvidos alguns instantes, regressaram os cânticos da passarada e os montes voltaram à sua pureza natural.
Decorridos poucos segundos, avistei o Manuel da Quinta a esquivar-se por entre medronheiros a caminho de um antigo palheiro, edificado em pedra, com a fachada principal coberta de hera que lhe dava uma camuflagem natural. 
Aquela era a base logística do seu quotidiano. Um eremitério onde dificilmente poderia vir a ser testemunhado no que fazia diariamente: tanto na atividade do campo, como até nos seus trabalhos clandestinos. Era ali que guardava não só a ferramentaria destinada ao labor agrícola e também grande parte do equipamento de apoio ao exercício da caça e pesca. 
Contava o meu amigo Gervásio que, certo dia, numa espera à caça, ainda antes de ambos terem sido chamados para o serviço militar, o vira abater uma perdiz a mais de trinta passos de distância com uma simples carabina de pressão de ar. Acertara-lhe na cabeça e o disparo fora desferido com tal precisão que a pobre da ave se limitara a tombar para o lado contrário sem esboçar o mínimo sinal de dor! Da mesma forma, quando via os coelhos a entrar nos buracos, armadilhava as saídas com redes de emalhar e socorria-se do fumigador de enxofre para os obrigar a abandonar a toca e ao fim de poucos segundos os bichos ficavam embolsados na rede. Também na pesca o vira mergulhar ao fundo dos poços para vasculhar as tocas, uma a uma, até o seu fôlego se esgotar. Numa certa ocasião, vira-o ainda recorrer a métodos mais radicais para obter rapidamente maiores quantidades de peixe usando embude. Para isso, pisava muito bem as raízes dessas plantas, amassava-as com terra e lançava o preparado à água. A partir daí, a captura tornava-se mais fácil e rápida e ao fim de poucos minutos apanhava o peixe que ia surgindo à tona em penosa agonia. 
Logo que despertei de todas aquelas recordações, rumei à aldeia, guiado pelo som nostálgico de uma velha taramela que, devido à sua utilização prolongada, há muito que deixara de intimidar a passarada. Segui por um trilho secular, agora, só esporadicamente utilizado por alguns caçadores e veículos de todo o terreno durante a época oficial de caça. A desertificação permitira o crescimento descontrolado do matagal que, aos poucos, ia escondendo as marcas de um passado histórico escrito por um povo esquecido, amargurado e humilde que, em lento sofrimento, ia sucumbindo à sua má sorte geográfica. Ainda assim, aquela antiga via serviu-me de atalho para antecipar o regresso a casa que o peso nas pernas e a barriga a dar horas começavam a exigir. Logo que entrei no lugar fiquei com a convicção de que tinha passado a manhã numa inquietude tranquila, fugindo da urbe assustadora e, convivendo tanto quanto possível com a natureza agreste, quase na sua pureza original. Apenas um senão, de facto, aquele treino a raiar o clandestino não fora de todo proveitoso para o cachorro que não vira, de perto, qualquer perdiz o que seria muito importante para a sua formação de caçador. Essa experiência ficaria reservada para a época cinegética. Tempo em que haveria, certamente, oportunidade de mostrar o seu talento face aos tiros, às espécies e à aridez dos montes, dado que era frequente ouvir falar da fragilidade física daquela raça em terrenos hostis.
Quando regressava ao meu refúgio acidental fui intercetado pelo Gervásio que, como habitualmente, me convidou para o almoço o que aceitei de bom grado.