sábado, 10 de abril de 2021

ROÇADA NA SERRA

 

Ainda mal refeito da jornada da véspera, o ti Manuel da Fonte saltou da cama logo que o relógio da sala bateu as quatro horas da manhã. Por norma dormia pouco, mas quando agendava um compromisso para a madrugada do dia seguinte quase não pregava olho a noite toda. Assim, logo que se ataviou, despediu-se da esposa e passou pela cozinha para tomar a dejejua. Como era seu costume, comeu dois figos secos, bebeu uma golada de aguardente, muniu-se do indispensável e partiu apressado. Logo que chegou à rua, olhou o céu estrelado e concluiu, para seu gaudio, que o dia iria estar risonho. Deu alguns passos, pegou no acendedor clandestino e acendeu um cigarro, com tabaco da sua produção, que embrulhara na véspera, numa mortalha de capa de milho.

Embora não tivesse licença do isqueiro e o plantio do tabaco estivesse vedado ao comum dos cidadãos ele não se amedrontava. Indiferente à fiscalização, numa espécie de rebeldia ao sistema político vigente, usava o acendedor, em qualquer local público, sempre que precisava. Da mesma forma rebelde, cultivava as plantas sob a ramagem dos medronheiros para iludir a fiscalização. Ao mesmo tempo, com essa forma de cultivo, conseguia um crescimento mais viçoso e uma qualidade mais apurada. Logo que as folhas atingissem a maturidade migava-as e secava-as à sombra, um processamento que, segundo dizia, dava ao tabaco puro um sabor mais aveludado.

Agora, enquanto se deslocava, libertou duas baforadas que impregnaram o ar com um aroma alcoviteiro e, encaminhou-se para o estábulo que distava da sua residência perto de cem metros. Precisava de aparelhar os bois para mais uma jornada de trabalho árduo. Apesar dos animais serem dóceis, mesmo para um carreiro com a sua experiência, atrelar uma parelha, era sempre uma operação demorada.

Tinha, nos seus sessenta anos, uma vida marcada pela labuta constante, porque os tempos de carência, de meados do século XX, assim o obrigavam. Embora a idade já recomendasse alguma contenção em trabalhos mais esforçados, continuava a ser um homem com uma atividade incessante. O seu quotidiano dividia-se entre a faina do campo na agricultura de subsistência e o serviço de carreiro. No carro de bois transportava tudo o necessário: resina, madeira, mato e toda a variedade de produtos agrícolas. Embora nem sempre se alimentasse bem, nunca tinha preguiça para se entregar ao trabalho. Para além do cigarro ao canto da boca, que não abandonava, na sua indumentária usava o habitual fato de cotim, ao que associava o chapéu preto já descolorado pelo uso prolongado.

À semelhança de muitos conterrâneos, só ao domingo, fazia uma pausa nos seus afazeres, cortava a barba, tomava banho e vestia roupa lavada e engomada. Logo pela manhã assistia à missa e assim que terminava a devoção leiloava, no largo à porta da capela, as oferendas destinadas ao Santo Padroeiro. Depois de almoço, por vezes, reunia-se em convívio com os amigos no jogo das cartas.

O ti Manuel da Fonte reservara aquele dia de Maio para roçar uma carrada de mato destinado ao empalho dos milheirais e outras hortícolas. Uma operação importante para as plantas que, devido à elevada temperatura que chegara antes de tempo, estavam a precisar da primeira rega. Independentemente do tempo que se fizesse sentir, o empalho era uma tarefa que se renovava, anualmente, durante a primavera. Logo que as plantas despontassem era tempo de deitar mãos à obra. Agora, para levar a cabo esse trabalho, contava com a colaboração dos vizinhos que, quando souberam da sua intenção, logo se prontificaram a ajudar.

Como ainda estava escuro, logo que entrou no curral, acendeu a lanterna, a petróleo, para se orientar. Embora luz daquela fosse bastante débil ajudava-o a preparar a canga e os arreios para aparelhar os animais. De seguida, levou a parelha ao bebedoiro e só depois a atrelou ao carro. Para concluir a operação, muniu-se de um pedaço de sabão azul e besuntou o eixo do veículo. Queria evitar a chiadeira característica que aquele provocava com o movimento pois, para além de proteger a madeira reduzindo a fricção, também faria com que não despertasse a vizinhança.   

Antes de partir, pegou em dois manelos de palha de milho, destinados à dejejua dos quadrúpedes, e atou-os ao taipal. Também se muniu com sacholas, cordas e roçadoras, tudo material necessário para o corte e transporte do mato. Acondicionou ainda o cesto de verga com o farnel para o mata-bicho: queijo de cabra, uma broa de milho e uma garrafa de aguardente bagaceira. Depois de tudo arrumado, sentou-se na traseira do carro encostado a um fueiro e deu ordem de partida aos animais. Assim, ainda na penumbra, iniciou a marcha ao encontro do cume da serra que distava dali mais de dois quilómetros e que naquela época do ano apresentava um colorido matizado deslumbrante.

Aqueles bois, nos itinerários costumeiros, dispensavam condutor e Manuel da Fonte, já no outono da vida, aproveitava as deslocações em vazio para descansar e passar pelas brasas. Por vezes, só acordava à chegada ao destino ou quando os animais fossem barrados pelas autoridades fiscalizadoras. Na realidade, dar autonomia de condução aos quadrúpedes era uma prática que, além de proibida, poderia constituir um elevado perigo, mas ele confiava nos animais. No entanto, essa ousadia já lhe havia custado uma multa e até altercações. A mais complicada, que chegara mesmo ao confronto físico, fora com um cantoneiro que o tentara impedir de circular alegando que o rodado do veículo danificava o pavimento. Mas ele ia arriscando, que diabo, naquela via em terra batida, também não seria fácil ser apanhado pela fiscalização. Agora, do cantoneiro Juventino nada tinha a recear, para além de se ter tornado seu amigo, só se apresentava ao trabalho por volta das nove horas. Em relação às restantes autoridades não tinha razões de queixa. Então, como a parelha era pachorrenta meteu-se ao caminho sem se preocupar com multas nem, tão pouco, com os ajudantes da roçada que esperava depressa o alcançassem.

Atendendo a que a procura do mato era grande, no dia anterior, percorrera uma vasta área da serra, para onde, agora, se dirigia, em busca de um local onde pudesse fazer a roçada. Queria evitar atritos com os vizinhos porque, na época, não era fácil encontrar uma paveia de mato sem que os proprietários das courelas não criassem obstáculos. Mesmo que não tivessem intenção de o roçar defendiam as suas leiras como se de algo muito valioso se tratasse. Em função disso, Manuel da Fonte, depois de muito procurar, encontrou, naquele terreno baldio, uma encosta de acesso difícil, mas onde carquejas, urzes e moitas, para além de viçosas, estavam no crescimento ideal para roçar. Antes que outro se antecipasse, programou logo a roçada para o dia seguinte.

Naquele tempo, nos minifúndios serranos, durante o mês de Maio, quando as culturas começavam a despontar, era imperioso empalhar mato nos terrenos semeados para assentar a terra. Como as courelas eram de baixa produtividade e algumas de sequeiro que as tornavam ainda mais estéreis, os aldeões faziam todos os possíveis para inverter a situação. Para isso, aconchegavam os pedúnculos das plantas para manter a fresquidão depois das regas. Assim, para o empalho e para as camas dos animais, as gentes serranas buscavam o mato como que se de um produto de primeira necessidade se tratasse. Uma situação que não deixa de ser irónica pois, naquele tempo, queriam mato e não o tinham e hoje há muito não havendo quem o corte.

Naquela manhã, ainda o ti Manuel da Fonte não tinha percorrido um quilómetro quando foi alcançado por um rancho de gente. Entre homens e mulheres eram um total de seis. Logo que chegaram ao destino, indiferentes beleza natural que os rodeava, todos se agarraram ao trabalho com determinação. Enquanto uns cortavam os outros acondicionavam no veículo e, desta feita, depressa se fez a roçada. Assim, por volta das oito horas iniciaram o mata-bicho já com o carro carregado.

Texto que, para além de retratar a realidade serrana de grande parte do século XX, é uma pequena homenagem ao meu avô materno, Manuel Gonçalves Batista, mais conhecido por Manuel da Ribeira que, também ele, ainda muito jovem, abraçou o trabalho de carreiro. À semelhança de muitos conterrâneos, começou bem cedo a calcorrear as serras em busca do pão que o diabo amassou, fazendo o transporte regular de mercadorias, (sal, mercearias, matérias de construção, carvão, etc.), principalmente, entre o caminho-de-ferro da Lousã e as aldeias serranas e vice-versa. Viria a abandonar essa função ao ser chamado ao serviço militar sendo depois mobilizado para Moçambique devido à Primeira Guerra Mundial. 

sábado, 27 de fevereiro de 2021

A NOITE MAIS LONGA

 

Por volta das oito horas da manhã, escutámos a equipa de carcereiros num sussurro indecifrável como se estivesse a preparar uma estratégia de última hora. De repente, a porta da cela abriu-se e a crueldade dos captores atingiu-nos com frases cínicas que acompanhavam com sorrisos provocadores:

-  Espero que tenham gostado da estadia! Gostaram do nosso hotel? Voltem sempre!... Ah, agradeçam ao vosso chefe, senão ficavam cá mais algum tempo!

-    Inesquecível! Então é este o vosso respeito pelos mais antigos? – disse, enquanto me afastava tentando fugir às provocações que poderiam vir a ter um desfecho trágico. Afinal, ainda tínhamos uma missão para terminar.

Ao por do sol, desse mesmo dia, dávamos entrada no quartel de Malange com a missão cumprida.

 

Tudo começara, quando passavam três meses após a revolução de Abril e a minha secção fora escalada para efetuar a escolta a um transporte de material de guerra de Malange para Luanda, mais concretamente, para o depósito militar do Grafanil. À mistura com material obsoleto, o carregamento era constituído, na sua maioria, por peças em perfeito estado de utilização que, devido ao anunciado fim das confrontações armadas, deixava de ser necessário nas linhas mais avançadas. Embora, na prática, ainda se registassem, pontualmente, pequenas escaramuças, - sobretudo no final dos comícios “ditos de pacificação”, mas que na realidade apenas criavam crispação promovido por agitadores - já existia uma relativa acalmia por todo o território. Em função desse desanuviamento beligerante, agora era o tempo de reunir o espólio bélico para entregar no anunciado render da guarda e, mais dia, menos dia, partir com o rabo entre as pernas, deixando os soldados, ao Deus dará e, ao livre arbítrio dos vencedores. Ou seja, ao salve-se quem puder, como infelizmente se viria a verificar.

Assim, por volta das oito horas, animados por boatos que davam como certo o nosso regresso antecipado à metrópole, demos início à missão, com as indispensáveis preocupações de segurança. Desde logo, pela natureza do transporte e depois, porque a paz ainda não era uma garantia assumida por todas as partes envolvidas sendo que, de um momento para o outro, tudo se poderia complicar. Todavia, para além do calor sufocante com que nos deparámos, mais intenso entre o Alto Dondo e Salazar, a viagem foi decorrendo sem surpresas embora com as indispensáveis paragens para logística. Ao final da tarde, cansados pela distância, pelo desconforto do veículo e alagados em suor, chegámos ao destino sem que nada de grave nos tivesse acontecido.

O quartel do Grafanil estendia-se por uma vasta área geográfica e era um local por onde passavam quase todos os militares mobilizados para Angola. Em função da sua dimensão, buscámos de arrecadação em arrecadação e quando acertámos com o local de entrega, para o equipamento que transportávamos, o mesmo já se encontrava encerrado, o que nos obrigaria a adiar a descarga para o dia seguinte. Ali, a guerra também tinha horário de funcionamento o que não era o caso de quem fora mobilizado para o mato que estava de serviço em permanência, vinte e quatro horas por dia, trezentos e sessenta e cinco dias por ano.  

A maior parte dos militares que me acompanhavam, depois da partida para o interior, já lá iam dezasseis meses, nunca mais tinha voltado a Luanda. Em função disso, tive a insensatez de sugerir:

-   E se fossemos até à cidade beber uma cerveja!? – disse, mesmo sabendo que não era permitido frequentar qualquer local da cidade com uniforme militar e nenhum de nós ali dispunha de roupa civil.

-   Vamos embora! – responderam, em uníssono os militares, indiferentes ao que daí pudesse resultar.

Em função da unanimidade concordante não pensámos duas vezes. Estávamos a precisar de um momento de diversão ainda que fosse, apenas, para beber uma caneca de cerveja. Assim, depositámos o armamento pessoal no armeiro de serviço, pegámos no unimog e arrancámos, desarmados, em direção à porta de armas onde, só depois de detalhadas justificações, uma das sentinelas se decidiu a levantar a cancela. Vencido o primeiro obstáculo, ali estava a juventude faminta de liberdade, tentando, quanto possível, fugir aos regulamentos militares, ao isolamento, à violência das picadas e ao stress com que era confrontada diariamente.

Naquele fim de tarde e debaixo de um calor tórrido, passámos por vários locais onde poderíamos usufruir do tão desejado aconchego de uma loira gelada. Mas o nosso destino era o coração de Luanda onde a cidade fervilhava de vida e a cerveja parecia ter um sabor mais aveludado. Na esplanada da Portugália, os civis, brancos e negros, deambulavam irmanados de aparente concórdia. Ali, até então, nunca chegara a guerra. Mas, para nós militares, era o único sítio, em toda a cidade, onde não nos era permitido parar porque estava permanentemente vigiado pela polícia militar. E mesmo trajando à civil não era garantia de não se ser incomodado.

Quando chegámos ao local não vislumbrámos, por entre o arvoredo, qualquer elemento da PM e parámos a viatura no único lugar disponível junto à esplanada. Até parecia estar propositadamente reservado para nós. Logo que abandonámos o unimog, abeirei-me do bar e solicitei oito canecas de cerveja com a finalidade de demorarmos o mínimo indispensável. Um jovem, funcionário da cervejaria, que estava de serviço à esplanada, quando nos viu com farda operacional, olhou-nos de soslaio mostrando um sorriso irónico de quem já soubesse no que a nossa presença iria resultar. Talvez por isso, pareceu não ligar ao pedido, só após a minha insistência se apressou a encher as canecas. Entretanto, e enquanto eu tirava uma nota de cinquenta escudos da carteira, para pagar a despesa, fui abordado por um cambista que, sem meias palavras, me questionou se tinha dinheiro português para cambiar pelo escudo angolano, que fazia o câmbio a trezentos por cento, ao que respondi negativamente. Enquanto me ocupava com o negociante, os restantes militares foram bebendo à medida que os copos iam ficando cheios. Quando chegou a minha vez, agarrei na caneca, mas, imediatamente antes de a levar à boca, fui interpelado por um elemento da polícia militar que ali surgiu repentinamente. Aquele, para além de me tentar impedir de beber, chamou outro com o posto de furriel que de imediato atirou de voz altiva:

-  Então, o nosso furriel não sabe que não é permitido andar com uniforme camuflado na rua.

-    Oh militar! Estamos a chegar do mato! É só beber a cerveja e já vamos embora para o Grafanil. - respondi de copo na mão.

-     Aqui estamos na cidade! Nem sequer permito que bebam a cerveja. Estão todos presos! – atirou, de semblante franzido, o zeloso militar que parecia querer mostrar serviço aos novos camaradas. Tratava-se de um maçarico de barba mal semeada que concluíra recentemente o doutoramento e já se sentia imbuído das novas doutrinas progressistas. Era a elite libertadora no seu melhor. Depois, quando olhei à minha volta, reparei que estávamos cercados por vários PMs. No meio de tanta hostilidade depreendi que apenas quisessem agradar aos militantes do futuro regime, diluídos na multidão que nos rodeava e que assistia com notada indiferença ao desenrolar do nosso diálogo.

-         Oh militar!? Esquece a prisão que nós já andamos saturados e não queremos mais complicações. – disse eu, pensando que tudo se resolveria a bem.

-         Não! Agora, vão sob prisão para o quartel! E não nos obriguem a usar a força?

-        Está bem! Se é assim que queres, não vamos comprar mais guerras que a nossa já vai longa! Apenas aguardamos, ansiosamente, pelo regresso a casa. – respondi, ciente de que eles estavam armados e todos pareciam dotados de boa robustez física. Ao mesmo tempo, deduzi que não podia esperar compreensão de quem parecia embriagado pelo sonho libertador e não olhava a meios para atingir os fins. Assim, entreguei a nota ao empregado do bar, dizendo para se pagar da despesa e ficar com o troco. Depois, acatei a ordem de prisão com a resignação de quem não tinha outra alternativa. Era a onda revolucionária a querer agradar aos futuros camaradas. Então, como verdadeiros criminosos, seguimos no nosso unimog, escoltados por dois veículos da PM, um à frente e outro à retaguarda, a caminho do presídio. No entanto, durante a viagem, ainda acreditei que se tratasse, apenas, de uma brincadeira de mau gosto. Mas não. Era mesmo para levar a sério.

Quando chegámos ao presídio a luz solar já se havia esgotado. Com a proximidade da noite crescia a nossa ansiedade e sensação de impotência perante a intolerância gratuita que espezinha o mais vulnerável. Tomaram nota da nossa identificação e logo a seguir, no meio de uma troca de palavras azedas, de parte a parte, depositaram-nos, todos na mesma cela, como escória criminosa, sem sequer ter direito à refeição do jantar. Afinal era aquele o tratamento que os libertadores tinham reservado aos veteranos que, para eles, não passavam da face podre do regime deposto. Era a inversão total de valores. 

-       Agora é assim e quando vocês se forem embora, como será? Pelo desprezo a que somos votados e o caminho que as coisas estão a levar será o fuzilamento!? – questionou o Adão, um camarada negro, amigo do peito, que pertencia à minha secção. Uma questão para a qual não tínhamos resposta, mas se para nós, continentais, não estava fácil, mas para os nossos camaradas, militares naturais de Angola, as perspetivas de futuro também não eram animadoras. Situação que, infelizmente, passado pouco tempo, se viria a confirmar como a dieta dos libertadores para calar os veteranos.

Foi uma noite longa e penosa. A nossa mente fervilhava numa angústia sem fim. Também na selva tínhamos passado noites difíceis, de permanente insónia, mas nenhuma tão profundamente revestida de ingratidão, como a que estávamos a viver. Amontoados no chão, sem a mais elementar tarimba para descansar o esqueleto desgastado pela já longa servidão, devorámos cigarro após cigarro, como se isso nos ajudasse a expurgar os maus intentos que não nos davam sossego. Mas era difícil calar a indignação. Para o ego dos captores, fora uma extraordinária façanha. Mas para nós não passava de uma severa humilhação. Em função disso, não foi fácil controlar a nossa vontade retaliativa.

domingo, 31 de janeiro de 2021

VIDA ADIADA

 Em janeiro de 1961, depois de ter cumprido o serviço militar obrigatório, que à data não ia além de seis meses, três de recruta e três de especialidade, Luís Rambóia regressou à Povoação da Portela, localidade de onde nunca havia saído até ser chamado à tropa.

Enquanto permaneceu na aldeia onde nascera, nunca laborara por conta de outrem devido à escassez de postos de trabalho por toda a região. E quando algum aparecia era, apenas, para ao abate de pinheiros e processamento da madeira. Uma forma de ganhar a vida com que ele não se identificava porque, para além de perigosa e muito esforçada, era mal remunerada. Em função disso, Luís Rambóia sempre rejeitara as propostas de trabalho, feitas por madeireiros, por discordar dos baixos salários que aqueles se propunham pagar. Em contrapartida, auxiliava os seus progenitores no pastoreio de um pequeno rebanho de caprinos e em algumas tarefas agrícolas. Começava a manhã a ajudar a mãe na ordenha das cabras que, no final do dia anterior, deixara no aprisco. Depois, soltava o gado para que se alimentasse, livremente, por montes e vales em pousio. Ainda assim, não perdia o rebanho vista, para evitar que invadisse propriedades de cultivo, vinhedos, pomares, alfobres e hortas. Durante a época das sementeiras, também se ocupava no amanho de duas courelas que funcionavam no apoio do sustento familiar. Uma ocupação onde nunca se esforçara, mas que também não lhe dera o necessário para viver. À mesa, a comida nem sempre abundava, mas agora vinha mentalizado para lutar por uma vida mais desafogada.

Habituado à vida libertina que levara na aldeia, ao ser chamado a cumprir o seu dever militar, tivera alguma dificuldade em se adaptar à instrução de recruta e às regras disciplinares. Discordava das normas do RDM que, na redação dos seus artigos, só lhe impunha deveres. Durante a instrução e após leitura atenta concluíra que os direitos dos soldados não eram contemplados naquele regulamento. Todavia, quando percebeu de que não tinha outra alternativa senão cumprir o que lhe era exigido, acabaria, ainda, por colher bons princípios para a sua formação de homem. Paralelamente a isso, também aprendera de que nunca seria tarde demais para tentar melhorar a sua vida e que só enfrentando as adversidades o poderia conseguir.

Assim, movido por alguns valores da escola militar, logo que regressou ao seio familiar decidiu dedicar-se ao trabalho, com entusiasmo, mas como não tinha grande escolha optou pela profissão de resineiro. Um trabalho bastante exigente, mas que, à data, estava a ser bem remunerado devido ao aumento da procura dos derivados da resina a nível internacional. Então, apressou-se a fazer uma parceria com o proprietário de uma fábrica resineira que lhe viria a fornecer o equipamento necessário para começar a renova das sangrias que, normalmente, se iniciava em março. Assim, para ele, tudo parecia estar a começar bem, no entanto, quando menos esperava, o rumo da história do país viria a modificar também o curso da sua vida.

Na época, na região, os camponeses digladiavam-se em busca de uma paveia de mato para estrume e empalho dos milheirais. A procura era tão grande que nem dava tempo a que, urzes e carquejas, crescessem o suficiente para roçar. Para além do corte constante, tinham um desenvolvimento lento provocado pelos de rebanhos de caprinos que se alimentarem dos viços atrasando assim a medrança. Devido a toda essa busca, as florestas ficavam devidamente limpas e os incêndios só muito esporadicamente ocorriam. Ainda assim, quando tal acontecia, eram rapidamente debelados devido à falta de combustível. O corte frequente dos matos permitia a existência de vastas áreas de pinheiro-bravo com crescimento ideal para a exploração de madeira e resina. Indústrias que, na época, eram as únicas empregadoras em todo o interior serrano.

Embora dotado de uma imaginação fértil, Luís Rambóia era bastante limitado para as letras. Foram necessários seis anos para concluir a instrução primária e, ainda assim, contara com a boa vontade do professor que, paralelamente aos castigos que lhe aplicara, tudo fizera para o ajudar a concluir a quarta classe. Em contrapartida, era fisicamente robusto e, aparentemente, talhado para o trabalho braçal, embora antes do serviço militar nunca tivesse dado prova disso. Vivera sempre, num quotidiano de sem preocupações de maior, na esperança de que, por obra e graça, as suas condições de vida melhorassem.

Naquele tempo, na aldeia, num ritual que já se perdia no tempo, depois da missa dominical, os populares reuniam-se a porta da capela onde participavam no leilão de oferendas em favor do Santo Padroeiro. As ofertas resultavam de promessas feitas ao Santo em prol de determinados pedidos que queriam ver realizados. Normalmente, as dádivas materializavam-se nos diversos produtos endógenos, como derivados da matança do porco, agrícolas e destilados.

De acordo com essa tradição, em março, desse mesmo ano de 1961, depois da arrematação de duas chouriças e de uma garrafa de aguardente, algumas pessoas abandonaram a reunião, outras continuaram, por ali como habitualmente, a trocar impressões sobre os mais variados temas pois, devido à vida rude que eram forçados a enfrentar, só ao domingo tinham disponibilidade para dialogar, divertir e até confraternizar.

Então, o recém-chegado militar, que raramente faltava às celebrações religiosas, aproveitando o dia de descanso e a presença de dois jovens que brevemente iriam entrar nas sortes, lembrou-se de fantasiar as peripécias por que passara na tropa, como se de um herói se tratasse. Logo que achou que as condições estavam reunidas deu início às suas estórias, com tal convicção que os jovens interessados em saber o que os esperaria num futuro próximo ficavam impressionados com tais relatos.  

Na realidade, nenhuma dessas façanhas, que Rambóia arengava, correspondia à verdade. A sua passagem pela vida militar fora de curta duração e nem sequer fora escolhido para uma qualquer especialidade. Para além de lições de ordem unida, onde mal aprendera a marchar e a manejar uma espingarda, enquanto soldado pronto, não apanhara castigos, mas também nada fizera de relevante. Apesar de ter obtido boa pontuação no exercício de tiro, talvez por desinteresse da formação nessa área, nem tão pouco chegara a ser escolhido para a especialidade de atirador especial. No entanto, sem saber muito bem porquê, fora dado como básico. Então, em função dessa desvalorização como militar, que era mesmo disso que se tratava, acabaria selecionado para o serviço de faxina à ordem do sargento do rancho e dos cozinheiros. Passou a fazer de tudo um pouco. Para além de cuidar das pocilgas que funcionavam em apoio ao rancho, carregava sacaria, descascava batatas, lavava panelas e pratos de alumínio designados na gíria da soldadesca por discos. Por vezes, as faxinas até disputavam o número de discos que a cada um competia lavar.

Agora, Luís Rambóia, no meio de uma das suas estórias, ao verificar que o ti Zé Ricardo se aproximava do seu grupo, tentou mudar de assunto, mas ficou sem palavras e acabaria por se calar. Depois, de forma um pouco embaraçada, levou a mão ao bolso, pegou numa pequena caixa metálica de onde retirou um pedaço de capa de milho e tabaco da sua produção, e começou a preparar um cigarro.

O ti Zé Ricardo era de um sexagenário que residia numa aldeia vizinha, mas que, a pretexto de assistir à missa, costumava ir à povoação da Portela para conviver com os velhos amigos. Era um homem experiente e aprimorado pelo o que a vida lhe ensinara enquanto correra mundo em busca de melhor situação financeira. Para além disso, era um sobrevivente da primeira guerra mundial. Em junho de 1916, embarcara a caminho do norte de Moçambique integrado na terceira força enviada por Portugal para fazer frente aos alemães que avançavam sem oposição pela margem direita do rio Rovuma. Foram tempos de muitos sacrifícios e dos quais não guardava boas recordações, mas que, ainda assim, se orgulhava de ter servido a Pátria naquele tempo difícil para a o país e o mundo. Por todo esse historial de vida o ti Zé Ricardo não se deixava iludir pelas fantasias do jovem Rambóia e depois das normais saudações entre os presentes, disse:

-     Oh Luís!? Pelo que percebi, estavas a inventar estórias!

-  É tudo verdade ti Zé! – levou o cigarro à boca, libertou uma densa baforada de fumo aromático e acrescentou: – não foi como no seu tempo, mas passei lá dias bem amargurados. – o Zé Ricardo esboçou um sorriso irónico e retorquiu:

-     Não digas asneiras! Antes de mais toma nota no que te vou dizer! Vem mesmo a propósito. Acabei de ouvir, na minha telefonia, que Portugal vai enviar tropas para Angola. Parece que os massacres não têm parado de aumentar.  

-     Olhe a sorte que eu tive, em já ter passado à disponibilidade! – respondeu o Luís Rambóia, soltando uma gargalhada.

-     Não tenho assim tanta certeza! 

-     Era só o que faltava que me voltassem a chamar!?

-   Eu, no teu lugar, começava já a preparar mala! – rematou Zé Ricardo, que nesse momento se afastou para cumprimentar João Silva que, entretanto, terminara o leilão das oferendas, como habitualmente o fazia. Aquele que, para além de amigo e camarada em algumas etapas da vida, era, também, outro sobrevivente da primeira Guerra Mundial em Moçambique.  

Naquele tempo, as notícias demoravam a chegar ao interior. Os jornais só esporadicamente lá chegavam e a telefonia estava reservada aos mais abastados que já possuíam nas suas casas corrente elétrica. Uma regalia que, na aldeia da Portela, só agora se começava a implementar. Portanto, com essas barreiras à informação, dificilmente se poderia saber o que se passava no mundo. Então, quando se falava de um tema importante, havia que tentar obter informações por todos os meios possíveis.

Depois daquele diálogo que o preocupou, Luís Rambóia esqueceu as suas estórias e limitou-se a dizer:

-  Venham comigo! Vamos ouvir o noticiário no rádio do carro do ti Manuel Madeireiro.

Assim, os dois jovens que o escutavam concordaram em o acompanhar, partindo a caminho da garagem, local onde a viatura se encontrava parqueada. Logo que ali chegaram, Rambóia sintonizou a telefonia na onda média da Emissora Nacional à espera de novidades que os pudessem inteirar da decisão governamental. Aliás, fora no rádio daquela viatura que se habituara a ouvir as crónicas dos correspondentes da Emissora Nacional espalhados pelo mundo, principalmente, a partir de 22 janeiro de 1961, aquando do assalto ao paquete de Santa Maria, em águas venezuelanas. Um sequestro com motivação política, que se prolongara até ao início de fevereiro no porto brasileiro do Recife e, que viria a causar um duro golpe no regime de Salazar, lançando os alicerces para a Guerra Colonial.

Depois, a curiosidade pelas notícias, continuara, não só com o regresso do barco de Santa Maria a Lisboa, como ainda, com as crónicas de Ferreira da Costa relatando a sublevação de trabalhadores em Angola que munidos de catanas e canhangulos, destruíam casas e plantações de algodão. E agora, em março, com o relato de massacres contra a população branca e os operários que para ela trabalhavam.

Depois de confirmada a notícia do embarque eminente dos primeiros militares para Angola, um dos jovens comentou:

-     Oh Rambóia! Também acredito que vais ser chamado!

-   Isso é que era bom! Eu já fiz bem a minha parte! Agora é a vossa vez. – respondeu o Rambóia com cara de poucos amigos.

Mas, ainda mal tinham terminado aquele diálogo quando surgiu uma patrulha da Guarda com uma notificação para que o Luís Rambóia se apresentasse, urgentemente, na sua Unidade Militar.

Passados oito dias, aquele embarcou no Paquete Niassa a caminho de Angola triste e desalentado. Partia para um palco de guerra sem a indispensável formação militar. Nem física, nem técnica e muito menos psicológica. Enfim…ficava entregue à sua sorte e assim, para além de ter perdido a liberdade, todos os seus projetos de vida ficariam adiados.

 

 


terça-feira, 15 de dezembro de 2020

QUANDO OS DEUSES SE IRRITAM

 


Logo pela manhã, daquele domingo de Dezembro, quando chegámos ao alto de Fajão, lá mesmo no cume junto aos geradores eólicos, encontrámos uma Serra risonha e acolhedora, coisa que, naquela época do ano, raramente acontecia. A atmosfera estava límpida e o sol, que espreitava por entre nuvens dispersas, tornava a temperatura amena permitindo, assim, um olhar sobranceiro sobre os horizontes, de um lado, grande extensão do Vale do Ceira, do outro, de parte da barragem de Santa Luzia. Serra que, para além de nos arrebatar com as suas magníficas paisagens, também nos convidava para o exercício cinegético que, devido à pandemia e ao confinamento, só agora nos era possível retomar.

Assim, em função das boas condições que ali encontrámos e arrebatados pela paisagem, depressa abandonámos o automóvel, onde nos fazíamos transportar, prontos para a contenda. Munidos do material essencial e equipados com fato aligeirado, partimos, para mais uma jornada, calcorreando os montes serranos, em busca das perdizes bravias. No entanto, estávamos longe de imaginar o que a meteorologia nos reservava para esse dia. Se bem que os Deuses parecem reservar, sempre, o mau tempo para os dias de caça.

Por volta das dez horas, depois de termos percorrido mais de dois quilómetros, escalando rochedos e calcando tojos, carquejas e moitas, já em plena cordilheira do Açor, o Céu fechou-se rapidamente à claridade e em poucos minutos ficámos expostos à intempérie. Como que investido de uma imensa crueldade, o vento virou para nordeste fustigando tudo ao nosso redor e trazendo consigo denso nevoeiro que nos mergulhou na escuridão. No mesmo instante, as nuvens romperam-se parindo farrapos de neve que, aos poucos, iam pintando de branco o chão que pisávamos. Uma mudança brusca no tempo que, para além de nos dificultar a orientação, os movimentos e a respiração, também nos gelava o corpo.

Eu e o Mário, que era o amigo que me acompanhava nesse dia, não tínhamos dúvidas que, perante o quadro que nos envolvia, não seria fácil enfrentarmos a aridez daquela serra nua. Serra que, quando os Deuses se irritam, não deixa de ser madrasta com os incautos. Nada a que já não estivéssemos habituados. Em anos anteriores também nos deparámos com dias de tempo agreste, mas nada daquilo a que, agora, assistíamos. É preciso realçar que, a época do ano, a altitude e a imprevisibilidade da natureza naqueles montes, são determinantes na situação do tempo. Assim, mais uma vez, fomos surpreendidos pela repentina alteração climatérica que não nos permitiu chegar ao nosso abrigo sem passarmos por toda aquela adversidade.

Apesar da visibilidade reduzida pelo nevoeiro e da falta do agasalho apropriado para enfrentar o vento gélido, ainda fizemos um compasso de espera na esperança que as condições, entretanto, melhorassem. Mas, de nada nos serviu. Depois de alguns minutos, em que nos abrigámos numa rocha que apresentava uma saliência em jeito de alpendre, o tempo ainda se agravou. Então, esboçando um esgar de desalento e rendidos à nossa impotência, depressa reconhecemos que não tínhamos outra alternativa senão tentar regressar à base o mais rápido possível.

No nosso escalão etário, sexagenário, tudo se torna mais problemático. O peso das temporadas, agora, já não nos permite facilitar como o fazíamos em tempos idos. Tempos em que o espírito aventureiro associado à nossa juventude era compatível com qualquer cenário, por mais complicado que se apresentasse. Então, sem pensar duas vezes, em lanços quase paralelos e orientados pelos cães perdigueiros, fomos descendo a montanha, por entre piçarras escorregadias e arbustos rasteiros, com cuidados redobrados para evitar uma queda que nos poderia ser fatal.

Não vimos perdizes, mas esse também não era o nosso único objetivo. Ainda assim, apesar das dificuldades que passámos, não deixámos de ter uma manhã proveitosa. Porque ali, em plena jornada de caça, o tempo passa quase sem darmos por isso. Não nos lembramos da pandemia nem de outras preocupações que ensombram o nosso quotidiano. Para nós, a prática cinegética, não passava de um pretexto para dialogar com a natureza agreste e, ainda, usufruir da generosa companhia dos perdigueiros. No meio da dificuldade, ainda assistimos a uma situação aprimorada e bonita de se ver. Os cães, movidos por uma lealdade inquestionável, puseram em evidência todo o seu instinto protetor, colaborando na nossa orientação para fugir ao mau tempo.

Entretanto, quando nos aproximávamos do local onde deixámos o veículo, fomos surpreendidos por um caçador que, utilizando uma viatura todo o terreno, parecia desafiar os Deuses da intempérie ou mesmo tirar partido da adversidade. Era frequente cruzarmos com aquela criatura que alcunhávamos de Fariseu que, talvez para não tirar o lustro às botas, raramente víamos a pisar moiteira. Ainda assim, em marcha muito lenta e iluminado por potentes faróis de nevoeiro, parecia passar à lupa as zonas mais abertas. Sabendo, como nós, que, as perdizes, com o tempo invernoso, procuram as clareiras onde se sentem mais confortáveis, mas também ficam mais expostas ao perigo.

Nós, ao fim de trinta minutos que pareciam não ter fim, sem vermos um palmo à nossa frente, molhados e gelados até aos ossos, chegámos ao conforto da nossa viatura que nos conduziu à tão desejada Malhada do Rei. Local onde buscávamos melhores condições de tempo.

Era ali, no “nosso” abrigo, no aconchego do parque das merendas, situado no sopé da aldeia e contígua à ribeira, que habitualmente nos reuníamos. Era ali, perto da saída do túnel e usufruindo da hospitalidade daquela gente, que tomávamos as refeições em puro convívio com a natureza e os amigos.   

Desta vez, como frequentemente acontecia, contámos com a colaboração do amigo Manuel. Um homem que depressa arranjou lenha para acender a fogueira. Precisávamos de enxugar a roupa e afugentar o frio que teimava em não nos dar tréguas. Para além de outros predicados, aquele amigo era um profundo conhecedor do viver serrano, que não se poupava a esforços para auxiliar os amigos. Era também um excelente comunicador. Sempre que nos encontrávamos não se cansava de contar estórias, algumas verdadeiras outras nem por isso, mas todas eram escutadas com a mesma atenção.

A propósito do túnel, ali existente e, destinado ao transvase da barragem do Alto Ceira para a barragem de Santa Luzia, também guardava algumas recordações que fazem parte da história da obra.  

Contava ele que, há menos de uma década, durante o período de verão, as pessoas mais afoitas da aldeia, ainda utilizavam o túnel como via de ligação apeada entre a Malhada do Rei e as povoações de Ceiroco, Camba, Porto da Balsa e outras. Todas situadas do outro lado da serra. Porque, para além de ficar a menos de metade da distância, o seu traçado, quase plano, era mais fácil de percorrer. Ele próprio o utilizara, vezes sem conta, tanto a pé como de trator agrícola. Até para apanhar trutas sem que as autoridades dessem por isso. Sempre que o caudal baixava, algumas trutas ficavam encurraladas nos charcos e bastava utilizar uma pequena rede para as capturar. Também, em algumas ocasiões, chegou a dar boleia, na bagageira do trator, aos amigos que lha solicitavam. No entanto, em todas as deslocações, era imprescindível usar de uma lanterna pois, era a única forma de dar vida aos quase sete quilómetros de total escuridão, mergulhado nas entranhas da terra.

Depois do almoço, que se prolongou por mais de duas horas e onde, para além de um bom tinto, não faltou o tradicional bacalhau e a castanha assada, dirigimo-nos para a Casa de Convívio da aldeia. Ali, tomámos o café e uma excelente aguardente de mel, de fabrico regional, que nos alegrou o espírito.

Apesar das dificuldades por que passámos, no final, regressámos a casa agradecidos à natureza por nada de mais grave nos ter acontecido e prontos para nova etapa se os Deuses nos concederem essa benesse.


quinta-feira, 20 de agosto de 2020

O DECLÍNIO DO PINHEIRO-BRAVO

Durante grande parte do século passado, a economia serrana assentava, essencialmente, na agricultura de subsistência, na criação de gado ovino e caprino, na produção de carvão e na exploração do pinheiro-bravo. 

O pinheiro-bravo que é originário da Europa mediterrânica resiste ao frio e à seca com alguma facilidade, mas desenvolve-se melhor em terrenos arenosos sob temperaturas mais amenas. Para além da madeira, permite a extração da resina. Nessa época, o pinheiro estendia-se por vastas áreas do território serrano, entre o limite das terras de semeadura e a crista dos cabeços. Embora se trate de uma espécie de crescimento lento, quando implementada em terreno fértil e encostas solarengas, cresce com maior robustez, à média de um metro por ano. A reprodução é feita através do pinhão alado que é libertado pelas pinhas, no fim da primavera, sendo depois levado pelo vento para clareiras onde vai germinar em contacto com a humidade do solo. Infelizmente, devido à doença do “Nemátodo”, aos fogos florestais e ao corte para retirar madeiras, tem vindo a desaparecer do interior do país. Situação que afeta também a indústria resineira que vai ficando sem matéria- prima para produzir os derivados da resina.

Na época, o trabalho da colheita de resina, na região serrana, criou muitos postos de trabalho e permitiu aos proprietários dos pinhais o recebimento dos sempre preciosos tostões, que eram pagos no final de cada temporada, em função do preço contratado e do número de bicas ou sangrias que cada um possuía. Como não existia na região mão-de-obra suficiente e preparada para a extração da resina, recebia imigrantes de localidades como: Idanha-a-Nova, Almaceda ou Castelo Branco e outras que também buscavam os tão desejados postos de trabalho que escasseavam nas suas terras de origem.

Para além dos lucros da resina, quando surgia alguma despesa extraordinária, os proprietários recorriam à venda de pinheiros para equilibrar o orçamento familiar. Apesar de toda essa aparente mais-valia económica que o pinheiro-bravo fornecia, não deixava de ser uma fonte de desentendimentos entre todos os intervenientes. Por um lado, alguns proprietários de courelas encarregavam-se de mudar os marcos e alterar, unilateralmente, as estremas para chamar a si árvores que não lhes pertenciam. Por outro, os resineiros faziam cortes excessivos ou mesmo várias sangrias no mesmo pinheiro, para daí retirar maior quantidade de resina, pagando somente uma bica simples se o proprietário da mata não desse conta disso. Ao mesmo tempo, ignoravam que o excesso de colheita enfraquecia de tal modo o pinheiro que alguns acabavam por sucumbir. Também se enganavam, deliberadamente, nas estremas para resinar um ou outro pinheiro que se mostrava mais pujante, na busca de maior quantidade de resina. Situações que davam origem a discussões. Como se isso não bastasse, os danos nos utensílios da recolha de resina eram frequentes, quer por furto, brincadeira ou mesmo por má-fé e causavam a ira de resineiros, proprietários dos pinhais e até donos das resineiras. Ainda, no início de cada época deparavam-se com a falta de muitos púcaros de barro que se destinavam a aparar a seiva do pinheiro. Alguns eram desviados para uso doméstico, principalmente para beber o vinho nas adegas e até constava que o vinho servido no barro aveludava o paladar.

A propósito de brincadeiras relacionadas com a resina, recordo um episódio ocorrido na década de 1950, quando três jovens, com idades a rondar os quinze anos, que pastoreavam o gado nos arredores da aldeia, se depararam com um barril cheio, com duzentos litros de resina, optaram por um divertimento invulgar. E de que é que eles se haviam de lembrar, lançar o barril pela encosta abaixo pelo simples prazer de o ver rebolar. Escolheram o local mais apropriado para que aquele rolasse autonomamente, soltaram-no e detiveram-se a comtemplar aquele cilindro destrutivo.

O barril, fabricado em madeira de carvalho, aguardava ser recolhido por um de dois carreiros, que se ocupavam naquele tipo de transporte quase em permanência, para um local acessível a uma camioneta, mais concretamente para o estaleiro do sítio das Árvores, junto à Estrada Nacional 112, perto das Moradias. Mas os comparsas não lhe deram oportunidade para que tal.

A descida era muito acentuada e prolongava-se por várias centenas de metros. Como seria de esperar, ao fim de poucos segundos, o barril atingiu tal velocidade que se tornou imparável, derrubando tudo o que se lhe deparava pela frente. Apesar da solidez da resina e da resistência da vasilha, a partir de certa altura, começou a perder o conteúdo, que foi deixando aos poucos ao longo da encosta repleta de vegetação diversa, até se imobilizar no leito do ribeiro. Embora parcialmente esventrado, quando finalmente se imobilizou, deixou os populares, que laboravam nas terras de semeadura, incrédulos com o acontecido, dado que não tinham memória de assistir a algo idêntico. O susto foi enorme com aquela situação invulgar e logo que chegaram à povoação, não se cansaram de relatar o sucedido.

Os autores da façanha, após terem presenciado aquela experiência espetacular, que os surpreendeu, não só pela velocidade que atingiu e ruído que provocou, mas sobretudo pelo rasto de destruição que deixou à sua passagem, congeminaram uma forma de se furtar à responsabilidade. Conhecedores do terreno e de outros potenciais autores, capazes de uma brincadeira semelhante, decidiram atuar por antecipação e atribuir a autoria do delito a três outros jovens da aldeia, também pastores de gado, mas que por sinal, nesse dia, andavam noutro local.

Condenados à partida de pouco valeu aos injustamente incriminados a negação de tal ato, porque logo que o boato se espalhou pela aldeia, não perderam pela demora e levaram um corretivo dos pais. Contudo, o castigo não ficaria por aqui. No dia seguinte, foram intimados a comparecer no Posto da Guarda, em cumprimento de queixa apresentada pelo proprietário da resina. Durante a inquirição, dois dos acusados negaram e quase convenceram as autoridades, mas o terceiro, talvez receando que o interrogatório se tornasse mais rigoroso, deitou tudo a perder, acabando por admitir ter participado no delito e em função disso, os três incriminados tiveram que ressarcir o dono da resina, na quantia de 140 escudos.

Ainda a propósito dos transportes de resina, noutra ocasião, na década de 1960 perto do Vale Dianteiro, dois garotos, um com dez anos de idade e outro com oito, resolveram apanhar boleia num carro de bois que circulava carregado com dois barris de resina. 

O carreiro era um homem com idade a rondar os cinquenta anos e um trabalhador determinado. Fruto do tempo de amargura que se vivia no interior serrano entregava-se à labuta quotidiana, tanto de dia com de noite, sem horários para refeições nem para descanso. Nesse dia fazia o transporte para o estaleiro existente na aldeia. Como habitualmente, aquele, no seu estilo desembaraçado, só conduzia os bois à soga quando o terreno obrigava a maiores cuidados de segurança, caso contrário caminhava à frente dos animais, de aguilhada ao ombro, numa postura que para aqueles garotos parecia distraída. Assim, aproveitando a aparência descontraída, quando o carro se aproximava dos dois petizes, anunciando a marcha numa chiadeira que se assemelhava a um interminável gemido, movidos pela imprudência própria da idade, sentaram-se, sorrateiramente, na traseira do carro, indiferentes ao perigo que corriam e com a convicção de que o carreiro não se havia apercebido. Acomodaram-se como puderam sempre com a preocupação de ocultar a silhueta no bojo dos barris para evitar serem detetados. Apesar do desconforto, a vigem foi prosseguindo com muitos solavancos que o piso irregular obrigava, mas para eles isso não representava obstáculo, apenas queriam usufruir de uma boleia que nunca tinham experimentado. Contudo, depois de terem percorrido perto de um quilómetro, já à entrada da aldeia, local onde o traçado se tornava mais irregular, o carreiro ter-se-á apercebido de presença dos dois passageiros clandestinos e resolveu reprimi-los à vergastada. Sem provocar alarido nem abrandar a marcha, afastou-se, sorrateiramente, da frente dos animais pronto para ação. Com a vara de tocar os bois em riste e pronto a desferir a vergastada, esperou que a traseira do carro se aproximasse da sua posição. Mas imediatamente antes, os dois garotos, num movimento ágil, conseguiram fugir e evitar o corretivo. É claro que, o carreiro quando viu gorados os seus intentos e reparou no riso divertido dos garotos, soltou um chorrilho de impropérios, com a convicção própria de quem não tinha outra alternativa.