domingo, 31 de janeiro de 2021

VIDA ADIADA

 Em janeiro de 1961, depois de ter cumprido o serviço militar obrigatório, que à data não ia além de seis meses, três de recruta e três de especialidade, Luís Rambóia regressou à Povoação da Portela, localidade de onde nunca havia saído até ser chamado à tropa.

Enquanto permaneceu na aldeia onde nascera, nunca laborara por conta de outrem devido à escassez de postos de trabalho por toda a região. E quando algum aparecia era, apenas, para ao abate de pinheiros e processamento da madeira. Uma forma de ganhar a vida com que ele não se identificava porque, para além de perigosa e muito esforçada, era mal remunerada. Em função disso, Luís Rambóia sempre rejeitara as propostas de trabalho, feitas por madeireiros, por discordar dos baixos salários que aqueles se propunham pagar. Em contrapartida, auxiliava os seus progenitores no pastoreio de um pequeno rebanho de caprinos e em algumas tarefas agrícolas. Começava a manhã a ajudar a mãe na ordenha das cabras que, no final do dia anterior, deixara no aprisco. Depois, soltava o gado para que se alimentasse, livremente, por montes e vales em pousio. Ainda assim, não perdia o rebanho vista, para evitar que invadisse propriedades de cultivo, vinhedos, pomares, alfobres e hortas. Durante a época das sementeiras, também se ocupava no amanho de duas courelas que funcionavam no apoio do sustento familiar. Uma ocupação onde nunca se esforçara, mas que também não lhe dera o necessário para viver. À mesa, a comida nem sempre abundava, mas agora vinha mentalizado para lutar por uma vida mais desafogada.

Habituado à vida libertina que levara na aldeia, ao ser chamado a cumprir o seu dever militar, tivera alguma dificuldade em se adaptar à instrução de recruta e às regras disciplinares. Discordava das normas do RDM que, na redação dos seus artigos, só lhe impunha deveres. Durante a instrução e após leitura atenta concluíra que os direitos dos soldados não eram contemplados naquele regulamento. Todavia, quando percebeu de que não tinha outra alternativa senão cumprir o que lhe era exigido, acabaria, ainda, por colher bons princípios para a sua formação de homem. Paralelamente a isso, também aprendera de que nunca seria tarde demais para tentar melhorar a sua vida e que só enfrentando as adversidades o poderia conseguir.

Assim, movido por alguns valores da escola militar, logo que regressou ao seio familiar decidiu dedicar-se ao trabalho, com entusiasmo, mas como não tinha grande escolha optou pela profissão de resineiro. Um trabalho bastante exigente, mas que, à data, estava a ser bem remunerado devido ao aumento da procura dos derivados da resina a nível internacional. Então, apressou-se a fazer uma parceria com o proprietário de uma fábrica resineira que lhe viria a fornecer o equipamento necessário para começar a renova das sangrias que, normalmente, se iniciava em março. Assim, para ele, tudo parecia estar a começar bem, no entanto, quando menos esperava, o rumo da história do país viria a modificar também o curso da sua vida.

Na época, na região, os camponeses digladiavam-se em busca de uma paveia de mato para estrume e empalho dos milheirais. A procura era tão grande que nem dava tempo a que, urzes e carquejas, crescessem o suficiente para roçar. Para além do corte constante, tinham um desenvolvimento lento provocado pelos de rebanhos de caprinos que se alimentarem dos viços atrasando assim a medrança. Devido a toda essa busca, as florestas ficavam devidamente limpas e os incêndios só muito esporadicamente ocorriam. Ainda assim, quando tal acontecia, eram rapidamente debelados devido à falta de combustível. O corte frequente dos matos permitia a existência de vastas áreas de pinheiro-bravo com crescimento ideal para a exploração de madeira e resina. Indústrias que, na época, eram as únicas empregadoras em todo o interior serrano.

Embora dotado de uma imaginação fértil, Luís Rambóia era bastante limitado para as letras. Foram necessários seis anos para concluir a instrução primária e, ainda assim, contara com a boa vontade do professor que, paralelamente aos castigos que lhe aplicara, tudo fizera para o ajudar a concluir a quarta classe. Em contrapartida, era fisicamente robusto e, aparentemente, talhado para o trabalho braçal, embora antes do serviço militar nunca tivesse dado prova disso. Vivera sempre, num quotidiano de sem preocupações de maior, na esperança de que, por obra e graça, as suas condições de vida melhorassem.

Naquele tempo, na aldeia, num ritual que já se perdia no tempo, depois da missa dominical, os populares reuniam-se a porta da capela onde participavam no leilão de oferendas em favor do Santo Padroeiro. As ofertas resultavam de promessas feitas ao Santo em prol de determinados pedidos que queriam ver realizados. Normalmente, as dádivas materializavam-se nos diversos produtos endógenos, como derivados da matança do porco, agrícolas e destilados.

De acordo com essa tradição, em março, desse mesmo ano de 1961, depois da arrematação de duas chouriças e de uma garrafa de aguardente, algumas pessoas abandonaram a reunião, outras continuaram, por ali como habitualmente, a trocar impressões sobre os mais variados temas pois, devido à vida rude que eram forçados a enfrentar, só ao domingo tinham disponibilidade para dialogar, divertir e até confraternizar.

Então, o recém-chegado militar, que raramente faltava às celebrações religiosas, aproveitando o dia de descanso e a presença de dois jovens que brevemente iriam entrar nas sortes, lembrou-se de fantasiar as peripécias por que passara na tropa, como se de um herói se tratasse. Logo que achou que as condições estavam reunidas deu início às suas estórias, com tal convicção que os jovens interessados em saber o que os esperaria num futuro próximo ficavam impressionados com tais relatos.  

Na realidade, nenhuma dessas façanhas, que Rambóia arengava, correspondia à verdade. A sua passagem pela vida militar fora de curta duração e nem sequer fora escolhido para uma qualquer especialidade. Para além de lições de ordem unida, onde mal aprendera a marchar e a manejar uma espingarda, enquanto soldado pronto, não apanhara castigos, mas também nada fizera de relevante. Apesar de ter obtido boa pontuação no exercício de tiro, talvez por desinteresse da formação nessa área, nem tão pouco chegara a ser escolhido para a especialidade de atirador especial. No entanto, sem saber muito bem porquê, fora dado como básico. Então, em função dessa desvalorização como militar, que era mesmo disso que se tratava, acabaria selecionado para o serviço de faxina à ordem do sargento do rancho e dos cozinheiros. Passou a fazer de tudo um pouco. Para além de cuidar das pocilgas que funcionavam em apoio ao rancho, carregava sacaria, descascava batatas, lavava panelas e pratos de alumínio designados na gíria da soldadesca por discos. Por vezes, as faxinas até disputavam o número de discos que a cada um competia lavar.

Agora, Luís Rambóia, no meio de uma das suas estórias, ao verificar que o ti Zé Ricardo se aproximava do seu grupo, tentou mudar de assunto, mas ficou sem palavras e acabaria por se calar. Depois, de forma um pouco embaraçada, levou a mão ao bolso, pegou numa pequena caixa metálica de onde retirou um pedaço de capa de milho e tabaco da sua produção, e começou a preparar um cigarro.

O ti Zé Ricardo era de um sexagenário que residia numa aldeia vizinha, mas que, a pretexto de assistir à missa, costumava ir à povoação da Portela para conviver com os velhos amigos. Era um homem experiente e aprimorado pelo o que a vida lhe ensinara enquanto correra mundo em busca de melhor situação financeira. Para além disso, era um sobrevivente da primeira guerra mundial. Em junho de 1916, embarcara a caminho do norte de Moçambique integrado na terceira força enviada por Portugal para fazer frente aos alemães que avançavam sem oposição pela margem direita do rio Rovuma. Foram tempos de muitos sacrifícios e dos quais não guardava boas recordações, mas que, ainda assim, se orgulhava de ter servido a Pátria naquele tempo difícil para a o país e o mundo. Por todo esse historial de vida o ti Zé Ricardo não se deixava iludir pelas fantasias do jovem Rambóia e depois das normais saudações entre os presentes, disse:

-     Oh Luís!? Pelo que percebi, estavas a inventar estórias!

-  É tudo verdade ti Zé! – levou o cigarro à boca, libertou uma densa baforada de fumo aromático e acrescentou: – não foi como no seu tempo, mas passei lá dias bem amargurados. – o Zé Ricardo esboçou um sorriso irónico e retorquiu:

-     Não digas asneiras! Antes de mais toma nota no que te vou dizer! Vem mesmo a propósito. Acabei de ouvir, na minha telefonia, que Portugal vai enviar tropas para Angola. Parece que os massacres não têm parado de aumentar.  

-     Olhe a sorte que eu tive, em já ter passado à disponibilidade! – respondeu o Luís Rambóia, soltando uma gargalhada.

-     Não tenho assim tanta certeza! 

-     Era só o que faltava que me voltassem a chamar!?

-   Eu, no teu lugar, começava já a preparar mala! – rematou Zé Ricardo, que nesse momento se afastou para cumprimentar João Silva que, entretanto, terminara o leilão das oferendas, como habitualmente o fazia. Aquele que, para além de amigo e camarada em algumas etapas da vida, era, também, outro sobrevivente da primeira Guerra Mundial em Moçambique.  

Naquele tempo, as notícias demoravam a chegar ao interior. Os jornais só esporadicamente lá chegavam e a telefonia estava reservada aos mais abastados que já possuíam nas suas casas corrente elétrica. Uma regalia que, na aldeia da Portela, só agora se começava a implementar. Portanto, com essas barreiras à informação, dificilmente se poderia saber o que se passava no mundo. Então, quando se falava de um tema importante, havia que tentar obter informações por todos os meios possíveis.

Depois daquele diálogo que o preocupou, Luís Rambóia esqueceu as suas estórias e limitou-se a dizer:

-  Venham comigo! Vamos ouvir o noticiário no rádio do carro do ti Manuel Madeireiro.

Assim, os dois jovens que o escutavam concordaram em o acompanhar, partindo a caminho da garagem, local onde a viatura se encontrava parqueada. Logo que ali chegaram, Rambóia sintonizou a telefonia na onda média da Emissora Nacional à espera de novidades que os pudessem inteirar da decisão governamental. Aliás, fora no rádio daquela viatura que se habituara a ouvir as crónicas dos correspondentes da Emissora Nacional espalhados pelo mundo, principalmente, a partir de 22 janeiro de 1961, aquando do assalto ao paquete de Santa Maria, em águas venezuelanas. Um sequestro com motivação política, que se prolongara até ao início de fevereiro no porto brasileiro do Recife e, que viria a causar um duro golpe no regime de Salazar, lançando os alicerces para a Guerra Colonial.

Depois, a curiosidade pelas notícias, continuara, não só com o regresso do barco de Santa Maria a Lisboa, como ainda, com as crónicas de Ferreira da Costa relatando a sublevação de trabalhadores em Angola que munidos de catanas e canhangulos, destruíam casas e plantações de algodão. E agora, em março, com o relato de massacres contra a população branca e os operários que para ela trabalhavam.

Depois de confirmada a notícia do embarque eminente dos primeiros militares para Angola, um dos jovens comentou:

-     Oh Rambóia! Também acredito que vais ser chamado!

-   Isso é que era bom! Eu já fiz bem a minha parte! Agora é a vossa vez. – respondeu o Rambóia com cara de poucos amigos.

Mas, ainda mal tinham terminado aquele diálogo quando surgiu uma patrulha da Guarda com uma notificação para que o Luís Rambóia se apresentasse, urgentemente, na sua Unidade Militar.

Passados oito dias, aquele embarcou no Paquete Niassa a caminho de Angola triste e desalentado. Partia para um palco de guerra sem a indispensável formação militar. Nem física, nem técnica e muito menos psicológica. Enfim…ficava entregue à sua sorte e assim, para além de ter perdido a liberdade, todos os seus projetos de vida ficariam adiados.