quarta-feira, 21 de novembro de 2018

CRISE NA PERDIZ VERMELHA


Depois de muitas jornadas a calcorrear os montes sou obrigado a concluir que as espécies cinegéticas menores estão em vias de extinção, pelo menos, em algumas regiões de Portugal. Já lá vai o tempo em que coelhos, lebres e perdizes abundavam pelos montados e serranias do interior país, mas por motivos diversos caminham inevitavelmente para o extermínio. Há cerca de uma década, ainda, era frequente encontrar bandos, numerosos, de quinze e dezoito perdizes. Hoje, tudo se modificou para pior. Mesmo em alguns dos, pomposamente, chamados pelos responsáveis políticos de terrenos ordenados, que só são ordenados para emitir as credenciais de acesso, raramente se encontra um bando digno desse nome. Até mesmo casais só esporadicamente se encontram. É mais frequente deparar com perdizes solitárias e isso, não só, significa que a nidificação não se consumou, mas também que o outro elemento do casal terá sido capturado por um qualquer predador.
Para a redução de exemplares estarão, certamente, os muitos perseguidores que têm por esta ave um apetite especial. Para além do javali, raposas, saca-rabos e aves de rapina, que as buscam o tempo todo, o homem pouco tem contribuído para preservar a espécie. Paralelamente a esses, os incêndios e as doenças, também, não lhe têm facilitado a vida. Mas, em minha opinião, o javali é o pior de todos os predadores e o principal responsável pelo declínio das espécies menores que se vem acentuando ano após ano.
Não há dúvida que a desertificação potenciou o terreno para os grandes incêndios que passaram a assolar, periodicamente, todo o interior reduzindo a cinza muitas espécies vegetais e também muitos exemplares animais. Mas a natureza regenera-se e não é por aí que vem o mal maior em relação à perdiz vermelha. Uma ave que dispõe de grande instinto de sobrevivência para fugir às chamas quando estas se propagam durante o dia. Embora acredite que à noite seja mais problemático. Pena é que, após os incêndios, muitos desses terrenos tenham sido ocupados por plantações de eucaliptos que para além dos malefícios para o ambiente alteraram definitivamente o habitat das espécies menores. A desertificação também contribuiu para que muitas terras de semeadura ficassem em pousio, onde as espécies menores se alimentavam. Tudo isso tem contribuído negativamente na sobrevivência das aves.
Por outro lado, nas áreas que não foram castigadas pelos incêndios, o abandono das terras permitiu que os matagais, à mistura com outra invasora que é a acácia mimosa, alastrassem descontroladamente por vastas áreas onde a caça maior se sente no seu habitat natural. Em função desse abandono do interior e aproveitando as condições favoráveis, do terreno e da legislação em vigor, algumas organizações de caça maior promoveram o repovoamento do javali por esses territórios.
Nessa época, uma vez que foi essa a decisão, o javali deveria ter sido limitado a pequenas áreas onde fosse possível controlar a sua implementação, ou seja, em locais guarnecidos por vedação, mas como nada disso aconteceu o resultado não poderia ter sido mais devastador. Todo o interior foi tomado pelo javali. Mais, já são vistos, com frequência, pelo litoral e até na proximidade das grandes cidades. O javali é um invasor que, rapidamente, se multiplicou por todo o território não poupando vinhas, pomares e outras plantações, nem as espécies cinegéticas menores escapam a esse predador selvagem de grande poder destrutivo. Indiferente ao tempo e hora, devora e vira do avesso tudo por onde passa, tanto por terrenos de semeadura como em plena serrania agreste.
Ainda assim, fico espantado quando oiço supostos defensores da natureza que alegam, talvez por interesses ocultos, que há necessidade urgente de preservar o javali. Em meu entender, se é que entendo bem, só será necessário proteger mais o javali, do que já é presentemente, se quiserem fazer do interior do país uma imensa coutada onde o homem não tenha mais lugar para viver. Se é isso que querem estão no caminho certo, embora eu pense que as pessoas deveriam estar em primeiro lugar, porque sem gente a natureza torna-se ainda mais agreste. Este é apenas o meu pensamento porque os grandes crânios têm, como não podia deixar de ser, outra ideia, mas nem sempre baseada no conhecimento do terreno. Mas, entretanto, relatem essa intenção, essa nova forma de encarar a natureza, àqueles resistentes que, ainda, vão tentando zelar por aquilo que é seu e assistem impotentes à destruição do património sem qualquer retorno económico por parte dessas organizações.
Agora, aos heróis que, ainda, vão resistindo, nas aldeias do interior, já não é permitido fazer a agricultura de qualquer tipo, nem mesmo a de subsistência, porque o javali não consente. Nem mesmo nos quintais contíguos aos povoados conseguem que as suas plantações de novidades tenham êxito se não estiverem protegidos por vedação. Em função disso, sem outras armas, só lhes resta a resignação ou rumar a outras paragens deixando o legado dos seus antepassados, fruto de muitos séculos de um trabalho gigantesco, entregue aos invasores de quatro patas.
Atualmente, as perdizes bravias, que ainda vão resistindo, vivem numa intranquilidade permanente. Deixaram de ter habitat devido à perseguição que lhes é movida pelos diversos predadores que não as deixam ter sossego, tanto de dia como de noite. Dificilmente conseguem que a sua reprodução se concretize. E é aqui que reside o problema e não há proteção ou repovoamento que permita inverter a situação enquanto os predadores não forem controlados. De facto, como todos sabemos, sem reprodução não haverá continuidade da espécie. Tudo, porque os ninhos, exclusivamente feitos no solo, não passam incólumes no período de postura de ovos e incubação que dura cerca de vinte e três dias a partir da postura do último ovo. Isso, para já não falar na fragilidade dos perdigotos enquanto estes não conseguem voar situação que só se verifica a partir das seis semanas de vida. Nem os mimetismos da progenitora para se defender e tentar salvar a ninhada dá bons resultados. Com os coelhos e lebres acontece a mesma coisa. As luras não resistem tempo suficiente ao faro apurado dos javalis e têm o mesmo destino, a destruição, e assim não se conseguem reproduzir.

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

MOINHOS DE ÁGUA

         Poço de Pé Carvalho, com os antigos moinhos encarrapitados nos rochedos contíguos.

MOINHOS DE ÁGUA - Obreiros de outros tempos

Em muitas localidades serranas, os moinhos de água serviram muitas gerações de moleiros e foram palco de inúmeras histórias de vida que, mais tarde, preenchiam os serões da aldeia e prendiam a atenção dos mais novos. Algumas reais que ilustravam as agruras dos moleiros, ocasionais, carregando os cereais por incontáveis precipícios que não passavam de carreiros rudes, por veredas e piçarros quase inacessíveis às cabras e muito menos a gente feita burro de carga. Carreiros que começavam logo à saída dos povoados e se prolongavam até aos moinhos que, como era o caso dos do Pé Carvalho, Pampilhosa da serra, distavam cerca de quatro quilómetros. Outras histórias não passavam de fruto da imaginação dos moleiros relatando medos e encantamentos ou situações insólitas com abordagem do sobrenatural. Situações passadas quase sempre à noite, onde supostas bruxas aproveitando a escuridão e os locais ermos, sem horizontes, geralmente afundados entre montanhas, se divertiam a encravar e desencravar os moinhos com a finalidade de exasperar os pobres dos moleiros. Esses, impotentes perante a proximidade das imaginárias criaturas do além refugiavam-se em exorcismos que julgavam apropriados à situação e que, algumas vezes, duravam até ao nascer do dia momento em que todos esses medos se dissipavam.


O que sobra dos moinhos.

A propósito dessas situações insólitas, o Ti António contava o que lhe acontecera certa noite em que pernoitara no moinho de Pé Carvalho para moer dois alqueires de milho.
Nessa ocasião, segundo contava, logo que chegou ao moinho apressou-se a coloca-lo a trabalhar para que a chegada do crepúsculo não lhe dificultasse o acerto da moagem. Assim, depois de concluir que a farinha estava a seu gosto, em termos de espessura, saiu a rua para apanhar um pouco de lenha para a fogueira e mato para improvisar uma espécie de colchão. De regresso ao moinho, logo que a escuridão caiu sobre aquele vale sombrio, preparou a tarimba no espaço disponível ao lado da tremonha. Depois, com a ajuda de uma moita, ateou os troncos de madeira como forma de afugentar ratos e répteis que, por vezes, se movimentavam pelas paredes dos moinhos. Por fim, trancou a porta pronto para se acomodar. Não era um homem medroso, mas não podia esquecer que estava sozinho naquele ermo e nunca seria demais prevenir-se dado que, na época, pela região, o pão era escasso e os furtos de cereais eram frequentes. Por fim, como que embalado pelo crepitar da fogueira, acendeu um cigarro e bebeu um trago de alcoviteira de medronho para lhe ajudar a passar o tempo, mas logo que se deixou cair sobre o colchão improvisado o moinho encravou. A surpresa gelou a alma do Ti António. Já não tinha farinha para cozer a broa e regressar a casa com o milho era uma possibilidade que o atormentava. Então, havia que meter mãos à obra até esgotar as suas capacidades em termos de reparação. Para o tentar desencravar, levantou e baixou, várias vezes, a mó com a ajuda do pau das cunhas e nem sinal de movimento. Logo a seguir, saiu à rua, munido de uma tocha, para observar a cale e verificou que estava cheia de água. Em face disso, pouco havia a fazer, mas, pelo sim pelo não, desceu ao leito da ribeira tentando verificar o que havia acontecido. Logo que se enquadrou com a abertura destinada ao rodizio o moinho arrancou a toda a velocidade ao ponto do Ti António ter sido atingido pelo jato de água libertado pelo movimento da turbina. Quando se preparava para entrar no moinho aquele voltou a encravar. Tudo aquilo acompanhado de gargalhadas estridentes que, ecoaram pela ribeira e, lhe gelaram o espirito. O Ti António para tentar fugir ao abismo de emoções em que ficara mergulhado, gritou e praguejou em todas as direções até ficar totalmente exausto. Por fim, vencido e impotente perante a adversidade, recolheu ao moinho, trancou a porta, espevitou a fogueira, bebeu mais um trago de aguardente e atirou-se sobre as carquejas indiferente à dureza do colchão. Logo a seguir, sem que nada o fizesse prever, o moinho voltou a funcionar, agora, sem mais paragens, até terminar a moagem.

Os moinhos eram edificados em pedra nua de xisto ao longo das margens serpenteadas das ribeiras bordadas, aqui e acolá, por caprichados lameiros de semeadura, ideais para o cultivo de milheirais. Em meados do século XX, na aldeia de Carvalho, talvez uma das maiores produtoras de milho do concelho da Pampilhosa da Serra, existiam doze moinhos de água de utilização comunitária e dois ou três particulares. A utilização comunitária era regulada individualmente através de uma adua, materializada num determinado número de dias ou horas mensais. Situação que não deixava de gerar conflitos entre os usuários, aquando da utilização abusiva ou menos cuidada na conservação. Bastava que qualquer dos deles ultrapassasse os tempos de utilização para logo prejudicar terceiros. Qualquer descuido que deixasse o moinho a trabalhar sem cereal, era suficiente para que as mós de moer o pão ficassem danificadas, dando assim origem a paragens com que não contavam, ao que acrescia a despesa da picagem das mós.
Enquanto a água corria com abundancia pelas ribeiras, normalmente, durante o inverno até meados da primavera, os moinhos trabalhavam sem descanso, dia e noite. Fora dessa época ou durante longos períodos de estio tudo se tornava mais problemático atendendo a que, para além da redução natural dos caudais, o precioso líquido era utilizado na rega dos milheirais e noutras novidades hortícolas. Em função disso a corrente de água, que restava, mal dava para oxigenar trutas, bordalos e enguias que, só muito a custo, se iam esgueirando por entre as pedras e muito menos para fazer mover os moinhos que só trabalhavam com a cale cheia. Assim, só à noite, com a pausa nas regas era possível moer algum cereal. Situação que obrigava, quem necessitasse de farinha, a passar a noite nos moinhos para controlar a moagem face à constante alteração dos caudais. Como era o caso dos moinhos do Pé Carvalho que, atendendo a todas essas contingências a que se juntava a dificuldade de acesso, obrigava a que os moleiros ali passassem a noite em condições muito precárias. Mas a necessidade do pão falava mais alto.
Durante séculos, essas moendas foram o melhor processo de transformar os cereais em farinha. Concretamente, de milho, trigo e centeio, tão necessária à cozedura da broa, indispensável na alimentação das gentes serranas onde, em alguns lares, por falta de outros meios, a comiam quase sem condimentos.
Quando a água não permitia moer os cereais numa determinada localidade, as populações procuravam um moinho, onde quer que funcionasse, independentemente da distância e sujeitando-se à maquia que lhes fosse exigida. Como era o caso das gentes de Carvalho que, confrontados com a falta de farinha, chegavam a ir a Alvares para moer um saco de milho. Percorriam mais de dez quilómetros, carregados como burros, por não haver noutro lugar mais próximo a possibilidade de o fazer.
Hoje, como é sobejamente sabido, os tempos são outros e os moinhos de água perderam a importância que tinham naquela época e como não podia deixar de ser, seguiram a mesma trajetória decadente das terras de semeadura que foram deixadas em pousio. O que não deixa de ser compreensível pois, atendendo a vários fatores onde se inclui a desertificação e a idade avançada dos poucos residentes que ainda vão restando, tornou-se impossível a preservação de todo esse património histórico, bem como o proceder à limpeza das ribeiras, levadas e açudes, como era feita noutros tempos. Assim, depois de muitos anos deixados ao abandono, as estruturas ruíram e as peças com algum valor, como as mós de moer o pão, rumaram a outras paragens onde passaram a ser usadas como meros objetos decorativos. Por via disso, de muitos desses moinhos pouco mais resta do que os escombros e estes, ainda assim, tem sido devorados pela vegetação selvagem que, junto às linhas de água, atingiu proporções quase impenetráveis. Só agora, depois dos incêndios, em alguns locais, é possível ter acesso ao que resta deles. Uma situação que para além de trágica acabaria por, de certo modo, ser benéfica por deixar à vista esses pedaços de história.
Agora, resta aguardar que a natureza viva se refaça e os homens se encarreguem da limpeza das ribeiras, açudes e levadas que as espécies piscícolas muito iriam beneficiar.

Abandono e decadência

sexta-feira, 23 de março de 2018

FUGINDO AO STRESS DA GUERRA




A noite caía sobre as colinas de Sessa. O sol que se escondera por detrás do arvoredo deixava no horizonte um clarão avermelhado que, anunciava a continuação de um tempo tórrido que, naquela época do ano, era muito acentuado. Com a chegada do crepúsculo as sentinelas reforçavam os postos de vigia para a indispensável segurança  e a solidão invadia todo o dispositivo. Por muito resistente que cada homem fosse, era à noite que a sua fragilidade emocional se tornava por demais evidente. Então, enquanto uns se refugiavam no aconchego da camarata outros amontoavam-se na barraca a que chamávamos cantina e ali iam afogando as mágoas até que o cantineiro o permitisse. As constantes recordações das origens também não contribuíam para facilitar a estadia naquele cenário de guerra. Naquela fase do conflito a atividade operacional exigia dos soldados uma resiliência muito para além da sua capacidade, tanto física como psicológica, mas eles lá iam resistindo, como podiam, enfrentando todas as adversidades. 
A última operação fora longa e cansativa. Desenrolara-se ao longo de quatro etapas onde o calor, durante o dia, não dera tréguas e as noites não pararam de se revestir de uma crueldade abismal. Para além do equipamento que carregávamos e que nos dificultava os movimentos em plena selva, ainda tivemos que lutar contra milhões de mosquitos que nos atacavam os olhos, o nariz e os ouvidos com uma sofreguidão insuportável. O terreno, naquela região, era constituído por um misto de mata densa e áreas mais abertas onde, por imperativo de missão, tivemos de rasgar o capim e atravessar chanas com água pela cintura convivendo de perto com répteis e bicharada de toda a espécie. Embora, desta vez, não tenha havido contacto com os rebeldes que, certamente, controlavam os nossos movimentos à medida que íamos progredindo no terreno, o perigo era anunciado em cada momento, desde logo, no chão que pisávamos que escondia minas traiçoeiras preparadas para estilhaçar as pernas das suas vítimas e desmoralizar todo um batalhão. Apesar da nossa juventude, à medida que o tempo ia passando, o desgaste era espelhado em cada rosto. 
Assim, logo que regressámos ao aquartelamento, depois de quatro dias e três noites em constante desassossego, resolvi deixar o, aparente, conforto da camarata e rumar à sanzala. Uma deslocação que eu ansiava há algum tempo, talvez para conhecer de perto o viver indígena que surpreendia pela sua capacidade de sobrevivência, numa terra onde faltava tudo o indispensável. Tratava-se de uma aldeia localizada numa colina perto do rio Sessa e que era constituída por dezenas de palhotas onde se acomodava mais de uma centena de habitantes e que distava dali perto de oitocentos metros. Naquele dia, para além de tentar aliviar o stress e fugir à guerra, queria entregar roupa à lavadeira que havia contratado assim que fui colocado para aquele fim do mundo. Ali, estávamos entregues a uma rotina que nos ia devorando a alma, nos expunha aos perigos, nos castigava o corpo e privava da liberdade, sem direito a contestação de qualquer tipo. Enfim, apesar de tudo, a vida tinha que continuar.
Pela frente, esperava-me uma picada arenosa ladeada por vetação diversa que dificultava a visibilidade para ambos os lados e de onde só podiam surgir surpresas desagradáveis. Mas, convivendo de perto com os riscos que era uma realidade que tínhamos de enfrentar todos os dias, não pensei duas vezes, peguei no saco com a roupa que atestei com cerveja gelada, meti duas granadas ofensivas nos bolsos do camuflado e parti indiferente àquilo que pudesse surgir. As granadas, nesta situação, funcionavam mais como aconchego de espirito de que como arma de defesa, em caso de ataque surpresa de pouco me serviriam, mas, ainda assim, nunca seria demais estar minimamente prevenido. 
Logo à saída, fui alertado pelos funcionários da JAEA, (Junta Autónoma de Estradas de Angola), um ramo da organização que estava sediada em instalações contíguas às nossas, que teceram comentários desencorajadores à minha deslocação. Trabalhavam há muitos anos em zona de guerra, na construção de vias de comunicação, e conheciam muito bem, não só, a forma de atuar dos guerrilheiros como das populações locais. Ainda assim, as suas recomendações não foram suficientes para me levar a mudar de intenção. 
Durante o percurso a escuridão abateu-se, rapidamente, sobre toda a área que me envolvia e com ela a temperatura baixou acentuadamente, nada que não fosse habitual naquela época do ano. Ao longe, eram visíveis pequenos pontos de luz deixados pelas fogueiras que os aldeões acendiam à porta das palhotas e só então tomei consciência da aventura em que me metera. No momento em que acendia um cigarro surgiu na minha proximidade um ruido, inesperado, vindo da mata, que interrompeu os meus pensamentos e provocou em mim um pequeno sobressalto. Receio esse que rapidamente se dissipou ao ver que se tratava de uma gazela em fuga que fora surpreendida com a minha presença. Nesse momento, comecei, então, a equacionar o meu regresso ao aquartelamento logo que terminasse o motivo que me levava à sanzala. Esse sim, seria, certamente, muito mais problemático para a minha condição de homem desarmado e isolado em meio hostil. Até porque os potenciais inimigos que, eventualmente, coabitassem com a população local, para obter logística e informações, ficariam perfeitamente inteirados da minha movimentação, mas agora era tarde demais para fugir à minha insensatez. 
Assim que atingi o perímetro do casario, edificado de forma simples e desordenada, de ambos os lados da rua, numa extensão que devia rondar os duzentos metros, fui saudado com um “moio”, muito efusivo, que me pareceu mais de espanto do que de saudação. O cumprimento partiu de um indígena que se encontrava sentado à porta do kimbo. Parecia o mais velho de um grupo de seis pessoas que saboreavam o jantar à volta da fogueira. De imediato, todos os comensais, interromperam a refeição e ficaram de olhar pregado em mim como se esperassem algo de dramático com a minha chegada. Depois de retribuir a saudação continuei, normalmente, o meu caminho sem demonstrar qualquer intimidação embora a realidade fosse bastante mais cruel. Não podia afastar a ideia de estar a ser observado por elementos inimigos que me podiam intercetar sem que tivesse oportunidade de me defender. Só nesse momento me apercebi do sussurro que se gerava nos populares à medida que ia prosseguindo a marcha sem, no entanto, perceber o seu conteúdo. Do dialeto “canguela” apenas entendia meia-dúzias de palavras e, apesar disso, lá fui avançando até à casa da lavadeira que se situava no extremo oposto da sanzala, relativamente ao meu sentido de deslocação. Embora não fosse um homem medroso fui avançando atento a tudo o que pudesse surgir.
A Teresa lavadeira vivia sozinha e, à semelhança dos outros populares, estava sentada à porta da cubata a preparar o jantar. Uma pequena panela de ferro, escurecida pelo uso prolongado e abraçada pelas chamas, estava apoiada em duas pedras para mais facilmente ficar exposta ao calor. A ementa era fuba, um prato tradicional da região. Num outro recipiente, encostado às brasas, preparava o molho que, segundo fui informado, era elaborado a partir de carne de galinha. A rapariga, apesar dos seus trinta e oito anos de idade e de algumas rugas que lhe davam ar de mulher madura, prendia a atenção de qualquer homem. Eu diria que até mesmo noutras circunstâncias e bem longe de tantas privações. Vestia saia cintada e blusa garrida que davam destaque ao seu corpo elegante e bem torneado. Não obstante o sotaque africano, falava português quase na perfeição. O seu antigo companheiro morrera quando desempenhava uma missão de pisteiro e ela, agora, numa terra onde não existiam oportunidades de trabalho remunerado, ia sobrevivendo do cultivo das lavras e dos trocos que recebia de cuidar da roupa de alguns militares. Ali, confrontada pela minha presença, àquela hora tardia, pareceu-me um pouco embaraçada e cumprimentou-me num murmúrio quase indecifrável. Parecia que queria ocultar da vizinhança aquilo que dizia. Durante a noite não era habitual os militares se movimentarem pela aldeia e talvez por isso a minha presença tenha causado tanta apreensão nos moradores.
Com os olhos adaptados à penumbra que envolvia a sanzala, localizei facilmente um tronco que arrastei para me sentar junto à fogueira. Depois de acender um cigarro, para tentar disfarçar o meu embaraço, comecei por me justificar com a necessidade urgente de roupa limpa. Devo confessar que, nesse momento, tive o pressentimento de que devassava a intimidade de toda aquela gente. Era como se tivesse entrado numa casa comunitária sem ser convidado, mas também reconheci que já não era possível fugir a isso. Então, abri o saco e tirei duas cervejas que abri de imediato, entreguei uma à lavadeira e segurei outra, como forma de partir o gelo que, aparentemente, se instalara com a minha presença. Logo que refrescámos a garganta ela aconchegou as brasas para espevitar a chama, pegou na colher de pau e mexeu a fuba até o jantar ficar pronto. No final ofereceu-me da sua comida que, por delicadeza, não pude recusar. 
O tempo foi passando e quando demos por isso a maioria dos habitantes tinham recolhido à privacidade das suas casas. As fogueiras, aos poucos, iam sucumbindo e a sanzala ficava mais escura e abandonada. O sussurro ia dando lugar ao silêncio apenas quebrado por ruídos indecifráveis que chegavam da mata contígua e onde se movimentava bicharada de muitas espécies. Enquanto isso acontecia, entreguei-me ao prazer de mais um cigarro e no intervalo de uma baforada concluí que estava na hora de tomar uma decisão: regressar ao aquartelamento ou aceitar o convite que Teresa, entretanto, me fizera para pernoitar na sua casa. Qual seria a melhor decisão? Ambas me pareciam arriscadas! Mas viver ali, naquele ambiente agreste, era um risco permanente. Portanto, regressar à base seria, certamente, um alvo fácil, mas ficar na sanzala também se tornava arriscado, pensamento assente em relatos, de outros locais e, de situações idênticas em que militares, indefesos, foram surpreendidos e atacados por criminosos. No entanto, sem grande alternativa, optei pelo convite, mas ficámos mais um instante no aconchego da fogueira indiferentes a tudo o que nos rodeava. Em aconchego nostálgico, falámos do nosso quotidiano, das minhas saudades da terra distante, da esperança em melhores dias e de coisas sem importância como se, entre nós, existisse uma grande intimidade. Como eu ansiara por um momento assim, esquecendo, temporariamente, o quotidiano de guerra e trazendo à ribalta aquilo que nos ia prendendo à vida. 
Quando concluímos que naquele labirinto de cubatas não se vislumbrava vivalma, resolvemos recolher à privacidade do lar onde Teresa se acomodava. A casa era rudimentar como a generalidade das habitações da aldeia. Construída com paus e capim, com paredes revestidas a barro. Mas, apesar desse aparente desconforto nenhum de nós, naquele momento, se mostrava exigente. Existia uma calorosa cumplicidade e isso, agora, era suficiente. Logo que nos encontrámos no interior, a rapariga acendeu um candeeiro a petróleo que deixou a nu o espaço exíguo que ocupava, cerca de dez metros quadrados, que era constituído por piso térreo onde se destacava um baú em madeira tosca e uma tarimba apoiada em quatro troncos e ainda, um caniço, uma espécie de primeiro andar que funcionava como arrumação. Nesse momento, a minha preocupação centrou-se na porta que, em meu entender, oferecia fraca resistência contra qualquer intruso que tentasse invadir a nossa intimidade. Então, para além de a trancar com o fecho apropriado, utilizei o baú para a bloquear na perspetiva de obter uma maior segurança. Apesar dos riscos que corríamos, ficámos longe de olhares indiscretos e entregues à volúpia como se aquela fosse a última noite das nossas vidas. 
Assim, na madrugada seguinte, aproveitando a madorra em que a sanzala estava mergulhada, regressei ao aquartelamento sem que nada de grave me tivesse acontecido e pronto para mais uma etapa que me fosse destinada.