sexta-feira, 21 de outubro de 2016

O FOGUETE INESQUECÍVEL


Foi na Ribeira de Carvalho que Januário aprendeu a nadar e a distinguir as várias espécies piscícolas que coabitavam naquelas águas frias e límpidas que, quilómetros a jusante, engrossavam o caudal do Zêzere. Tinha apenas sete anos quando começou a chefiar um bando de potenciais nadadores, todos do seu escalão etário, e todos nascidos na mesma aldeia, num tempo em que a natalidade ainda não estava em decréscimo. Deixavam o terreiro onde jogavam à bola e encaminhavam-se para o poço da Foz da Costa, que se situava no sopé da povoação e afastado das casas mais de quinhentos metros. Embora se deslocassem ali muitas vezes durante o ano, era no verão, nas férias grandes, que faziam uma aprendizagem mais intensiva e por muito que os pais lhes atribuíssem funções de apoio à atividade agrícola eles acabavam sempre por ir lá dar um mergulho.
Era naquela piscina natural, de leito rochoso, que organizavam campeonatos de natação como uma verdadeira competição em que as provas consistiam em nadar ao desafio, de uma margem para a outra, para ver quem chegava primeiro. Por vezes, mergulhavam para concluir qual deles se aguentava mais tempo debaixo de água. Paralelamente a isso, também se dedicavam à pesca tanto à linha como à mão, de trutas, enguias e bordalos. Quando pescavam à mão mergulhavam e vasculhavam as tocas, uma a uma, para capturar os peixes que se abrigavam em incontáveis esconderijos. Nem os alfaiates, minúsculos insetos pernaltas, que se movimentavam livremente à superfície sem nunca se afundarem, se conseguiam furtar a toda aquela agitação.
No dia em que Januário foi aprovado, com distinção, no exame da quarta classe, na década de cinquenta do século passado, recebeu, do seu padrinho, um porta-moedas recheado com uma nota de vinte escudos. Embora se tratasse de uma razoável quantia para a época, era uma lembrança merecida atendendo ao seu bom aproveitamento ao longo dos quatro anos de vida escolar que ditava a sua transferência para a cidade a fim de continuar os estudos no Ciclo Secundário. 
Assim que viu a sua nota de aprovação afixada na vitrina não cabia em si de contente pelo culminar daquela etapa. Então, logo que se achou na posse da dádiva, correu à mercearia do ti Álvaro onde comprou três foguetes e uma caixa de fósforos. Depois de pedir, àquele, uma opinião sobre o local mais adequado para o lançamento meteu-se a caminho como um verdadeiro perito em pirotecnia. Durante a festa da sua aldeia vira, com muita atenção, como o fogueteiro fazia o lançamento e achava que esse conhecimento seria suficiente. 
Quando se preparava para levar por diante os seus intentos e acender o primeiro rastilho, os comparsas que o acompanhavam deram-lhe outra sugestão e Januário resolveu pensar duas vezes antes de lançar os foguetes. Assim, depois de estudar o que aqueles lhe sugeriam, acabaria por concordar dar à pirotecnia uma utilização diferente.  
Na tarde do dia seguinte, os garotos partiram para o seu habitual mergulho no Poço, munidos dos foguetes e prontos a por em prática aquilo que tinham acordado. Durante o itinerário, aproveitando o silêncio da hora da sesta, apenas quebrado pelo canto da cigarra, iam debicando os vagos de uva que cresciam nos parreirais, a par de outros frutos da época: pêssegos, peras e ameixas, que começavam, aos poucos, a amadurecer despertando a curiosidade, e o paladar, dos pequenos e até dos adultos. De quando em vez surgiam frases soltas, em sussurro, no meio do bando: “estes cachos já estão doces”, “estas peras são boas”, “os pêssegos já estão maduros”, “tenham cuidado que o ti Joaquim pode estar à espreita”. Era normal, logo que chegava o pintor, os proprietários, quase sempre de idade avançada, exerciam maior vigilância sobre os pomares, mas a garotada levava quase sempre os seus intentos por diante perante a impotência daqueles. 
Naquele dia, o Sol escaldava e a rega dos milheirais absorvia quase todo o caudal da ribeira dificultando, assim, o movimento dos peixes que, nos locais com menor profundidade, não conseguiam contornar as pedras, juncos e embude. Mas para os garotos, isso não era obstáculo, antes pelo contrário, caminhavam pelo areal com maior desenvoltura e apanhavam muitos bordalos que ficavam encurralados em pequenos charcos ao longo daquele curso de água. 
Assim que chegaram ao poço e se abeiraram do açude secular, edificado em pedra de xisto sobre estacaria de pinho, a água fervilhava de trutas que assustadas pela proximidade da troupe rapidamente se refugiaram numa abertura sob o paredão. Aquela agradável visão, pela quantidade de salmonídeos, ainda, gerou no grupo maior entusiasmo e Januário, pondo em evidência a sua condição de líder, decidiu, de imediato, fazer ali um rebentamento. Tratava-se de uma toca que, apesar de se situar a mais de dois metros de profundidade, era perfeitamente visível das margens do poço na época de verão.
Com a desenvoltura que os caraterizava, treparam a um salgueiro que crescia entre a ribeira e as terras de semeadura e colheram uma vara com o comprimento suficiente para chegar à abertura escolhida. Depois, Januário, o mais irreverente do bando, amarrou, com atilhos de junco, a cana do foguete à vara, acendeu o rastilho e mergulhou o conjunto na água avançando em direção ao local que pretendia atingir com a detonação. Assim que o engenho explosivo ficou submerso, o atilho cedeu à pressão da água e do rastilho. Então, aconteceu aquilo que eles não contavam: o foguete libertou-se da vara e ficou a voar, completamente desgovernado, à volta do poço. Só decorridos alguns segundos, ganhou equilíbrio e retomou a finalidade para que fora concebido. Ainda assim, deixou a água debaixo de uma densa nuvem de fumo e cheiro a pólvora. Mas, entretanto, como havia decorrido demasiado tempo o foguete subiu, apenas, alguns metros e desintegrou-se, libertando bombas em todas as direções. As explosões sucediam-se a um ritmo quase sem intervalo e com tal intensidade que os garotos, autores da proeza, ficaram de tal modo desorientados que desataram numa correria infernal, milheiral adentro, derrubando as canoulas, com dois metros de altura, que se lhes deparavam pela frente. 
Logo que terminaram os rebentamentos, que ecoaram ao longo das quebradas em redor, o bando começou aos poucos a reagrupar junto ao poço onde foram surpreendidos pelo Ti Justino que, meio aturdido, abandonou o lameiro contiguo, onde se ocupava da rega, para indagar o sucedido. Aquele, depois de se inteirar do que acontecera, em jeito de corretivo, ameaçou denunciá-los. Os garotos, um pouco cabisbaixos, depois de terem escondido os dois foguetes que sobraram, encaminharam-se para o povoado mais cedo do que o habitual.