terça-feira, 23 de abril de 2019

O CACIMBADO NAS TERRAS DO FIM DO MUNDO

Vista aérea do aquartelamento de Gago Coutinho, sede do Comando da Unidade.

                             A propósito das comemorações de mais um aniversário da revolução de 25 de Abril, lembrei-me de um camarada que me acompanhou na guerra colonial.
                            

Passaram muitos anos desde que deixei as matas de Ninda, mas hoje, enquanto remexia o arquivo da minha memória, regressei ao tempo em que calcorreei aquelas terras, lembrando um camarada que me acompanhou em algumas etapas calcando areia minada. Embora se tratasse de uma convivência de, apenas, três meses foi a suficiente para verificar a degradação, física e psicológica, a que a longa servidão o conduzira. Um jovem, como todos nós, a quem roubaram a juventude a troco de interesses que não eram os seus. Então foi assim:
Naquele dia, o meu grupo de combate foi escalado para se deslocar a Gago Coutinho (atual Lumbala) a fim de se ocupar do reabastecimento logístico. Às seis horas da manhã, a coluna composta por quatro Berliets e trinta militares, iniciou a marcha em Ninda, para percorrer cerca de setenta quilómetros de picada cujo percurso, sem incidentes, demorava perto de três horas.
Logo que chegámos à sede da Unidade, o Comandante determinou-me para não regressar a Ninda sem me fazer acompanhar de um Furriel, com alcunha de Cacimbado, que, por motivo de castigo, acabara de chegar do norte de Angola. Com a indicação de que se aquele não acatasse, prontamente, a ordem de marcha teria que ir sob prisão. Ainda tinha seis meses de comissão para cumprir e acreditava que ali, naquele fim de mundo, seria o local mais indicado para expurgar as suas faltas disciplinares. O aumento de tempo na comissão resultara da sua última punição que motivou a transferência para a Unidade a que eu pertencia.
Em face da descrição daquele homem concluí que o bar seria o local mais provável para o localizar. Assim, logo que entrei, deparei-me com um militar que não se enquadrava no escalão etário dos restantes elementos da Unidade. Era um veterano, visivelmente desgastado, que vestia farda número dois com muito uso, dando ideia, à partida, de uma longa vivência como militar. Estava sentado com as pernas apoiadas numa cadeira e na mão segurava um copo com uma bebida que me pareceu Whisky. Sem alterar a postura, logo que encarou comigo, atirou de imediato:
-    Oh maçarico?! Nem penses que me vais levar! Não volto para o mato!
Logo a seguir, antes de me pronunciar, bebeu um trago e levou um cigarro à boca libertando uma baforada aromática a maconha que lhe ocultou, momentaneamente, a cara. Estivera sempre nas piores zonas de guerra devido aos castigos que já ultrapassavam duas dezenas. Com isso, tivera agravamentos sucessivos no tempo de comissão que, nessa data, já excedia quarenta meses. Tinha razões de sobra para estar saturado da guerra e, talvez por isso, parecia ausente da realidade que o rodeava. À medida que me ia aproximando, olhava na minha direção, ria-se e, ao mesmo tempo, sussurrava uma canção que nesse momento passava na rádio. Face ao cenário que se me apresentava, deduzi que não iria ser fácil cumprir aquela missão, mas também não queria optar pela alternativa que o Comandante determinou. Aquele homem já tinha sido violentado demasiadas vezes e apenas me limitei a dizer:
-     Aí é que estamos em desacordo! Não posso regressar a Ninda sem ti. Não há outra solução!
-     Estou farto de guerra! Não volto para o mato! Em Ninda só se safa quem andar com os pés às costas. – pegou no copo e saboreou mais uma golada e mal terminou elogiou o puro néctar do Dimple de doze anos, deu uma sentida gargalhada e exclamou:
-     Oh maçarico?! Esquece a ordem e vem beber um copo comigo! Este é do bom e lá não há disto!
Com alguma paciência e perseverança fui desmontando todos os cenários que ele ia criando para se proteger até o convencer a acompanhar-me. Assim, vinte minutos mais tarde, pegou num pequeno saco com bugigangas e partimos, ainda assim, com paragens frequentes para me questionar sobre a situação que iria encontrar e para acender cigarros que só duravam uma fumaça. Logo que chegámos à parada, ao cruzar com um camarada, arranjou um motivo para regressar ao bar para brindarem à despedida. Naquela fase tudo lhe servia de pretexto para tentar protelar a partida, situação a que anuí depois de contar com a colaboração do militar em causa. Assim depois de um brinde rápido chegámos junto das viaturas. Mas aí, logo que o Cacimbado encarou o Comandante tudo se complicou, estacou e disse em voz alta:
-   Comandante?! Eu não vou para o desterro! As Nep’s dizem que numa zona cem por cento operacional nenhum militar pode andar sem uniforme camuflado e eu não o tenho!
Nesse momento, o Comandante ordenou ao quarteleiro que lhe entregasse um uniforme camuflado. O Cacimbado dirigiu-se, sem pressas, para a arrecadação, na companhia do quarteleiro, de onde viria a sair vinte minutos mais tarde, enfiado num fato desproporcionado ao seu físico: parecia um espantalho e alguns militares riam-se daquela triste figura.
-  Então? Agora já está tudo bem?! – questionou o Comandante, que esperava no mesmo local, visivelmente impaciente. Todavia, o Cacimbado não tinha pressa e ainda guardava mais um trunfo para jogar, tentando por todos os meios, evitar ir para um local que tanto receava e disse:
-    Saiba V.ª Ex.ª. que, como as Nep’s também dizem, numa zona cem por cento operacional nenhum militar pode andar desarmado.
Aí o Comandante ficou, momentaneamente, indeciso avaliando as consequências que daí poderiam resultar, mas, ao fim de alguns segundos, num repente impulsivo, gritou a plenos pulmões:
-   Oh quarteleiro! Dá uma espingarda a este gajo antes que eu lhe parta os cornos! Este cabrão está a gozar comigo!
Enquanto o quarteleiro se deslocava, em passo de corrida, para a arrecadação, o Cacimbado ficou calado e imóvel no meio de uma assembleia de maçaricos, como ele os chamava. Em poucos segundos recebeu a arma devidamente municiada e, com ela, fez a continência ao Comandante, que retribuiu o cumprimento e questionou num tom vincadamente irónico:
-   Oh furriel?! Agora as Nep´s já não dizem mais nada?
Aquele ignorou a pergunta, virou-lhe as costas, subiu para a carroçaria da viatura e deitou-se sobre a sacaria, a caminho de cumprir mais seis meses de comissão. Durante a viagem colaborou, com a sua experiência e estoicismo, na segurança de todo o pessoal e meios.

Três meses mais tarde, numa noite em que eu pernoitava no aquartelamento de Ninda, despertei ao som de um estalido, caraterístico, provocado pelo manobrador da espingarda G3 para introduzir uma munição na câmara. Talvez por via disso e da intranquilidade que ali se vivia, de imediato, como que impelido por uma mola, saltei da cama, agarrei a arma que me fazia companhia junto à cabeceira e abeirei-me da janela para tentar analisar o que estaria a acontecer. Ao fim de alguns segundos de espera, que nunca mais passavam, concluí que o estridor teria sido obra do Cacimbado em mais uma das suas noitadas de vigia como ele costumava dizer.
Embora aquele homem já tivesse uma longa vivência em cenários de guerra, durante a noite, raramente dormia. Acreditava que um ataque ao aquartelamento estaria eminente e a melhor forma de minimizar as consequências seria estar sempre em alerta para não ser apanhado à mão, como tanto receava que acontecesse. Sem dúvida que um ataque de surpresa enquanto a maioria dos militares descansavam poderia ser devastador. E para isso, segundo pensava, nem seriam precisos muitos meios, bastaria que meia dúzia de elementos IN, munidos de armas brancas, se infiltrassem no aquartelamento, iludindo ou eliminando as sentinelas. Aí, os invasores poderiam tirar vantagem, por vários motivos: desde logo pela fragilidade da vedação, a que se juntava a pouca visibilidade do perímetro exterior do aquartelamento e pelo cansaço dos homens de vigia. Isto, para já nas falar das rotinas que, com o passar do tempo, o dispositivo ia mergulhando. No entanto, talvez por receio do IN, as suspeitas daquele ali, nunca se concretizaram.
Com base nessa possibilidade e para tentar preservar a sua integridade física, o Cacimbado passava as noites no bar, a que chamávamos “escape do guerreiro”, com a espingarda acessível à mão. Bebia, fumava, ouvia música e por vezes, enquanto estava sóbrio também chorava. A música fazia-o levitar e transportava-o à terra distante de onde, apesar da sua oposição ao regime e à guerra, fora arrancado quando frequentava o ensino superior. Contudo, só possuía uma cassete com vinte músicas da banda “the Doors” de Jim Morrison, mas em cada noite não se cansava de as ouvir vezes sem conta. Quando a cassete chegava ao fim de um lado virava-a para o outro. Por vezes, trauteava as canções como se fizesse parte da banda e quisesse afugentar as suas angústias que não paravam de o atormentar. À medida que o tempo se alongava ia ficando mais debilitado, mas nem assim abandonava o posto até chegar a alvorada, momento em que o efetivo disponível começava aos poucos a despertar, como se esperasse pelo render da guarda.
A noite estava quente e os mosquitos nem com repelente deixavam de utilizar o ferrão venenoso. Para molhar a boca seca, abandonei a tarimba e percorri a camarata em silêncio para não despertar outros camaradas que ressonavam em uníssono, depois de uma operação na mata que durara cinco dias e quatro noites. Desta vez foram eles, para a próxima seria o meu grupo de combate a partir para outra zona de intervenção. Agora, quando entrei no bar a música habitual não se fazia ouvir e deparei-me com um ambiente de tal modo saturado que mal se via o espaço interior. No entanto, depois de me adaptar à nuvem de fumo, reparei que as garrafas de cerveja, vazias, ocupavam grande parte da mesa junto ao Cacimbado. Ali, não havia preocupações com a arrumação e a contagem dos consumos estava reservada para o faxina do bar, quando este retomasse ao serviço, na manhã seguinte. Num olhar mais detalhado reparei no Cacimbado que estava com o tronco curvado para a frente com o cano da G3 debaixo do queixo e com um dedo encostado ao gatilho. Assim que se apercebeu da minha presença retraiu-se desmontando, rapidamente, a figura que formava. Parecia estar no limite. A sua fragilidade era notória. O cinzeiro estava cheio de beatas. Fumara dois maços de cigarros Hermínios e perdera a conta ao número às cervejas que bebera, mas continuava ali, e agora parecia que se preparava para levar a cabo um ato tresloucado. Quando o questionei sobre como tinha decorrido a vigia, limitou-se a encolher os ombros, mas, alguns segundos depois, acabaria por dizer:
Estava a experimentar tirar a folga ao gatilho!
Seguidamente, sem comentar o assunto que presenciara, abri a velha geleira a petróleo e retirei duas cervejas, uma para mim, outra para o meu camarada. Embora ele não aparentasse ter sede pensei que talvez fosse a melhor forma de começar um diálogo. Assim aconteceu e ali ficámos a conversar até ao romper da aurora em que a família e a crueldade da guerra foram os temas dominantes.
Habitualmente o Cacimbado era de poucas falas, mas agora tinha resolvido desabafar as suas mágoas. Reconhecia que chegara a um beco sem saída e a sua eternização na guerra encaminhava-o para pôr um termo ao sofrimento. Embora, em situação normal, no seu trato quotidiano, tentasse sobreviver a todo o custo, perder a esperança poderia ser a diferença entre o sobreviver ou ficar pelo caminho. Mas ele tinha razão para recear não mais voltar a casa. Pelo menos enquanto o regime político, então vigente, se mantivesse em funções não teria qualquer solução para a sua vida. Porque, quando um homem caía em desgraça e estava a necessitar de auxílio, alguém se encarregava de o empurrar para o abismo. Como fora o caso dessa vez. Tinha acabado de chegar àquele Destacamento, para onde fora transferido por motivo de punição e já lhe chegavam rumores que brevemente iria ser brindado com mais um castigo por não ter acatado, prontamente, a decisão do Comandante. Era assim naquele tempo! Nessa fase o Cacimbado parecia-me física e psicologicamente derrotado.
No dia seguinte, fui informado de que na próxima madrugada iria partir para a mata, numa operação de cinco dias e o Cacimbado, que havia sido integrado no meu pelotão, também fora escalado. No entanto, quando o informei da situação, respondeu:
-     Amanhã, provavelmente, não posso ir! Estou a ficar muito doente! Isto é paludismo!
Quando se aproximava a hora da partida, o Cacimbado deitou-se na tarimba e mandou chamar o enfermeiro alegando que estava doente. O encarregado dos cuidados de saúde dos militares, naquele fim de mundo, apressou-se a observar o doente e concluiria que ele estava com 41.º de febre. Medicou-o com uma droga qualquer e deu-lhe convalescença, com a indicação de que se a febre, entretanto, não baixasse teria que ser evacuado para o posto médico de Gago Coutinho. Ali, o enfermeiro também era médico. Assim, como o militar previra não partiu para o mato.
 Quando regressámos tive conhecimento que, duas horas após a nossa partida, já estava restabelecido. Logo que tive oportunidade não resisti e questionei-o como conseguira tamanho milagre, ao que me respondeu que, um dia, quando fosse embora, me havia de contar.
Entretanto, algum tempo depois, a revolução de 25 de Abril viria a colocar um ponto final no drama do Cacimbado. A punição, que estava na forja, ficaria sem efeito e já não cumpriu o resto do tempo que faltava para terminar a comissão, regressando mais depressa a casa. Mas, na hora da partida, disse-me que quando queria ficar com febre se limitava a introduzir um dente de alho no rabo e logo que retirasse a febre passava. Nunca mais soube nada dele.