sexta-feira, 12 de julho de 2019

A MINA DAS AGRURAS


Durante o Estado Novo o investimento público no interior serrano era quase inexistente e obras de vital importância para a população, como as relacionadas com o abastecimento de água, distribuição de luz elétrica ou a melhoria das vias de comunicação, só se conseguiam depois de muita insistência e diplomacia junto dos organismos estatais.
Com esse fim em vista, e para apoiar o povo deixado ao abandono, foram criadas muitas coletividades regionalistas, que tinham como divisa estatutária, entre outros valores, “melhorar e engrandecer a sua terra” e os seus dirigentes não se poupavam a esforços para levar por diante obras que, de outra maneira, dificilmente se concretizariam. 
Devido a essa falta de investimento, nos anos sessenta do século passado, algumas aldeias serranas ainda não possuíam água canalizada e Moninho, apesar de se situar junto à EN 112 e perto de Pampilhosa da serra, sede do concelho, era uma delas.
Ali, beber um simples copo de água, cozinhar, lavar a loiça, tomar banho, dar de beber aos animais, regar as plantas e demais utilizações domésticas, sem uma torneira por perto, era um trabalho acrescido para os habitantes da aldeia. Em função disso, a única forma de terem água para essas necessidades diárias era carrega-la, em cântaros e outras vasilhas, desde uma mina que existia ao fundo de um valeiro, nas imediações do povoado, até aos seus lares. Era uma fonte que teve origem com uma escavação, a perder de vista, até às entranhas da terra, de onde brotava água com abundância, mesmo durante o verão. Ali, perto da noite, as donas de casa, depois de terminarem a labuta do campo, onde se ocupavam na agricultura de subsistência, faziam fila para encher cântaros e outras vasilhas. Uma tarefa impensável nos dias que correm, mesmo nos lugares mais desertificados do interior. 
Ora, se não havia água para o consumo doméstico, nem mesmo em fontanários, quando se tratava de realizar uma obra de construção civil, à base de massas de cimento, essa tarefa era ainda mais complicada. Não existia outra alternativa senão carregá-la utilizando os meios compatíveis com as necessidades de consumo. 
Nessa época, durante as férias grandes, André Sargaço, que à data tinha pouco mais de doze anos, foi contratado para aquela aldeia a fim de transportar água para uma obra onde os operários se encarregavam do restauro de uma habitação. Queria comprar uma viola e aceitara trocar uns dias de divertimento e convívio com os amigos, por um trabalho que seria remunerado de acordo com os resultados. No entanto, quando aceitara aquela função estava longe de imaginar o calvário que o esperava. Carregar água de uma mina, que se situava ao fundo de um barroco por um trilho com bastante inclinação, que distava do local cerca de cem metros, não era tarefa agradável, especialmente, para uma pessoa com a sua idade.
No seu primeiro dia de trabalho, logo que se inteirou da função de que fora incumbido, entregou-se à luta de forma dinâmica como se um divertimento se tratasse. 
Começou por carregar dois baldes, de dez litros cada, um em cada mão, cujo líquido se destinava a ir enchendo vários bidões de duzentos litros cada. Mas os primeiros resultados não foram animadores: a subida era íngreme e os braços frágeis depressa começaram a ceder. Para além disso, o desperdício de água provocado pela deslocação em terreno acidentado era considerável. Depois de cada descarga, André Sargaço olhava para o bidão e ao notar que o nível quase não se alterava ficava um pouco desalentado. Mas, logo a seguir, caminhava mais depressa ao encontro de novo carregamento para tentar mostrar serviço e não por em causa a sua capacidade. 
Ao fim de várias deslocações à fonte, concluiu que tinha que arranjar outra forma de transporte menos cansativa e com menor desperdício. Então, pensou em utilizar dois regadores em zinco que eram, parcialmente, protegidos com tampa. Sim, essa parecia ser uma forma de poder caminhar mais depressa e não entornar parte da água. Solução que, embora não fosse a ideal, lhe parecia ser a mais adequada àquele serviço. Com essa ideia em mente, o seu trabalho foi continuando cada vez com maior dificuldade e com paragens mais frequentes para aliviar os braços que não estavam familiarizados com um esforço tão prolongado. 
Enquanto aguardava pela chegada das vasilhas que solicitara e se ia movimentando naquele vai e vem extenuante, pensava nos amigos que, certamente, àquela hora, se encaminhavam para o Poço Escuro para os habituais mergulhos e pescarias. Coisa que, para ele, apesar do calor que se fazia sentir, agora, estava vedado. Logo a seguir, veio-lhe à mente uma história que ouvira a um antigo militar sobre o Forte da Graça em Elvas, para onde aquele fora atirado por motivo de castigo. Segundo contava, os prisioneiros, ali, eram obrigados a carregar um barril meio-cheio de água desde a fonte, no sopé da montanha, até ao Forte situado la bem no topo, e André Sargaço imaginou o sacrifício que aqueles fariam. 
A meio da tarde todo o corpito lhe doía. Como se isso já não fosse suficiente o calor sufocante ainda veio agravar a situação. Para além dos braços também as pernas não queriam colaborar no esforço. Nem mesmo as palavras de incentivo que lhe chegavam das pessoas com quem se encontrava no trajeto lhe davam alento. Embora lhe apetecesse desistir não o podia fazer, por uma questão de princípio, perante o compromisso que assumira.  
No meio daquela azáfama, André Sargaço foi incumbido de se deslocar à taberna, que se situava junto à EN 112, a cerca de duzentos metros da obra, para ir buscar uma mistura de bebidas a que chamavam cervejão. Conforme acordaram, dessa vez, seria constituída por cerveja, gasosa e vinho branco. Uma espécie de refresco, pese embora algum teor alcoólico, que permitia aos trabalhadores ingerir maior quantidade sem se sentirem afetados pela bebida. Então, assim que foi delegado naquele recado sentiu-se aliviado e meteu-se a caminho sem grande pressa porque enquanto tratava daquele assunto folgava os braços e se a água, entretanto, acabasse já tinha uma justificação. Ainda assim, levava na bagagem uma recomendação para que se apressasse no regresso para o refresco não aquecer. 
Assim que chegou à taberna, local onde os trabalhadores se reuniam no final da jorna para tomar uma bebida antes de seguirem aos seus destinos, entregou o garrafão, de cinco litros, ao taberneiro, com a indicação da quantidade e da mistura que pretendia. Aquele que, algumas vezes, bebia em parceria com os clientes, não perdeu tempo e, como se procurasse o melhor vinho para servir bem os fregueses, abriu um garrafão que escolheu entre o amontoado que tinha junto ao balcão, encheu um copo e saboreou uma golada, depois de analisar o néctar esboçou um esgar de satisfação e disse: 
-    Oh rapaz!? Diz ao teu patrão que este vinho é do melhor que há cá na Serra! Portanto, desta vez, não aceito reclamações!
Seguidamente, entregou-se à preparação da mistura adicionando os ingredientes solicitados. Assim que terminou e de acordo com a indicação que, inicialmente, recebera do encarregado da obra, anotou a despesa no livro de registo dos débitos ou livro dos calotes como ele gostava de dizer. E logo a seguir, levou o copo à boca, bebeu o resto vinho e dando ênfase à sua especialidade de enólogo, comentou: 
-    É uma pena misturar vinho desta qualidade com outras zurrapas! Querem boa qualidade e depois estragam tudo: vinho, gasosa e cerveja! – e concluiu: - Não te demores rapaz! Que, com este calor, o cervejão aquece depressa!
Embora não precisasse de recomendações, André Sargaço partiu sem responder ao taberneiro que, por sinal, lhe pareceu já um pouco tocado. Logo que atravessou a EN e entrou no carreiro de atalho à via principal, ladeado pelo emaranhado de acácias mimosas, não resistiu. A sede era muita e resolveu molhar a boca seca. Levantou o garrafão, provou e bebeu uma golada, depois outra bastante mais prolongada até se achar satisfeito e logo a seguir, partiu em passo rasgado ao encontro dos operários que aguardavam o refresco com ansiedade. Enquanto se deslocava, concluiu que era a primeira vez que bebia cervejão e ficou agradavelmente surpreendido dado que lhe soubera melhor que o vinho tinto que, por vezes, provava na adega do seu pai. 
Assim que chegou à obra, depois de servir um copo a cada trabalhador, não se fez rogado, bebeu também a sua parte e logo a seguir voltou à via-sacra que lhe fora reservada. Decorridos alguns minutos, tudo se modificou para melhor: os baldes ficaram mais leves e as pernas deixaram de reclamar. Apesar do calor que se fazia sentir, descia e subia a rampa em marcha mais rápida e assim continuou, com o mesmo empenho, até ao fim da jornada. 
Na madrugada seguinte acordou mal disposto só que não teria sido pela quantidade da bebida, mas pelo facto de não estar habituado a ingerir bebidas alcoólicas. Quando regressava ao trabalho, ainda enjoado, prometeu, a si próprio, não repetir a experiência. Promessa que não viria a cumprir atendendo a que passou a ir à taberna duas vezes por dia e o calor não dava tréguas. 
Logo que chegou à obra, já na presença dos regadores, muniu-se de um pequeno pau para servir de canga à qual, em cada extremidade, juntou um gancho em ferro para pendurar as novas vasilhas. Assim, o peso já recaía sobre as costas e não nos braços como acontecera na véspera. Nos primeiros carregamentos tudo lhe pareceu mais facilitado: andava mais rápido e não tinha desperdício de água, mas com o passar do tempo o cansaço e a saturação acabariam por se manifestar. 
Naquele tempo, na região serrana, o movimento rodoviário era muito reduzido e a passagem de qualquer viatura pela EN despertava a curiosidade dos residentes que, por vezes, atendendo ao tipo de veículo, até davam palpites sobre o nome do condutor e proprietário em causa. Talvez por isso, a meio da tarde, quando André Sargaço se deslocava para a taberna, a fim de se ocupar de mais um refresco, ouviu o som de uma buzina e parou para observar o que se passava quando reparou que aquela se limitava a anunciar a aproximação de um ciclista que se deslocava no sentido Valongo – Moninho. Tratava-se de um cantoneiro que, depois de terminar o seu período de trabalho, se fazia anunciar numa algazarra interminável provocada por uma buzina manual que adaptara à bicicleta. Como diariamente acontecia, tinha paragem obrigatória na taberna onde, repunha os níveis de líquidos, conversava e, quando era provocado, fazia questão de se empenhar na defesa à sua classe. Quando era confrontado com críticas à falta de produtividade dos cantoneiros, que há época eram habituais, para além de contrariar esse ponto de vista, não se cansava de realçar a dureza do seu trabalho enfrentando os humores da natureza, tanto no verão como no inverno. 
Naquele dia, o cantoneiro não perdeu tempo. Quando André Sargaço chegou à taberna já aquele segurava um copo de tinto e falava da sua jornada de trabalho que decorrera debaixo de um sol escaldante na zona do Valongo. Valongo era a área do seu Cantão (área de trabalho que lhe estava destinada) onde lamentava não existirem sombras para se abrigar do sol escaldante nem água fresca para matar a sede.

Para André Sargaço o quotidiano foi decorrendo sem grandes alterações, mas ao fim de duas semanas deixou o trabalho, recebeu o ordenado e foi gozar as merecidas férias.

terça-feira, 23 de abril de 2019

O CACIMBADO NAS TERRAS DO FIM DO MUNDO

Vista aérea do aquartelamento de Gago Coutinho, sede do Comando da Unidade.

                             A propósito das comemorações de mais um aniversário da revolução de 25 de Abril, lembrei-me de um camarada que me acompanhou na guerra colonial.
                            

Passaram muitos anos desde que deixei as matas de Ninda, mas hoje, enquanto remexia o arquivo da minha memória, regressei ao tempo em que calcorreei aquelas terras, lembrando um camarada que me acompanhou em algumas etapas calcando areia minada. Embora se tratasse de uma convivência de, apenas, três meses foi a suficiente para verificar a degradação, física e psicológica, a que a longa servidão o conduzira. Um jovem, como todos nós, a quem roubaram a juventude a troco de interesses que não eram os seus. Então foi assim:
Naquele dia, o meu grupo de combate foi escalado para se deslocar a Gago Coutinho (atual Lumbala) a fim de se ocupar do reabastecimento logístico. Às seis horas da manhã, a coluna composta por quatro Berliets e trinta militares, iniciou a marcha em Ninda, para percorrer cerca de setenta quilómetros de picada cujo percurso, sem incidentes, demorava perto de três horas.
Logo que chegámos à sede da Unidade, o Comandante determinou-me para não regressar a Ninda sem me fazer acompanhar de um Furriel, com alcunha de Cacimbado, que, por motivo de castigo, acabara de chegar do norte de Angola. Com a indicação de que se aquele não acatasse, prontamente, a ordem de marcha teria que ir sob prisão. Ainda tinha seis meses de comissão para cumprir e acreditava que ali, naquele fim de mundo, seria o local mais indicado para expurgar as suas faltas disciplinares. O aumento de tempo na comissão resultara da sua última punição que motivou a transferência para a Unidade a que eu pertencia.
Em face da descrição daquele homem concluí que o bar seria o local mais provável para o localizar. Assim, logo que entrei, deparei-me com um militar que não se enquadrava no escalão etário dos restantes elementos da Unidade. Era um veterano, visivelmente desgastado, que vestia farda número dois com muito uso, dando ideia, à partida, de uma longa vivência como militar. Estava sentado com as pernas apoiadas numa cadeira e na mão segurava um copo com uma bebida que me pareceu Whisky. Sem alterar a postura, logo que encarou comigo, atirou de imediato:
-    Oh maçarico?! Nem penses que me vais levar! Não volto para o mato!
Logo a seguir, antes de me pronunciar, bebeu um trago e levou um cigarro à boca libertando uma baforada aromática a maconha que lhe ocultou, momentaneamente, a cara. Estivera sempre nas piores zonas de guerra devido aos castigos que já ultrapassavam duas dezenas. Com isso, tivera agravamentos sucessivos no tempo de comissão que, nessa data, já excedia quarenta meses. Tinha razões de sobra para estar saturado da guerra e, talvez por isso, parecia ausente da realidade que o rodeava. À medida que me ia aproximando, olhava na minha direção, ria-se e, ao mesmo tempo, sussurrava uma canção que nesse momento passava na rádio. Face ao cenário que se me apresentava, deduzi que não iria ser fácil cumprir aquela missão, mas também não queria optar pela alternativa que o Comandante determinou. Aquele homem já tinha sido violentado demasiadas vezes e apenas me limitei a dizer:
-     Aí é que estamos em desacordo! Não posso regressar a Ninda sem ti. Não há outra solução!
-     Estou farto de guerra! Não volto para o mato! Em Ninda só se safa quem andar com os pés às costas. – pegou no copo e saboreou mais uma golada e mal terminou elogiou o puro néctar do Dimple de doze anos, deu uma sentida gargalhada e exclamou:
-     Oh maçarico?! Esquece a ordem e vem beber um copo comigo! Este é do bom e lá não há disto!
Com alguma paciência e perseverança fui desmontando todos os cenários que ele ia criando para se proteger até o convencer a acompanhar-me. Assim, vinte minutos mais tarde, pegou num pequeno saco com bugigangas e partimos, ainda assim, com paragens frequentes para me questionar sobre a situação que iria encontrar e para acender cigarros que só duravam uma fumaça. Logo que chegámos à parada, ao cruzar com um camarada, arranjou um motivo para regressar ao bar para brindarem à despedida. Naquela fase tudo lhe servia de pretexto para tentar protelar a partida, situação a que anuí depois de contar com a colaboração do militar em causa. Assim depois de um brinde rápido chegámos junto das viaturas. Mas aí, logo que o Cacimbado encarou o Comandante tudo se complicou, estacou e disse em voz alta:
-   Comandante?! Eu não vou para o desterro! As Nep’s dizem que numa zona cem por cento operacional nenhum militar pode andar sem uniforme camuflado e eu não o tenho!
Nesse momento, o Comandante ordenou ao quarteleiro que lhe entregasse um uniforme camuflado. O Cacimbado dirigiu-se, sem pressas, para a arrecadação, na companhia do quarteleiro, de onde viria a sair vinte minutos mais tarde, enfiado num fato desproporcionado ao seu físico: parecia um espantalho e alguns militares riam-se daquela triste figura.
-  Então? Agora já está tudo bem?! – questionou o Comandante, que esperava no mesmo local, visivelmente impaciente. Todavia, o Cacimbado não tinha pressa e ainda guardava mais um trunfo para jogar, tentando por todos os meios, evitar ir para um local que tanto receava e disse:
-    Saiba V.ª Ex.ª. que, como as Nep’s também dizem, numa zona cem por cento operacional nenhum militar pode andar desarmado.
Aí o Comandante ficou, momentaneamente, indeciso avaliando as consequências que daí poderiam resultar, mas, ao fim de alguns segundos, num repente impulsivo, gritou a plenos pulmões:
-   Oh quarteleiro! Dá uma espingarda a este gajo antes que eu lhe parta os cornos! Este cabrão está a gozar comigo!
Enquanto o quarteleiro se deslocava, em passo de corrida, para a arrecadação, o Cacimbado ficou calado e imóvel no meio de uma assembleia de maçaricos, como ele os chamava. Em poucos segundos recebeu a arma devidamente municiada e, com ela, fez a continência ao Comandante, que retribuiu o cumprimento e questionou num tom vincadamente irónico:
-   Oh furriel?! Agora as Nep´s já não dizem mais nada?
Aquele ignorou a pergunta, virou-lhe as costas, subiu para a carroçaria da viatura e deitou-se sobre a sacaria, a caminho de cumprir mais seis meses de comissão. Durante a viagem colaborou, com a sua experiência e estoicismo, na segurança de todo o pessoal e meios.

Três meses mais tarde, numa noite em que eu pernoitava no aquartelamento de Ninda, despertei ao som de um estalido, caraterístico, provocado pelo manobrador da espingarda G3 para introduzir uma munição na câmara. Talvez por via disso e da intranquilidade que ali se vivia, de imediato, como que impelido por uma mola, saltei da cama, agarrei a arma que me fazia companhia junto à cabeceira e abeirei-me da janela para tentar analisar o que estaria a acontecer. Ao fim de alguns segundos de espera, que nunca mais passavam, concluí que o estridor teria sido obra do Cacimbado em mais uma das suas noitadas de vigia como ele costumava dizer.
Embora aquele homem já tivesse uma longa vivência em cenários de guerra, durante a noite, raramente dormia. Acreditava que um ataque ao aquartelamento estaria eminente e a melhor forma de minimizar as consequências seria estar sempre em alerta para não ser apanhado à mão, como tanto receava que acontecesse. Sem dúvida que um ataque de surpresa enquanto a maioria dos militares descansavam poderia ser devastador. E para isso, segundo pensava, nem seriam precisos muitos meios, bastaria que meia dúzia de elementos IN, munidos de armas brancas, se infiltrassem no aquartelamento, iludindo ou eliminando as sentinelas. Aí, os invasores poderiam tirar vantagem, por vários motivos: desde logo pela fragilidade da vedação, a que se juntava a pouca visibilidade do perímetro exterior do aquartelamento e pelo cansaço dos homens de vigia. Isto, para já nas falar das rotinas que, com o passar do tempo, o dispositivo ia mergulhando. No entanto, talvez por receio do IN, as suspeitas daquele ali, nunca se concretizaram.
Com base nessa possibilidade e para tentar preservar a sua integridade física, o Cacimbado passava as noites no bar, a que chamávamos “escape do guerreiro”, com a espingarda acessível à mão. Bebia, fumava, ouvia música e por vezes, enquanto estava sóbrio também chorava. A música fazia-o levitar e transportava-o à terra distante de onde, apesar da sua oposição ao regime e à guerra, fora arrancado quando frequentava o ensino superior. Contudo, só possuía uma cassete com vinte músicas da banda “the Doors” de Jim Morrison, mas em cada noite não se cansava de as ouvir vezes sem conta. Quando a cassete chegava ao fim de um lado virava-a para o outro. Por vezes, trauteava as canções como se fizesse parte da banda e quisesse afugentar as suas angústias que não paravam de o atormentar. À medida que o tempo se alongava ia ficando mais debilitado, mas nem assim abandonava o posto até chegar a alvorada, momento em que o efetivo disponível começava aos poucos a despertar, como se esperasse pelo render da guarda.
A noite estava quente e os mosquitos nem com repelente deixavam de utilizar o ferrão venenoso. Para molhar a boca seca, abandonei a tarimba e percorri a camarata em silêncio para não despertar outros camaradas que ressonavam em uníssono, depois de uma operação na mata que durara cinco dias e quatro noites. Desta vez foram eles, para a próxima seria o meu grupo de combate a partir para outra zona de intervenção. Agora, quando entrei no bar a música habitual não se fazia ouvir e deparei-me com um ambiente de tal modo saturado que mal se via o espaço interior. No entanto, depois de me adaptar à nuvem de fumo, reparei que as garrafas de cerveja, vazias, ocupavam grande parte da mesa junto ao Cacimbado. Ali, não havia preocupações com a arrumação e a contagem dos consumos estava reservada para o faxina do bar, quando este retomasse ao serviço, na manhã seguinte. Num olhar mais detalhado reparei no Cacimbado que estava com o tronco curvado para a frente com o cano da G3 debaixo do queixo e com um dedo encostado ao gatilho. Assim que se apercebeu da minha presença retraiu-se desmontando, rapidamente, a figura que formava. Parecia estar no limite. A sua fragilidade era notória. O cinzeiro estava cheio de beatas. Fumara dois maços de cigarros Hermínios e perdera a conta ao número às cervejas que bebera, mas continuava ali, e agora parecia que se preparava para levar a cabo um ato tresloucado. Quando o questionei sobre como tinha decorrido a vigia, limitou-se a encolher os ombros, mas, alguns segundos depois, acabaria por dizer:
Estava a experimentar tirar a folga ao gatilho!
Seguidamente, sem comentar o assunto que presenciara, abri a velha geleira a petróleo e retirei duas cervejas, uma para mim, outra para o meu camarada. Embora ele não aparentasse ter sede pensei que talvez fosse a melhor forma de começar um diálogo. Assim aconteceu e ali ficámos a conversar até ao romper da aurora em que a família e a crueldade da guerra foram os temas dominantes.
Habitualmente o Cacimbado era de poucas falas, mas agora tinha resolvido desabafar as suas mágoas. Reconhecia que chegara a um beco sem saída e a sua eternização na guerra encaminhava-o para pôr um termo ao sofrimento. Embora, em situação normal, no seu trato quotidiano, tentasse sobreviver a todo o custo, perder a esperança poderia ser a diferença entre o sobreviver ou ficar pelo caminho. Mas ele tinha razão para recear não mais voltar a casa. Pelo menos enquanto o regime político, então vigente, se mantivesse em funções não teria qualquer solução para a sua vida. Porque, quando um homem caía em desgraça e estava a necessitar de auxílio, alguém se encarregava de o empurrar para o abismo. Como fora o caso dessa vez. Tinha acabado de chegar àquele Destacamento, para onde fora transferido por motivo de punição e já lhe chegavam rumores que brevemente iria ser brindado com mais um castigo por não ter acatado, prontamente, a decisão do Comandante. Era assim naquele tempo! Nessa fase o Cacimbado parecia-me física e psicologicamente derrotado.
No dia seguinte, fui informado de que na próxima madrugada iria partir para a mata, numa operação de cinco dias e o Cacimbado, que havia sido integrado no meu pelotão, também fora escalado. No entanto, quando o informei da situação, respondeu:
-     Amanhã, provavelmente, não posso ir! Estou a ficar muito doente! Isto é paludismo!
Quando se aproximava a hora da partida, o Cacimbado deitou-se na tarimba e mandou chamar o enfermeiro alegando que estava doente. O encarregado dos cuidados de saúde dos militares, naquele fim de mundo, apressou-se a observar o doente e concluiria que ele estava com 41.º de febre. Medicou-o com uma droga qualquer e deu-lhe convalescença, com a indicação de que se a febre, entretanto, não baixasse teria que ser evacuado para o posto médico de Gago Coutinho. Ali, o enfermeiro também era médico. Assim, como o militar previra não partiu para o mato.
 Quando regressámos tive conhecimento que, duas horas após a nossa partida, já estava restabelecido. Logo que tive oportunidade não resisti e questionei-o como conseguira tamanho milagre, ao que me respondeu que, um dia, quando fosse embora, me havia de contar.
Entretanto, algum tempo depois, a revolução de 25 de Abril viria a colocar um ponto final no drama do Cacimbado. A punição, que estava na forja, ficaria sem efeito e já não cumpriu o resto do tempo que faltava para terminar a comissão, regressando mais depressa a casa. Mas, na hora da partida, disse-me que quando queria ficar com febre se limitava a introduzir um dente de alho no rabo e logo que retirasse a febre passava. Nunca mais soube nada dele.