sexta-feira, 1 de agosto de 2014

NA ROTA DO OCASO


Naquele dia, Tiago notava uma estranha sensação de vazio que não sabia se era de alívio ou de perda. Era um misto de sentimentos que teimavam em não lhe dar alento: se por um lado atingia o culminar da sua carreira onde dera muito do seu melhor, por outro, sentia uma enorme frustração de ausência que raiava a saudade. Continuava imbuído das suas funções, mas parecia que tudo à sua volta deixava de lhe fazer sentido. Até por parte dos camaradas de trabalho já era notório um certo distanciamento que rapidamente se traduziria em esquecimento. Para trás iam ficando, tanto de dia como de noite, jornadas intermináveis, enfrentando, tanto o bom tempo como a intempérie, à mistura com agruras e riscos de toda a ordem, sem lugar a contestações de qualquer tipo.
Assim, no culminar de tudo isso, logo que terminasse o dia iria passar à situação de reforma. Uma mudança brusca que lhe traria, certamente, muitas alterações no seu quotidiano. Embora o passado lhe deixasse marcas indeléveis para o resto dos seus dias, dado que era impossível apagar da mente uma vida de plena entrega, teria de se ir adaptando com resiliência à liberdade limitada de que passaria a usufruir. Sim, porque ninguém é verdadeiramente livre se tiver condicionamentos de qualquer natureza. Seguindo a mesma linha de raciocínio, para além da liberdade de pensamento, como pode um idoso com limitações e dependências de todo o género ser verdadeiramente livre? Completamente impossível!
Durante a sua vida de trabalho utilizara todos os meios ao seu dispor para levar a nau a bom porto e saborear a maravilhosa sensação do dever cumprido. Afinal, magra consolação, atendendo ao elevado investimento físico e psicológico, para tão pobre compensação. Na realidade, não foi fácil percorrer um caminho onde a tão anunciada realização pessoal nunca chegara a acontecer. Um sonho utópico condenado definitivamente ao insucesso à medida que o tempo se ia escoando. E agora, tudo isso e muito mais já fazia parte de um passado distante que, naquele momento, não lhe parecia ter deixado saudade.
Após o término do seu último dia de serviço sentou-se ao volante do carro com a intenção de regressar a casa. Mas, nesse preciso instante, chegou-lhe o eco do afável tagarelar dos camaradas que assistiam, pela televisão, ao jogo inaugural do campeonato do mundo de futebol no Brasil e acabaria por manter o motor desligado. Ficou indeciso, como que dominado por uma força superior que o impedia de partir. Acendeu um cigarro e após a primeira baforada recostou-se no banco, procurando arranjar coragem para virar as costas a uma vivência que se prolongara por trinta e seis anos. Num abrir e fechar de olhos, perdeu-se no emaranhado dos seus pensamentos vasculhando na poeira do tempo um interminável desfilar de reminiscências que, agora, pareciam traduzir-se numa enorme sensação de alívio. Entre muitas, vieram-lhe à memória alguns episódios do seu tempo de combatente em África onde perdera mais de dois anos da sua juventude em prol de uma ideologia que não servira a ninguém. Não passavam de recordações daquela guerra estúpida onde, devido à incerteza quotidiana, vivera intensamente cada pedaço de vida.
Começou por recordar o dia em que foi parar aos calabouços de uma prisão sem que, em sua opinião, tivesse cometido qualquer ato censurável. Apanhou por tabela, só porque se empanturrara de cerveja e assistia, imperturbável, a uma contenda entre alguns elementos das forças militares amigas cujo resultado se resumiu a pouco mais do que uma montra partida. No entanto, a confusão durou até à chegada da polícia militar que procedeu à detenção de todos os elementos presentes, embora trajassem civilmente. Aqui, contou com a colaboração da DGS que, como era habitual, proliferava por todos os locais de concentração de público onde controlava todos os movimentos. Uma mancha na sua carreira militar que, apesar da distância temporal, teimava em o assaltar em cada momento. Uma detenção que durara dois longos dias e apenas visara castrar o espirito libertino de um jovem cansado dos já quase doze meses de guerra.
No explanar dos seus pensamentos lembrou-se do Soba Paulino, um indígena que, para além da sua função administrativa, participava nos rituais de natureza tribal e assistia ao passar lento dos dias em paz com o mundo. Na companhia da Laurinda, sua esposa, passava as tardes a descansar à porta da palhota em notada melancolia enquanto ela de olhar carente exibia o rosto onde tinha vários desenhos esculpidos e que revelavam parte da sua história de vida, como se, através deles, quisesse reforçar a sua posição de líder feminino da tribo.
Recordou também a Teresa lavadeira que, devido à sua forma extrovertida, não se enquadrava no estilo da mulher local. Tinha outros horizontes e sonhava com lugares mais desenvolvidos do mundo moderno. Embrulhada na sua capulana matizada de cores garridas, não tinha parança. A par do trabalho na lavra, lavava, remendava e passava a ferro, muito do fardamento crestado pelo sol, a troco de magro pagamento.
E, ainda, o Macário, um indígena frio e de coração vazio que, habitualmente, era requisitado como guia pisteiro nas deslocações operacionais. Tinha pertencido aos rebeldes, mas, vá-se lá a saber a troco de quê, mais tarde aliou-se à tropa portuguesa. Conhecia o terreno como as suas mãos. Tanto em área mais aberta, como desbravando trilhos através da floresta densa. Nunca perdia o sentido de orientação e ao mesmo tempo, decifrava qualquer vestígio com a perspicácia própria de um verdadeiro batedor.
Depois da guerra nunca mais tivera notícias deles.
Paralelamente a toda essa vivência, recordou, ainda, algumas situações dramáticas. Entre elas, sobressaía a imagem do Miguel, um soldado que há muito fazia planos para depois do seu regresso a casa. Sonhos que buscavam um futuro melhor. Queria emigrar para a Alemanha onde tinha alguns familiares. Lamentavelmente, esse projeto de vida nunca se chegaria a concretizar. A tragédia aguardava-o debaixo do chão arenoso que pisavam. De facto, num dia fatídico, o jovem seguia normalmente pela picada integrado numa missão de patrulhamento e a determinada altura ao apoiar o pé no chão acionou uma mina dissimulada em pleno trilho. No mesmo instante, voou pulverizado pela explosão caindo destroçado sobre a cratera do rebentamento. Uma visão aterradora, provocada por uma armadilha criminosa, concebida para estropiar os homens e capaz de abater psicologicamente todo um batalhão. Uma crueldade de uma desumanidade sem paralelo, que deixou o ar impregnado de nitroglicerina, a par do terror e da dor.
Agora, logo que o som da palavra golo ecoou, Tiago despertou das intermináveis recordações da sua juventude militar, lançou um olhar contemplador sobre o parque que lhe era familiar e partiu a caminho do ocaso.
Como ansiara por aquele momento! Quantas vezes dera consigo a contar os meses e dias que lhe faltavam para concluir a sua etapa e o dia chegou, quase, sem que ele tivesse dado por isso. Algum tempo antes, chegara mesmo a pensar organizar uma festa de despedida, mas o tempo fora passando sem que, entretanto, tivesse tomado qualquer decisão sobre o assunto. Agora, era demasiado tarde para pensar nisso, entrara na situação de reforma e não parecia assim tão entusiasmado como imaginara que acontecesse. Todavia, reconhecia ser a melhor solução. A saturação era grande. A exigência aumentava de dia para dia. O aumento constante da incivilidade com que se deparava diariamente tornara-se-lhe numa penosa agonia. Entretanto, com o passar do tempo, perdera algumas capacidades. Na realidade estava a ficar demasiado cansado para continuar a lidar de perto com irreverência. De uma coisa tinha a certeza, iria, certamente, acordar muitas vezes a pensar que estava na hora de se apresentar ao trabalho, mas para isso encontrava facilmente solução.
Com o afastamento do serviço, longe do stress, só esperava viver o resto dos seus dias com a tranquilidade que não tivera ao longo de toda a sua vida profissional. Queria, sobretudo, acompanhar de perto o crescimento dos netos que, por imperativo de serviço, o não fizera com os filhos, facto que fora, sem dúvida, a sua maior lacuna na abrangência familiar.
Paralelamente à sua nova etapa, teria que tentar viver com todos os momentos que marcaram a sua vida de trabalho: as boas recordações iria guardá-las para sempre no arquivo da sua memória; as mágoas iria apaga-las o mais rápido que lhe fosse possível, mas acreditava que o tempo seria o seu melhor aliado.