quarta-feira, 8 de outubro de 2014

O TESOURO COBIÇADO




Naquela noite de novembro de 1920, Acácio Mineiro não fez serão à lareira como habitualmente, logo que terminou a ceia decidiu ir para a cama. Estava muito cansado. Passara o dia a  podar a vinha e como se esse trabalho já não fosse suficientemente cansativo o tempo, chuva miudinha ininterrupta, também não ajudara. Em função dessa labuta, assim que chegou à cama adormeceu, mas estava longe de imaginar o que a noite lhe reservava. 
Uma hora mais tarde, acordou estonteado, ao som do matraquear das ferraduras de uma qualquer cavalgadura que se aproximava pela viela que dava acesso à sua casa. A esposa, como habitualmente, dormia que nem uma pedra. Tinha a doença do sono, dificilmente acordava a menos que a casa lhe caísse em cima. No entanto, pelo contrário, ele dava conta de qualquer ruído, fruto dos seus dias de guerra e da intranquilidade que lá vivera que o forçara a um alerta permanente na luta pela sobrevivência. Para além dessa vigilância constante, a sua casa, edificada em pedra de xisto, ficava paredes-meias com a via pública e isolada do resto do casario, cerca de duzentos metros, o que, por si só, facilitava a perceção de qualquer movimento, mas ao mesmo tempo, tornava a habitação mais vulnerável a um qualquer assalto. 
Não era normal a passagem de quadrúpedes pela aldeia àquela hora tardia, muito menos por uma ruela estreita que, apenas, dava acesso às propriedades agrícolas. Em face disso, Acácio ficou confuso, sem saber muito bem onde se encontrava, como se despertasse de mais um dos seus, frequentes, pesadelos. Começou por fazer conjeturas sobre o que teria acontecido, mas como não encontrou explicação lógica, ajeitou a almofada, aconchegou as mantas e mudou diversas vezes de posição, à espera que o sono lhe sossegasse a mente. Porém, quando estava quase a adormecer, o silêncio voltou a ser interrompido. O matraquear atormentador das ferraduras sobre a rua em macadame voltou a ouvir-se em passada muito pausada. De passada em passada acabaria por se imobilizar junto ao seu casebre.
Agora estava acordado, tinha a certeza de que não se tratava de um pesadelo. Era mesmo real! Quem seria àquela hora da noite? Assaltantes? Uma força policial no encalce de algum criminoso? Algum viajante perdido em busca de auxílio? Sem resposta para as suas conjeturas, saltou da cama como que impulsionado por uma mola, mas enquanto aguardava que lhe batessem à porta e se identificassem, muitos pensamentos lhe passaram pela ideia. Enquanto esperava que a situação evoluísse manteve-se imóvel.
Entretanto, vieram-lhe à memória histórias de arrepiar que ouvira sobre as invasões francesas. Nessa época, as tropas de Napoleão vandalizavam casas e celeiros, dia e noite, saqueando e destruindo tudo o que encontravam. Aos aldeões não restava outra solução que não fosse fugir ou pactuar com os invasores na esperança de que nada de pior lhes acontecesse.
Tentando conter a respiração e com a mente mergulhada nesses pensamentos aterrorizantes tateou o canhangulo, de carregar pela boca, que tinha junto à cama. Armou o cão e ficou de tocaia à espera que um qualquer vândalo lhe entrasse pela casa dentro. Estava convicto que o primeiro a invadir a sua intimidade seria abatido à queima-roupa. Depois logo veria, mas como não teria tempo para recarregar a espingarda resolveria a questão à cacetada. Aguentou alguns segundos na escuridão do seu pequeno espaço, sem que a situação evoluísse. Por fim, ouviu um murmúrio confuso de vozes que se misturavam com o chapinhar das pingos de chuva que caíam dos beirados, prenúncio de que algo de inesperado estaria para acontecer. Um arrepio percorreu-lhe a espinha que o impulsionou a antecipar-se aos acontecimentos. Abeirou-se, silenciosamente, do postigo que dava para a viela, conteve a respiração e abriu cautelosamente o caixilho. Meteu o cano da arma de fora e disparou para o vazio. O clarão, acompanhado de um estrondo aterrador, rasgou inesperadamente a escuridão e, ato contínuo, gerou movimentos inesperados que culminaram numa retirada em galope desenfreado. Logo a seguir, acendeu a candeia de azeite e recarregou apressadamente a espingarda, na expectativa do que pudesse surgir. Apesar da sua cautela não viria a se incomodado o resto da noite.
Acácio Mineiro tinha regressado, há cerca de dois anos, da Primeira Grande Guerra onde combatera na região da Flandres. À semelhança de muitos companheiros havia sido integrado no Corpo Expedicionário, sem estar minimamente preparado para a guerra. Na realidade, para além de teorias avulsas e de prática de ordem unida, tinha apenas no seu curriculum uma dúzia de disparos com a espingarda Mauser, efetuados em carreira de tiro. Em função disso e das condições deploráveis que ali encontrara, enterrado nas trincheiras, com água pelos joelhos e exposto aos gases utilizados tanto pelas forças inimigas, como até pelas amigas, acabaria por adoecer alguns meses depois. Contudo, só regressaria a Portugal após o Armistício, onde viria a chegar num estado lastimável, magro e doente, ao ponto de a família ter dificuldade em o reconhecer. Agora parecia curado das lesões físicas, mas os traumas das etapas vividas ainda estavam latentes.
A par das agruras que lá passara, parece que ainda teria tido um pequeno rasgo de sorte. Constava-se que, durante um combate, enquanto se abrigava nos escombros de um edifício parcialmente destruído pela guerra, teria encontrado uma caixa com cinquenta libras em ouro. Só mais tarde, depois de regressar a casa, viria a denunciar a posse do seu pequeno tesouro, trocando algumas libras por moeda corrente. Com o passar do tempo, a história do tesouro foi tomando forma e espalhou-se pelos negociadores de ouro, desencadeando a cobiça dos amigos do alheio que, devido àquele tempo difícil, estavam mais ávidos do que nunca. Foi preciso aquele susto para que Acácio Mineiro tomasse consciência disso e ficasse mais acautelado.