quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

O LADRÃO DA AVENIDA






Naquela manhã, Tiago estacionou o seu Ford Escort, a meio da avenida, mesmo em frente à mercearia do ti Januário, sem a habitual volta aos quarteirões em busca de lugar disponível. As dificuldades crescentes de estacionamento obrigavam-no, em cada dia, a sair mais cedo de casa para não chegar atrasado ao trabalho. Chegava ali muitas vezes àquela hora e nunca se apercebera de uma alvorada, assim, tão pachorrenta. Ao longo dos passeios não faltavam espaços disponíveis para parqueamento dando mesmo a ideia de que toda a gente havia fugido adivinhando uma catástrofe. Apenas se ouvia o tric tric de uma tesoura de podar, habitualmente, utilizada pelo ti Januário que, nas horas de menor aperto, deixava o seu estabelecimento de mercearia ao cuidado da esposa, para se ocupar de jardins particulares anexos às vivendas da redondeza.
O jardineiro era um sexagenário bastante dinâmico. Dedicara sempre um pouco do seu tempo disponível à botânica. Estudara sobre a diversidade das espécies, trato e habitats, mas também aprendera muito de forma empírica, mercê do seu gosto pelas plantas. Apesar de todos os seus conhecimentos e empenho, por vezes, era confrontado com vândalos que para além de lhe roubarem algumas espécies, mais raras e mais bonitas, também lhe danificavam os jardins que tinha a seu cargo.    
Ansiando por tranquilidade, logo que Tiago fechou a porta ao veículo olhou em redor e sentiu uma agradável surpresa pelo estranho sossego que o rodeava. Trabalhava num escritório de contabilidade, onde passava os dias enclausurado, em guerra constante com papéis e números, que lhe aumentavam os níveis de stress. Ao fim de cada dia, quando chegava à via pública já não tinha pachorra para suportar a sofreguidão urbana que o envolvia. De facto, atendendo à forma como era obrigado a viver o seu quotidiano, nada lhe podia ser mais gratificante do que, poder entrar e sair da cidade sem os constantes congestionamentos de trânsito que o impediam de se mover livremente. Assim, saboreando aquela agradável acalmia, caminhou em direção ao quiosque da D. Amélia a fim de comprar um jornal. Depois de uma maviosa troca de palavras com aquela, tomou consciência de que aquele sábado era o último dia de julho e como tal, antecipara as férias de verão. Motivo que justificava a debandada dos moradores daquela zona burguesa que, ano após ano, procuravam outras latitudes em busca de paraísos exóticos com climas mais propícios a alguns dias de lazer rodeados de mordomias.
Tiago nunca gozara verdadeiramente férias, mas também nunca se sentira obcecado por elas. Isso, era um luxo a que não se podia permitir. Quando lhe calhavam por sorteio aproveitava para se ocupar nas tarefas agrícolas em apoio ao orçamento familiar. Em função disso, nem sequer lhe passava pela ideia como seriam esses dias de devaneio, longe do seu meio natural, viajando pelo mundo, em pousadas e hotéis de cinco estrelas. De onde sobravam, quase sempre, histórias românticas e aventuras de toda a espécie mais tarde comentadas entre veraneantes com um snobismo elitista de criar inveja ao desventurado cidadão.
Nessa manhã, antes de se encaminhar para o escritório, Tiago deteve-se a passar os olhos pela primeira página dos matutinos, tentando à partida, inteirar-se dos conteúdos e escolher um. Pelo enfado que os temas políticos lhe causavam, decidiu-se por um desportivo e partiu calmamente rua fora, contornando os troncos de plátanos e tiliáceas, a caminho do local de trabalho. Enquanto caminhava, folheando o jornal para ler, apenas, os títulos, sentiu um toque no ombro e ouviu uma voz que lhe era familiar:
    Tiago, não mudas de rotina!
Aquele, depois de um pequeno sobressalto, virou-se repentinamente e deparou-se com o Diogo, o colega que no ano anterior havia trocado a empresa onde ambos laboravam, por um banco.
    Olá Diogo!... Por aqui, a está hora?
    Vim fazer uma visita aos velhos amigos! Dei boleia à minha esposa que veio participar num congresso médico e aqui estou.
    Muito bem! Então, como têm corrido as coisas no banco?
  Adaptei-me facilmente ao trabalho e à melhoria de vida, mas ainda não me esqueci dos amigos!
    Estás a ver como eu tinha razão! Trabalhas menos, ganhas melhor e tens outro estatuto.
    Sim, mas continuo a mesma pessoa!
    Não me arranjas lá uma cunha igual à tua?
    Ah! Ah! Ah!... Qual cunha qual quê! Não me digas que não te contei? Foi tudo muito simples! Quando abriu o concurso para o banco, concorri eu e a minha mulher. Ela não estava interessada no lugar, como é óbvio. Uma médica tem coisas mais importantes para fazer do que querer candidatar-se a empregada bancária. Queria apenas ajudar-me. Tem mais habilitações e sem dúvida nenhuma que é muito mais inteligente do que eu. Assim, no dia do concurso, antes de entregarmos os testes trocámos as provas. Simples, fácil e claro, não podia ter corrido melhor! Embora a minha formação moral e cívica, nada tenha a ver com estes métodos, reconheço que em muitos casos é a única solução para quem não tem à partida influências políticas.
  Não acredito!... Pensaste em tudo e ainda dizes que não és inteligente! – exclamou Tiago, deixando sair um sorriso irónico.
   Não!... Amigo Tiago, isso não é bem assim! O assunto dava para uma longa conversa, mas que vou tentar resumir, sem no entanto, abdicar das ideias que suportam a minha teoria. Como sabes, vivemos tempos de um compadrio nunca visto e para nós, só nos restam duas opções: ou carregamos o fardo que nos calhou em sorte, pacificamente e em silêncio, até ficarmos completamente trucidados por aquilo a que pomposamente chamamos democracia, ou pelo contrário, arriscamos ousadamente buscando o que ambicionamos, contornando as regras por eles instituídas visando, apenas, terceiros, mesmo correndo sérios riscos de virmos a ser descobertos. Se de facto, não optarmos pela segunda, nunca chegaremos a lado nenhum, seremos sempre relegados para o fim da lista e por muito que a gente se lamente, nunca ninguém se vai preocupar da nossa existência.
    Bom, … visto por esse prisma, não deixas de ter razão! Já agora, vamos mudar de assunto, … falar de política e dos políticos causa-me náuseas.
Subitamente, uma voz angustiada, ecoou grave por todo o quarteirão, interrompendo a conversa de ambos:
    Oh ladrão, não fujas, que te racho ao meio! Oh ladrão, não fujas!...
Os dois amigos lançaram um olhar ao longo da avenida e viram um homem a escapulir-se em direção a uma rua transversal e logo a seguir detiveram-se numa figura que lhes era familiar e que saiu de um portão em marcha acelerada, de sachola em riste, pronto a desferi-la na criatura que perseguia. Era o ti Januário, que ao fim de uma dúzia de passadas tropeçou e acabou estatelado nos paralelos da calçada, praguejando numa lamúria de impropérios.
Perante aquele quadro, Diogo seguiu no encalço do fugitivo até o perder de vista e Tiago correu em socorro do ti Januário, um velho conhecido de ambos. Volvidos poucos minutos ouviram um veículo a arrancar em alta velocidade em sentido oposto à posição que ocupavam.
    O ladrão conseguiu escapar! Há vários dias que este meliante andava por aqui a rondar, talvez à espera que eu tivesse um deslize! É claro que assim que apanhou a garagem aberta, sem ninguém por perto, avançou decidido a fazer limpeza aos meus haveres. A minha sorte foi ter voltado atrás para pegar o aspirador de relva e ter visto aquele patife em plena atividade.
    Amigo Januário, o artista não levou nada e quem foge não quer guerra! – disse Tiago, tentando acalmar o jardineiro.
    Tem toda a razão! Não vale a pena enervar-me com isto! Ainda foi bom não ter apanhado o ladrão, senão, da maneira que as coisas estão, estava agora metido num sarilho dos grandes.
Entretanto os antigos colegas despediram-se do ti Januário e seguiram para a empresa onde trabalharam juntos, mas quando chegaram perto do local onde Tiago estacionara o carro, exclamou:
    Onde diabo está o meu carro?... Comprei-o a semana passada, em segunda mão, no Stand do Rio! Não me digas que foi aquele patife que mo roubou! – disse Tiago, ainda um pouco estonteado.
    Agora que falaste no stand, veio-me à memória o local onde me pareceu ter visto aquele artista! Anda daí, vem comigo!...
Na segunda-feira seguinte, quando Tiago se deslocava para o trabalho, viu o ti Januário a caminhar na sua direção com o jornal regional na mão e visivelmente satisfeito. Logo que se encontraram e depois do cumprimento habitual, abriu o matutino numa das páginas centrais e apontou para uma fotografia, dizendo:
   Foi este meliante que eu apanhei dentro da garagem! Parece que fazia uns biscates para um stand de automóveis e agora está a contas com a justiça.
   E eu consegui recuperar o meu carro! rematou o Tiago em jeito de alívio.

 
 

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

DESPEJO IMPREVISTO



Naquele sábado de janeiro, a noite caiu fria sobre a aldeia do Vale Cimeiro. À medida que a escuridão se abatia sobre a região toda a povoação ia mergulhando no silêncio, apenas, quebrado, de quando em vez, pelo bater de uma porta ou por palavras soltas de quem entrava ou saía de casa na rota do café e da taberna onde o movimento ao fim de semana parecia não ter parança. Era assim durante todo o ano e nem o rigor do inverno lhes alterava os hábitos.  
Era na taberna da Dona Júlia, junto à lareira alimentada com torgas de moita, que os viciados do jogo da sueca passavam o serão a embaralhar, a dar e a bater as cartas na mesa. A equipa que perdia cada série de quatro vasas pagava, logo a seguir, uma rodada de tinto. Por vezes, o calor do jogo, com a ajuda dos tintos, dava origem a discussões que, com a pronta intervenção da taberneira, eram rapidamente sanadas.
Entre os jogadores contava-se Joaquim da Pulga que era cliente habitual da casa, sempre que se encontrava por perto, mas naquela noite parecia bastante deprimido. O seu aspeto carrancudo contrastava, nitidamente, com a sua habitual boa disposição. Para além do desentendimento que tivera com a esposa e do qual lhe resultara um enorme hematoma sobre a vista direita, estava numa situação financeira muito embaraçosa. Talvez por isso se mantivesse encostado ao balcão sem manifestar vontade de jogar nem, tão pouco, de dialogar com os parceiros habituais. Basílio bem se esforçou para indagar o que lhe acontecera, a par de o tentar convencer a pegar no baralho, mas de nada lhe valeu. Joaquim fechara-se de tal modo ao diálogo que nem a ideia de manusear as cartas lhe trazia a fala de volta. 
Ninguém, dos presentes, fazia a mínima ideia das preocupações que lhe ocupavam a mente e que se relacionavam com a sua pretensão em ir a casa do Virgílio, para tentar receber as rendas que este lhe devia. Todavia, como ainda era cedo para a hora que o inquilino lhe marcara, pediu mais um tinto à taberneira para regar a garganta sequiosa e matar o tempo que lhe demorava a passar. Assim, enquanto os amigos jogavam em ambiente fraterno, foi bebendo copo atrás de copo, como se buscasse no vinho a coragem de que precisava para enfrentar as habilidades do homem a quem arrendara a casa. A certa altura, depois de olhar para o relógio colocado atrás do balcão, voltou-se para os amigos dizendo em voz audível para todos:
- Faltam cinco para as dez! Está na hora de ir ao encontro do caloteiro! Desta vez espero receber tudo o que ele me deve! Caso contrário não responderei por mim e esta noite ficará para a história como a noite da “vingança do senhorio enganado”.
- Eh pá! Finalmente acordaste! Até pensei que estivesses zangado com a malta! - gritou o Basílio com ar de espanto.
- Digamos que estou, apenas, ansioso para ir receber o meu dinheiro! 
- Há é isso! Então, não tenhas pressa, homem! Bebe mais um copito e manda vir uma rodada para nós para ver se a rapaziada aquece! – disse Basílio que, entretanto, impusera uma pausa no jogo.
- Hum!... Até parece que estás feito com o Virgílio para me tentares impedir de receber aquilo que é meu!
- Oh Joaquim!... Não te quero desanimar, mas, se for verdade o que se fala por aí, duvido que tenhas sorte! O gajo tem dívidas em todo o lado!
- Nunca acreditei na língua viperina deste povo que condena inocentes e iliba criminosos com a mesma facilidade de quem bebe um copo de tinto, mas no caso deste artista é capaz de ter algum fundamento. 
- Hum! Não me digas que foi ele que te surrou? – questionou Maltês, fazendo um esgar de intriga e continuou – tens a vista toda pisada! 
- Até parece que me conheces há dois dias! Coitado, aquele escanzelado era lá homem para mim? Isto é apenas fruto de uma queda, devido a uns tintos a mais! 
Logo a seguir, Joaquim da Pulga, com ar decidido, levou a mão ao copo, escorropichou o resto do vinho e visivelmente irritado desandou debaixo do olhar expetante dos amigos que só retomaram o jogo depois daquele cruzar a soleira da porta. 
Havia já quatro meses que Virgílio não lhe pagava a renda e o dinheiro fazia-lhe muita falta para pagar à Dona Júlia a quem, para além das bebidas, também devia as mercearias. 
Constava-se que o inquilino se endividara no jogo, à mistura com noitadas na cidade, convivendo com amantes de gostos requintados. A própria esposa, impotente para o fazer enveredar por outros caminhos, depois de muitos desentendimentos que terminavam quase sempre com agressões mútuas, deixara-o entregue ao seu devaneio e fora viver para casa dos pais. 
Quando Joaquim da Pulga deixou a taberna já levava um grão na asa, mas nada que lhe esquentasse as ideias, ao ponto de perder completamente as estribeiras ou até de se deixar manipular pelas habituais palavras mansas do Virgílio. Arrependido por ter alugado a casa a um um homem sem palavra, bateu ruidosamente à porta da casa de que era senhorio e ficou à espera de uma resposta que acabaria por não chegar. Repetiu o gesto vezes sem conta, indiferente à pacata vizinhança, até se convencer que o inquilino faltara mais uma vez ao que haviam combinado. 
Tratava-se de uma vivenda antiga constituída por rés-do-chão e primeiro andar. A frente dava para um pequeno pátio que, por sua vez, se confrontava com a via pública. Uma viela estreita onde não se cruzavam dois carros, mas que era repleta de prédios em ambos os lados da rua e habitados, maioritariamente, por gente ordeira e cumpridora dos seus deveres de cidadania. 
- Volto mais logo! Não penses que te escapas! – desabafou Joaquim da Pulga, em voz alta, como se pressentisse que o Virgílio o estava a ouvir e concluiu que aquele faltara mais uma vez a sua palavra.
Com o passar do tempo, a taberna fechou e os amigos do Joaquim mantiveram-se à porta do edifício na esperança de que o Joaquim trouxesse algum dinheiro fresco e lhes pagasse um copo no café. Não esperaram muito, ao fim de poucos minutos aquele regressou à presença deles e de imediato exclamou:
- Oh Basílio!... Tinhas razão, o aldrabão enganou-me mais uma vez!  
- Eu bem te dizia que ele não era de boas contas!
- Isso é o que estamos para ver! Vai pagar tudo com língua de palmo ou eu não me chame Joaquim!
- Queres um conselho? – intrometeu-se Maltês – Encosta-o à parede que é o que ele merece, caso contrário nunca mais vês um tostão. 
- Se ele se convenceu que está livre de mim, está muito enganado, daqui a pouco vai ter uma surpresa! 
- Agora, tem calma e vamos ao café tomar um copo para aquecer a garganta que estou cheio de frio. Como, certamente, não tens dinheiro paga aqui o Adriano que ainda agora lhe vi guardar uma nota de vinte. Infelizmente, hoje já ninguém confia nas pessoas sérias, até a teimosa da velha deixou de nos dar tolerância enquanto esperávamos por ti alegando que já tínhamos bebido demais, nem sequer nos quis aviar a rodada habitual de despedida! – lamentou o Basílio.
Assim, com aquela mágoa em mente, Joaquim da Pulga e os amigos entraram no tasco, ocuparam uma mesa e ali se mantiveram a beber até o estabelecimento fechar perto das duas horas da manhã.
Logo que abandonaram o café cada um seguiu para as suas residências. No entanto, Joaquim da Pulga, indiferente à geada que cobria de branco toda a aldeia, encaminhou-se para a casa de Virgílio mais determinado do que nunca. Logo que ali chegou, chamou-o, várias vezes, em voz alta. Chamamentos que acompanhava com batidas ruidosas na porta ao ponto de os vizinhos lhe apelarem contenção e respeito pelo seu sossego. Joaquim que, em situação normal, era incapaz de faltar ao respeito a alguém, agora, a todos respondia com a indiferença provocante de quem se estava nas tintas para tudo e a determinada altura, gritou:
- Estás a ouvir aldrabão, tens um minuto para abrir a porta senão vou eu aí conversar contigo!... Olha!... Oh caloteiro!... Não te volto a avisar!... 
- Oh seu borrachola! Tenha vergonha! Ainda não se apercebeu que o homem não está em casa? – gritou, de entre os descontentes, um vizinho mais afoito que assomou à janela do prédio que se situava mesmo em frente.
- Não reclamem!  A festa ainda nem começou!... Daqui a pouco já vão ter razões para isso!... Tenham calminha porque a noite vai ser muito longa!... – berrou Joaquim da Pulga de cabeça perdida.   
Perante o tom ameaçador que exibia, alguns vizinhos acomodaram-se no seu canto na expectativa do que iria acontecer. Outros riam-se daquele pobre diabo, encharcado em álcool e magoado pela falta de palavra do inquilino. Contudo, ninguém o tentou impedir de levar a cabo o ato tresloucado que as suas ameaças indiciavam.  
Como o Virgílio não deu sinal, Joaquim rebentou com a porta da entrada e invadiu a habitação pronto a descarregar a sua fúria em quem lhe fizesse frente. Depois de revistar o andar do rés-do-chão em busca do inquilino, subiu ao primeiro andar, abriu as janelas e começou a despejar, para o pátio, todo o recheio ali existente. Os estrondos sucediam-se a um ritmo constante e aterrador a que a noite se encarregava de dar maior destaque. Inteiros ou fracionados, todos os móveis, objetos e roupas tiveram o mesmo destino impiedoso até a casa ficar completamente vazia.
Uma hora depois, já cansado e saciado de toda aquela turbulência, abeirou-se da janela ainda ofegante, meteu a cabeça de fora e exclamou a plenos pulmões:
- Podem ficar tranquilos!... A primeira fase da operação já terminou! O rescaldo já não vai ser tão barulhento!... Ouviram todos, ou querem que vos faça um desenho!... – Fez uma pequena pausa para respirar e prosseguiu:
- Pronto, uma vez que ninguém tem dúvidas só me resta pedir desculpas pelo incómodo. Caso as queiram aceitar, claro!... Se não quiserem vão-se queixar ao sindicato!...  
Assim, Joaquim da Pulga baixou os estores, desceu a escada, encostou a porta e deteve-se então no pátio. Queria deixar tudo limpo e começou a transportar o que fora o recheio da casa para junto de um contentor do lixo...

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

AUTOMOBILISTA TEIMOSO




      Aquele inverno parecia não ter fim. Ao início da tarde, o vento rodara novamente para Sudoeste soprando, ainda, com maior intensidade, fustigando a vegetação e arrastando a folhagem, assolando toda a região Interior. As nuvens baixas e carregadas moviam-se a grande velocidade ameaçando chuva eminente sobre o pavimento molhado. A visibilidade tinha reduzido bruscamente e Tiago, por precaução, ligou os faróis da viatura para mais facilmente ser visto cumprindo, ao mesmo tempo, as regras legais para a circulação automóvel. Em função do traçado e das condições climatéricas adversas optou por velocidade moderada e condução defensiva. 
Sentado a seu lado, Gabriel, que era o camarada que o acompanhava naquela missão, seguia descontraidamente recostado no banco, não disfarçando um porte sonolento que o ia mantendo indiferente ao tráfego e ao cenário invernoso que teimava em os acompanhar em mais um dia de trabalho. Apesar de Gabriel ser ligeiramente mais novo do que Tiago, a sua aparência também espelhava bem o desgaste e a saturação, do convívio constante com incontáveis situações limite, ao longo das etapas vividas.
Nesse dia, iam deixando para trás mais um período de trabalho fatigante recheado de episódios próprios da função policial que desempenhavam. Embora transportassem na bagagem uma dose reforçada de tolerância, não era a suficiente para que permitissem picardias de qualquer tipo. Aquele turno tinha sido particularmente difícil, onde não faltaram os habituais sobressaltos, originados por alguns prevaricadores que, com o seu comportamento rebelde, lhes iam dificultando a tarefa. Situações que se não fossem para levar a sério, em alguns casos, poderiam muito bem ser conotadas como capítulos de uma novela burlesca. 
Minutos mais tarde, receberam um alerta via rádio emitido por outros camaradas de trabalho em serviço perto da fronteira, informando que um condutor de uma viatura com matrícula francesa que, para além de infringir as regras de circulação, ainda desobedecera ao sinal de paragem. Uma infração que embora não ocorresse com muita frequência acontecia algumas vezes. Em função disso, posicionaram-se em local e de forma a não lhe permitirem outra proeza idêntica. 
Depois de alguns minutos de espera, o veículo acabaria por ser intercetado, acatando de imediato a ordem de paragem. Contudo, à medida que Tiago se ia aproximando para a respetiva identificação, o motorista aventou de imediato em francês:
  Senhor polícia, não me diga que já apanharam o gajo que me roubou os documentos! Pois, eu bem dizia aqui à minha esposa que Portugal era um país pequeno e os ladrões não tinham muito onde se esconder! 
    O senhor condutor tem que ser mais específico! Não sei do que está a falar! Mas, antes de mais, faculte-me os documentos! – disse Tiago em português, ciente de que se tratava de um cidadão nacional.
    Je ne comprend pas, monsieur l’agent de police! – retorquiu o condutor, dando ênfase à frase. Ao mesmo tempo, ainda com as mãos apoiadas no volante, passou um olhar severo pela senhora que o acompanhava, como se a quisesse impedir de se pronunciar. Seguidamente, trancou a porta e subiu o vidro da janela de modo a deixar apenas uma pequena frincha. 
Tiago receando estar a fazer uma avaliação incorreta relativamente à nacionalidade do homem, repetiu a questão em francês momento em que o motorista abriu ligeiramente a janela e respondeu:
    Fique sabendo que eu não sou nenhum ignorante! Falo português, francês e até italiano! Atendendo a que o meu carro tem matrícula francesa você é que tinha o dever de me abordar em francês. Em relação aos documentos, infelizmente, não lhos posso mostrar. Mal cheguei a Portugal entrei num restaurante para tomar o pequeno-almoço e roubaram-me a carteira. Tinha lá todos os documentos, dinheiro e até uma caderneta do banco. Até parecia que o larápio estava precisamente à minha espera para me roubar.
     Já apresentou queixa desse facto? – continuou Tiago.
  Sim, sim! Logo que reiniciei a viajem, apresentei queixa a uns colegas seus que encontrei pelo caminho! A propósito disso, olhe, até comentei aqui com a minha mulher, a forma correta e diferenciada com que me trataram. 
    Muito bem!... 
   Afinal qual é o motivo desta paragem? É só para chatear os emigrantes, ou quê!? Não foi para isso que eu cá vim passar as férias do Carnaval! – desabafou o homem misturando os idiomas como se tratasse de uma salada de frutas. 
    Pretendo a sua identificação para proceder à fiscalização.
    Mais esta, e eu a pensar que...
    Como certamente se recordará, aconteceu… – Tiago detalhou as infrações que o homem cometera. 
Entretanto já familiarizados com o habitual procedimento insurgente de alguns condutores, quando estes eram interpelados por motivo de infração, Gabriel apressou-se a bloquear a área, com um veículo pesado, tentando minimizar qualquer surpresa. 
    Era só o que me faltava! Não queriam mais nada! Não pago, nem quero saber disso para nada! – retorquiu o condutor, com voz irritada e gesticulando em aparente perturbação. 
    Pois! É precisamente nesse ponto que nós estamos em total desacordo! – disse pacientemente Tiago.
Num gesto repentino de intimidação, o motorista fechou completamente os vidros e ligou o motor em alta aceleração, como se aguardasse a largada numa qualquer prova de competição automóvel. Enquanto acelerava, olhava repetidamente para a frente e retaguarda, como se procurasse o espaço suficiente para encetar uma fuga, simulando cilindrar quem o tentasse impedir. Ao fim de alguns segundos, acabaria por concluir a sua impotência, mas continuou fechado dentro do habitáculo, como se isso evitasse a sua responsabilização.
    Nem hoje!... Nem hoje, me livro de inquietações! – desabafou Tiago para com os seus botões, levando a mão ao boné, como se com esse gesto afastasse para longe os momentos de stress que teimavam em não lhe dar folga. Fez uma pequena pausa e deslocou-se ao encontro do camarada, dizendo em murmúrio:
     Aciona o reboque! 
  Dez minutos mais tarde, a viatura foi içada para o pronto-socorro com a resistência do condutor que, continuando hermeticamente fechado, tentava impedir a remoção pela travagem. Mas, apesar da oposição, o veículo acabaria por seguir para o parqueamento com os ocupantes a bordo…





sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

ENCONTRO COM UM DEUS OLVIDADO




Se desejarmos assistir a um espetáculo que parece obra de um Deus que se furta aos nossos olhos, devemos percorrer o planalto que começa em plena EN 2, um pouco antes das Cabeçadas – Góis, escolhendo o momento em que o Sol está quase a nascer. Ao deixarmos esta localidade em direção a Pampilhosa da Serra, a meio de uma curva suave para a esquerda, junto à Portela do Vento, para além de assistiremos a uma transição brusca, da noite para o dia, depara-se-nos de frente, lá ao longe, para Oriente, parecendo erguer-se do Fundão, um fragmento maravilhoso do Céu, de uma beleza indescritível, retábulo que não deve ter sido criado por deuses pagãos. Jamais pintor algum terá tentado a sua reprodução, não por falta de criatividade, mas por temer praticar uma heresia e provocar o furor divino. (diz-se que nunca homem algum poderá sobrepor-se a Deus).
O Sol não nasceu ainda, mas lá no horizonte, a Leste, vêem-se as serras negro-azuladas. Por detrás da cordilheira, uma luz doce vai surgindo, matizada de um vermelho quase púrpura e de um azul-escuro, riscado em linhas paralelas irregulares, como se algum ser misterioso quisesse lembrar as nossas imperfeições.

No Inverno, o círculo luminoso e avermelhado que precede o Sol parece anunciar-nos ainda mais frio. Mas à medida que o Sol se vai erguendo a imagem das serras e da luz inunda-nos o espírito e diz-nos que, embora a nossa mente e o nosso coração não consigam abarcar os mistérios da vida, uma nova seiva vem ao nosso encontro obrigando-nos a entoar um hino de louvor a um Deus desconhecido.

Estendendo-se pelos vales, onde as serras, encabritando-se, iniciaram noutros tempos a subida em direção ao firmamento, há um nevoeiro leitoso, debaixo do qual duendes enfeitiçados estarão a espreitar o nosso deslumbramento e a nossa respiração ofegante.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

DESASSOSSEGO JOVEM


Oiço uma voz angustiada,
Um clamor profundo,
Uma prece desassossegada,
Um brado que brota do fundo,
Uma vontade incontrolada,
Um querer abraçar o mundo.
Vejo um rosto delicado e belo,
Como planta frágil em flor.
Vejo um olhar singelo.
Oiço um coração que espelha dor.
Será um apelo, um lamento?
Uma ansiedade incontida?
Uma mágoa, um tormento?
Sei lá!... Será fruto da inquietação desta vida,
Ou um querer abraçar o sonho?
É provavelmente, seiva jovem reprimida,
Por este mundo agreste e medonho,
Que para sortilégio desta vida,
Teima em matar o sonho.
Não desesperes!...
O universo está em mudança,
Não percas a esperança,
Porque ainda és uma criança.
Lança as mágoas ao vento
E confia no teu talento.
Explora as coisas belas da vida,
Que o tempo passa em corrida.

Aristides B. Victor
IN, Poética, volume I, Editorial Minerva

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

CAÇADA FURTIVA





Nos fins do século XX, os cervídeos multiplicaram-se pelas florestas da Beira Serra, em grande parte, divido ao excelente habitat que se estendia por vastas áreas de pinheiros, moitas, carquejas e medronheiros. Assim, todo aquele aumento de espécies culminou na invasão frequente das propriedades agrícolas, por parte daqueles, em busca de uma dieta diversificada. Por sua vez, alguns agricultores da região acharam-se no direito de defender as suas courelas daquela praga, alegando que os herbívoros lhes causavam elevados prejuízos nas culturas e que em contrapartida as organizações florestais não assumiam as necessárias indeminizações. No entanto, para os que se ocupavam na captura dos animais existia um sério risco de virem a ser apanhados e acusados de caçadores furtivos, atendendo a que para além de se tratar de uma caça clandestina alguns exemplares possuíam um chip de monitorização a cargo dos técnicos florestais, o que seria fácil seguir-lhe o rasto bem como aos autores de tais práticas. Contudo, depressa os caçadores desses animais se habituaram a contornar o obstáculo que esse meio eletrónico representava.     
Certo dia, em pleno inverno, quando Alberto, um antigo emigrante em França que se radicara na aldeia onde nascera, chegou à propriedade que possuía nas imediações da povoação, deu conta que os veados lhe haviam danificado grande parte da cultura de vegetais de várias espécies. 
Ao ver o produto do seu trabalho e sustento naquelas condições, ficou de tal modo perturbado que decidiu logo defender a sua horta de tais predadores. Nem a esposa, receosa que algo de grave daí pudesse resultar, o conseguiu demover.
Ora, sabendo que é ao crepúsculo que aqueles animais se movimentam com maior liberdade, tanto pelos matagais, como até pelas courelas de semeadura, improvisou um plano para mais facilmente lhes fazer frente. 
Embora tivesse receio de vir a ser apanhado em flagrante, tudo o levava a querer que tal não viesse a acontecer: por um lado, durante a noite a fiscalização não lhe parecia ter a mesma eficácia; por outro, tinha a certeza de que ninguém suspeitaria das suas intenções, mas nunca seria demais acautelar-se para não se ver envolvido num crime de caça furtiva. 
Para levar por diante os seus intentos, começou por se ataviar de modo a eliminar os possíveis odores corporais, muniu-se de uma caçadeira que comprara em França para utilizações clandestinas, atrelou o reboque ao trator agrícola, equipou-se a rigor onde não faltou a garrafita de cachaça para lhe fazer companhia no relento da noite e assim que o sol se pôs, meteu-se a caminho da fazenda de semeadura a fim de montar a emboscada aos cervídeos. 
Quando saía da aldeia, foi interpelado pelo compadre Clemente que ao estranhar aquele movimento tardio, resolveu questionar:
   Compadre!... Para onde vai a esta hora?                                       
 Vou buscar um pouco de lenha para a lareira! – respondeu prontamente Alberto.
    Precisa da minha ajuda?
    Não, não, obrigado! Eu cá me arranjo! – respondeu um pouco embaraçado.
    Não tarda é noite e um auxílio nunca se deve rejeitar!
    Oh compadre, fica para outra vez!
    Muito bem, você é que sabe! 
Depois daquele diálogo com que não contara, Alberto ficou um pouco receoso não fosse o Clemente dar o alarme pela sua demora. Contudo, retomou a marcha indiferente ao que daí pudesse resultar até porque, não tinha que lhe dar qualquer justificação dos seus atos.   
Assim que entrou na fazenda e desligou o trator, pegou logo na garrafa de aguardente e bebeu duas goladas. Tinha necessidade de massajar a garganta na esperança de que a cachaça lhe controlasse a ansiedade. Depois escolheu uma posição sobranceira sobre toda a propriedade de forma a observar sem ser notado. Por fim, carregou a espingarda, sentou-se e apoiou-a sobre as pernas, pronto para a ação. Ao fim de uma hora de espera, diluiu-se na escuridão indiferente ao frio que se fazia sentir e que anunciava um manto de geada. Apesar daquela adversidade, Alberto foi resistindo sem se movimentar para não denunciar o seu disfarce. 
Enquanto esperava, olhou o Céu repleto de estrelas observando as constelações que cintilavam na imensidão do universo e perdeu-se num desfilar de recordações esquecendo completamente o motivo que o levara ali. Começou pelo seu tempo de emigrante clandestino nos arredores de Paris, onde chegara sem um tostão no bolso depois de entregar aos passadores oito contos que pedira emprestados. Para conseguir sobreviver naquela terra, onde nem sequer a língua compreendia, sujeitou-se a impensáveis provações. Desenvolveu trabalho escravo e viveu em condições desumanas. Só, volvidos três anos, passou a habitar uma casa digna desse nome e contou com a companhia da esposa que entretanto permanecera em Portugal à espera de melhores dias. 
Repentinamente, um ruído inesperado, vindo da floresta, gelou-lhe ainda mais as veias e acordou-o para o que o rodeava naquele momento, despertando a sua atenção para algo que se movimentava em redor. Com os olhos adaptados à escuridão, lobrigou por entre a folhagem que lhe serviam de máscara a silhueta de um animal corpulento que se aproximava e logo a seguir outro, não menos encorpado. Ambos avançavam cautelosos na busca de refeição. Nesse momento, o coração de Alberto bateu mais forte ao ponto de ouvir perfeitamente os batimentos cardíacos. Era o seu primeiro confronto com aquela espécie cinegética maior e desconhecia o que poderia acontecer, mas foi resistindo na esperança de que os veados se deixassem seduzir pelo apetite de forma a ficarem perfeitamente acessíveis ao alcance dos tiros. Não esperou muito. Ao fim de poucos minutos, que lhe pareceram uma eternidade, os animais colocaram-se de tal modo a jeito que não seria difícil atingi-los. Então, Alberto fez uma tentativa para levar a espingarda à cara, mas os braços trémulos pareciam não lhe querer obedecer e quedou-se indeciso. Segundos depois, respirou fundo, como quem buscava coragem, apontou e efetuou um disparo e depois outro, sem qualquer certeza na precisão, ambos em direção ao animal que lhe estava mais próximo. Após os disparos, aquele, ensaiou de imediato uma fuga desenfreada, mas acabaria por tombar ao fim de trinta metros. 
Os silvos e os ecos sucessivos ao longo das montanhas foram de tal modo aterradores que Alberto ficou com a impressão de que iriam, certamente, desencadear uma catástrofe. Para tentar evitar isso, só queria fugir dali o mais rápido possível. Com as pernas entorpecidas e tentando não se deixar tomar pelo pânico, esforçou-se para a carregar o animal que ocultou com alguns feixes de vides de videira.
Já a caminho de regresso equacionou a forma mais expedita para dar continuidade ao processo em que se envolvera, antes que o Sol anunciasse um novo dia que lhe poderia trazer sérias consequências. 
Quando abria o portão da entrada da sua casa, foi surpreendido pelo Clemente que alertado pelo ruído do trator a horas tardias veio a correr saber do sucedido para tamanha demora e logo que viu o Alberto, aventou:
    Então compadre! Só agora? Olhe que eu já estava preocupado. Não me diga que aconteceu algum azar?
    Está tudo bem! Mas preciso da sua ajuda para descarregar a lenha! Entre e feche a portão! 
Depois do bicho esfolado, duas questões se colocaram aos dois homens: o chip tanto poderia estar na carne, como na pele. Para contornar esse obstáculo não havia tempo a perder. Em primeiro lugar, Alberto ordenou à esposa que preparasse uma caldeira para transformar de imediato a carne do cervídeo em chanfana, com a certeza de que caso o equipamento eletrónico estivesse alojado na carne não resistiria à temperatura elevada da cozedura. Depois pensou numa solução para se livrar da pele. Não poderia, de forma alguma, deixar pontas soltas, senão corria o risco de vir a ser descoberto. Para evitar que tal acontecesse, meteu a pele dentro de um saco, montou na moto e abalou a caminho do açude da barragem. Logo que ali chegou, ainda o dia não havia clareado, adicionou várias pedras ao conteúdo do saco e atirou-o para a água, no local onde a barragem tinha maior profundidade, convencido de que o chip não seria facilmente localizado.





domingo, 12 de janeiro de 2014

NEGÓCIO NAS TREVAS





Em meados do século XX, quando a paróquia pretendia fazer a distribuição da ajuda alimentar pelos fregueses de uma determinada aldeia enviava um estafeta para anunciar a convocatória. 
Assim, em função disso, Leonel da Mata, que não se podia apoiar na esposa que se encontrava internada no hospital a contas com uma complicada patologia, incumbiu a vizinha, que à data lhe tomava conta dos filhos, de receber a esmola que, mensalmente, lhe era destinada. Para isso, entregou-lhe a identificação que normalmente lhe era solicitada e uma moeda de cinco escudos, quantia que lhe era exigida, contra a entrega dos cinco corredores de farinha, (medida metálica que levava cerca de um litro e na época era utilizada pelos merceeiros), um corredor de leite em pó, uma concha de banha e um pedacito de queijo flamengo. 
Sem pagar ninguém levantava a esmola, como tinha acontecido, no mês anterior à senhora Juliana que embora tivesse declarado que pagaria em dobro no mês seguinte, depois de receber o dinheiro dos pinheiros que acabara de vender, mas nem assim lhe abriram uma exceção. O argumento do pagamento baseava-se nas elevadas despesas com o transporte das dádivas, entre a estação de caminho-de-ferro e o local de distribuição, que a paróquia não podia suportar.
Leonel da Mata vivia numa aldeia isolada onde não faltavam carências de toda a espécie. Como diariamente acontecia, levantou-se cedo para calcorrear perto de seis quilómetros que era a distância que separava o pardieiro que habitava da localidade onde angariara alguns dias de labuta na construção civil. Esperava-o um salário miserável, mas do qual não podia abdicar sob pena de perder o pão escasso para os três filhos, todos em idade escolar. Receando chegar atrasado ao trabalho, naquela manhã, enveredou por um trilho pedregoso, enfrentando o terreno difícil e o risco de uma queda, sem pensar no perigo que corria. Mas não tinha grande alternativa, naquele tempo, as poucas vias de comunicação perdiam-se a serpentear os montes forçando, assim, os transeuntes a utilizar trilhos alternativos.  
Como diariamente acontecia, assim que Leonel da Mata chegou ao local de trabalho entregou-se à luta, como se não houvesse dia seguinte, para que o patrão não tivesse motivo para o despedir. 
No final da jornada, que se prolongara até ao pôr-do-sol, exausto e mal alimentado, iniciou a marcha de regresso ao encontro dos seus filhos que não lhe saíam do pensamento. Assim que abandonou o local onde laborava, uma povoação de ruas estreitas onde as casas se amontoavam e que se afundava entre duas colinas íngremes ladeadas por pinheiros de grande porte, notou que o manto de penumbra, anunciando a chegada da noite, se abatera muito rapidamente sobre todo aquele imenso vale ondulado. Receando que a escuridão o apanhasse em pleno atalho, assente em penhascos, optou por seguir pela via principal não só esperançado numa boleia automóvel que eventualmente por ali passasse, mas sobretudo como forma de fugir aos imprevistos que poderiam resultar do itinerário secundário. 
No primeiro quilómetro do percurso, pela estrada alcatroada, não vislumbrou vivalma, mas Leonel caminhava animado por um pensamento positivo na esperança de que a camioneta do Ti Caeiro, entretanto, aparecesse e lhe desse boleia como por vezes acontecia. Quanto ao trabalho estaria garantido por mais alguns dias e do hospital recebera notícias das melhoras da esposa o que, por si só, lhe redobrava o ânimo para enfrentar as adversidades que teimavam em não lhe dar tréguas.
Na continuação da sua marcha, quando Leonel se aproximava de um local mais acidentado e onde a via ia serpenteando o terreno por entre vegetação densa, a que o avanço da noite se encarregava de tornar, ainda, mais sombria, foi alertado por ruídos inesperados que se desenrolavam algures à sua frente. Embora não fosse um homem medroso, progrediu na via com a cautela que se impunha face à situação de viajante isolado em terreno e condições hostis. A sua imaginação apoiada em relatos de perseguições e assaltos ocorridos noutras ocasiões convidavam a uma elementar precaução. Assim, logo que se apercebeu de que estava muito perto dos sons desconhecidos, abrigou-se atrás de um emaranhado de acácias na expectativa de decifrar o que se passava. Ao fim de poucos segundos foi surpreendido por uma voz masculina que rompeu a escuridão e gelou a alma de Leonel:
–   Vamos embora que esta já está arrumada!
Logo a seguir um motor entrou em funcionamento e uma viatura de carga iniciou a deslocação em sentido inverso à marcha de Leonel. Este, para se furtar ao feixe de luz que os faróis debitavam, continuou imóvel atrás dos arbustos até o veículo se afastar. 
Logo a seguir, ainda intranquilo, retomou o seu caminho atento a tudo o que passava à sua volta, mas assim que percorreu cinquenta passos, chegou ao local onde um ramal secundário se entroncava na via e que dava acesso a uma propriedade constituída por uma espécie de armazém agrícola sem vislumbrar algo que justificasse as manobras e o diálogo que escutara. Então, adaptado à escuridão e movido pela curiosidade, deixou a estrada alcatroada penetrando uma dúzia de metros nesse trilho em terra batida, situado entre paredes de vegetação alta, onde se deparou com um amontoado de sacaria. Surpreendido pelo achado, tateou de imediato o conteúdo e concluiu que se tratava de farinha. Notou, ainda, que todos os sacos eram em pano branco e ostentavam inscrições onde sobressaíam as letras, USA. Precisamente a mesma inscrição que vira, no mês anterior, nos sacos que estavam armazenados nas instalações da paróquia, aquando da sua comparência para receber a esmola que lhe fora destinada.
 –  Que tramoia será esta? Será que alguém se anda a governar à custa dos que mais precisam? – interrogou-se Leonel da Mata que nesse momento foi assaltado por mil pensamentos que, para além da surpresa, lhe pareciam não fazer sentido muito à custa do sítio onde a mercadoria se encontrava. Enquanto pesquisava, apercebeu-se da aproximação de um veículo que se viria a imobilizar junto aos sacos de farinha e de imediato descobriu o motivo de todo aquele movimento de descarga realizado em local ermo e a horas desapropriadas.
Com a aproximação do feixe luminoso Leonel ficou de coração acelerado e abrigou-se o melhor que lhe foi possível, mas sempre receando que os seus batimentos cardíacos denunciassem a sua posição. Logo que se apagaram os faróis, saiu um homem aparentemente descontraído revelando até, naquela forma de aproximação, uma prática rotineira. Foi logo reconhecido por Leonel. Era o padeiro de uma localidade vizinha que, em poucos minutos, acomodou meia dúzia de sacos na viatura encaminhando-se, de seguida, para uma arrecadação que se situava ao fundo da vereda a escassos cem metros.
Nesse momento, Leonel que, apesar do mundo agreste em que vivia, era um homem dotado de elevado espírito de integridade, ao verificar que grande parte da dádiva estrangeira destinada a ajudar os pobres estava a ser desviada para outros fins, não resistiu. Tomado de indignação e aproveitando a ausência do padeiro, pegou num saco e colocou-o às costas. Como uma besta de carga seguiu a corta mato enfrentando com torpor um labirinto vegetal, quase impenetrável, tentando afastar-se o mais rápido possível. Logo que se distanciou o suficiente, passou-lhe fugazmente pela ideia repetir o golpe e para vincar o seu descontentamento sabotar o que restava da sacaria. Ideia logo reprimida por a achar perversa: por um lado, estava muito longe de casa e não conseguia carregar de uma só vez, por terrenos tão acidentados, mais de cinquenta quilos; Por outro, conhecia de cor o vocabulário das dificuldades e estragar, ainda que a troco de um motivo justo, nunca fizera parte do seu. 
Vencido pela resignação, preocupou-se apenas em regressar à sua casa, por atalhos furtivos, tentando evitar outros transeuntes.
Embora Leonel da Mata tivesse muitas dúvidas quanto à justiça dos homens entendia que aos olhos da justiça divina não havia praticado qualquer ato censurável e a existir só se fosse por não ter sido extensível à totalidade dos sacos.




 




quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

BINÓMIO PERVERSO




Numa tarde amena de janeiro, Ernesto entrou no areal da praia saboreando os tépidos raios solares coados por nuvens esfarrapadas e dispersas pelo céu. Como o tempo convidava ao passeio à beira mar, seguiu calmamente em direção ao limite da rebentação das ondas degustando o aroma a iodo que uma brisa suave de oeste ia arremessando para terra.
Assim, reparou que, perto da rebentação, dois jovens surfistas faziam os preparativos para entrar na água. Depois de se equiparem com o fato apropriado àquele desporto, deixaram as roupas e haveres sobre a areia seca, pegaram na prancha e entraram mar dentro indiferentes à temperatura da água. 
Como Ernesto gostava daquele desporto radical, deteve-se a observar o equilíbrio dos surfistas e o seu destemido confronto com as vagas mais fortes. Ao mesmo tempo, quando passava um olhar observador pela praia, reparou num homem, de meia-idade, que caminhava na sua direção com um perdigueiro pela trela. Era um cachorro de raça Pointer e de aspeto cuidado.
O animal movimentava-se preso a uma correia extensível e à medida que ia avançando pela areia, ao encontro da água, passava a pente fino toda a área que a trela lhe ia permitindo como se seguisse o rasto de uma qualquer presa. Busca que o dono ia acompanhando com notada dificuldade, perante a ansiedade natural do perdigueiro que corria em todas as direções.     
Como se quisesse marcar o território, quando o cão chegou junto aos haveres dos surfistas alçou a perna e esvaziou a bexiga sobre os fatos que ali se encontravam, como se aquele fosse o único local do mundo para se aliviar. Logo a seguir, movimentou-se em círculo, procurando a melhor posição para se acocorar, acabando por defecar em cima da roupa. Tudo isto, com a cumplicidade perversa do dono que até parecia divertido com aquele ato ingénuo de natureza animal.
Julgando que os surfistas não se haviam apercebido do sucedido, Ernesto não resistiu apressando-se a interpelar o desconhecido que entretanto já se afastava, sorrateiramente, com a mesma expressão de quem acabara de praticar um ato altruísta.
    Está satisfeito? – questionou Ernesto em voz bem audível.
    Está a ouvir? – insistiu.
  A conversa é comigo? – questionou o desconhecido, sempre a andar, perante a insistência de Ernesto.
    Por acaso está a ver mais alguém aqui? 
    Vá chatear outro!
    Volte para trás e vá apanhar os excrementos que o cão depositou na roupa!
    Apanhe-os você que eu não sou funcionário municipal!
    Eu também não, mas o cão é seu!
Nesse momento ambos foram surpreendidos pela corrida, desenfreada, de um dos surfistas que de imediato agarrou o dono do cão arrastando-o até ao local onde o animal se aliviara…
    Hoje vais jantar mais cedo! – gritou o surfista.