domingo, 14 de setembro de 2014

OUSADIA DE FINALISTA



Na véspera do dia da queima das fitas, como habitualmente, as ruas de Coimbra fervilhavam de gente. Muitos eram forasteiros que embora oriundos de outras regiões, galvanizados pelo ambiente estudantil, deixavam-se facilmente enamorar pelas tradições académicas. Com o aproximar da hora, alguns estudantes ocupavam-se dos últimos preparativos para o desfile das academias; outros, deambulavam pela cidade em ritual boémio e excessos de toda a ordem, como que anunciando o culminar da sua etapa estudantil. Entre esses, encontravam-se dois finalistas de direito, o Barnabé e o Esteves, acompanhados das respetivas namoradas, que com a hora do jantar a avizinhar-se decidiram petiscar.
Corria a década de setenta do século passado, num tempo em que o dinheiro não abundava nos bolsos de muitos cidadãos e para os estudantes a situação não fugia à regra, atendendo a que dependiam da mesada dos pais que por sinal bastante forretas, fruto das dificuldades que aquele tempo teimava em oferecer-lhes. Ora, os dois estudantes mesmo sabendo que não tinham dinheiro sentaram-se à mesa numa esplanada de uma tasca, preparados para comer e beber do melhor que a casa tinha para oferecer. Então, aproveitando a confusão gerada pela elevada afluência, resolveram impressionar as raparigas como se fossem homens endinheirados. Consultaram a ementa e depois de uma escolha bastante ponderada decidiram-se por uma caçoila de chanfana para os quatro. Esperaram pacientemente pelo empregado que, nesse dia, não tinha parança e encomendaram o pitéu. Ao mesmo tempo, solicitaram também as entradas e uma garrafa de vinho tinto alentejano, com o comentário de que aquele prato requeria uma pinga de qualidade.  
O dia fora movimentado e a barriga estava a reivindicar aconchego. Mas na presença das raparigas argumentavam que, na hora da despedida, queriam aferir a qualidade da confeção daquela iguaria regional, sobejamente elogiada por muitos apreciadores.
Enquanto aguardavam que o jantar lhes fosse servido, iam petiscando em amena cavaqueira, numa postura alegre e descontraída, longe de qualquer preocupação com o pagamento. Precisavam de impressionar os tasqueiros pela positiva que, normalmente eram muito experientes e detetavam os caloteiros até pelo olhar.
Logo que o empregado os serviu entregaram-se ao prazer de cada garfada com a voracidade de quem há muito não comia uma tal iguaria. Contudo, à medida que a caçoila ia ficando vazia, nos bastidores do espírito dos dois doutores apenas existia uma preocupação, como iam sair da encruzilhada em que se haviam metido. Mas depois do primeiro combate terminar, dedicaram-se à sobremesa com o mesmo apetite do prato principal.
No final, depois de bem saciados, estudaram, rapidamente, a melhor forma de se livrar da despesa que haviam contraído. Assim, logo que o empregado se ocupou de outros clientes, o Esteves acompanhado das raparigas deixou o aconchego da mesa que ocupavam em busca de um refúgio previamente acordado entre os dois homens. Mal o terreno ficou livre, Barnabé, o mais ousado, levantou o braço em direção ao empregado e solicitou a conta. Cheio de boa-fé, o pobre homem baixou a guarda e encaminhou-se para a caixa registadora instalada no interior do estabelecimento e quando regressou, num abrir e fechar de olhos, encontrou a mesa vazia. Correu inquieto tentando localizar os jovens doutores, mas não lhe voltaria a por a vista em cima que, entretanto, se diluíram na multidão.
Dias mais tarde, quando Barnabé se deslocava na alta coimbrã, deu de caras com o tasqueiro da caçoila de chanfana que de imediato lhe barrou a passagem, dizendo:
─       Com que então enchemos a barriguinha à custa aqui do Gilberto, não é!?
─       Ah… Ah… Ah…
─       Não aceito desculpas! Chegou a hora da cobrança, meu caro doutor! Ou pagas, ou faço sinal ao polícia! – concluiu Gilberto.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

A ÚLTIMA PESCARIA


Quando nos deslocávamos de automóvel, com destino ao porto de Peniche, fomos informados de que o mar estava bastante agitado e de que não haveria, certamente, condições para a nossa habitual pescaria. Pelo teor da informação, concluímos que o nosso passeio quinzenal, rumo às ilhas Berlengas e Farilhões, estava em vias de não se concretizar. Mas, apesar disso, continuámos a viagem na esperança de que a ondulação, entretanto, amainasse e de que o barco pudesse deixar a barra. Que diabo, depois de uma noite perdida e uma viagem tão longa, com o pensamento nos cardumes que habitavam aquelas paragens, também merecíamos melhor sorte! Contudo, já não era a primeira vez que ficávamos em terra. Noutras ocasiões, fomos também surpreendidos por contrariedades semelhantes.
Naquela madrugada de setembro, chegámos ao cais por volta das cinco horas. Fazia algum vento e o céu estava estrelado. A maré estava na vazante e, aparentemente, a agitação marítima, dentro do porto, parecia normal. Por aquilo que nos era dado analisar nada parecia indiciar algo de anormal, mas os responsáveis pela embarcação eram experientes marinheiros e tinham outra opinião.
Depois de quase uma hora de espera e argumentação insistente com o mestre da embarcação, acabámos por colocar todo o material logístico a bordo. E, enquanto se procedia ao sorteio dos pesqueiros, reforçámos a dose de comprimidos anti enjoo para a eventualidade das coisas se complicarem. O sorteio tinha como objetivo evitar disputas pelos considerados melhores lugares, atendendo a que os doze pesqueiros disponíveis na embarcação tinham características de comodidade diferentes. No entanto, tudo dependia das correntes marítimas. Assim, logo que cada um ocupou a posição que lhe calhou em sorte, o navio desamarrou dando início à viagem. 
 Quando deixámos a barra, o dia ainda não estava totalmente claro, mas a ondulação começava a mostrar as suas garras. Contudo, logo que avançámos mar dentro, o vento aumentou e a ondulação tornou-se mais violenta. Só nesse momento, reconhecemos as agruras que nos estavam reservadas nesse dia. À medida que o barco sulcava as ondas, o convés ia sendo invadido por constantes enxurradas, que nos forçaram a procurar refúgio no espaço exíguo da cabina de pilotagem. Entretanto, com a turbulência a aumentar, começaram a surgir indisposições e alguns companheiros desceram a escadaria para se acomodarem no porão nos aposentos reservados aos tripulantes. Um sinal de desistência perante a adversidade, como era frequente ouvir dos mais resistentes, atendendo a que, como era costume, quem se acomodava no porão só de lá saía quando o navio atracava. Pelo meu lado, lá fui resistindo como pude, junto ao piloto partilhando o compartimento com os outros pescadores, onde nem sequer tínhamos espaço para mudar os pés.
Ao fim de quase uma hora de viagem, ainda sem terra à vista, a sonda indicou a presença de um cardume e de imediato soou a ordem para lançar a âncora para se dar início à pescaria. Em dias de ondulação normal, numa situação idêntica, não havia mãos a medir para iscar e tirar peixe. Agora, assim que a embarcação fundeou, tudo se alterou para pior. Os pescadores, eu incluído, não resistiram ao baloiçar constante, em todas as direções. Os movimentos eram de tal forma violentos e descoordenados que não havia modo de apaziguar a revolta rapidamente instalada no estômago de cada um. Lembrava uma interminável incontinência de bêbedos. A todo aquele transtorno orgânico, nem sequer escaparam os dois elementos da tripulação. Perante um cenário tão sombrio, questionei os companheiros se não teria havido engano nos comprimidos anti enjoo, mas nenhum deles me soube responder. Então, lembrei-me de um velho amigo, que me acompanhou noutras jornadas de pesca no porto da Figueira da Foz, que antes de deixar a barra, tomava sempre um cálice de vinho generoso, vulgarmente chamado de vinho do Porto, alegando ser o melhor antídoto contra a indisposição. Coincidência ou talvez não, ele nunca enjoava e regressava ao porto, sempre de semblante risonho, independentemente da agitação que se fizesse sentir.
Agora, o mais novato naquelas andanças implorou desesperado que o levassem para terra firme. Mas tal não viria a acontecer por falta de unanimidade na decisão. Uns alegavam que não era fácil encontrar cardumes como aquele e que logo que o navio estabilizasse a situação melhorava. Outros aconselhavam-no a que olhasse apenas em direção ao infinito e que assim iria facilmente ultrapassar o enjoo.
De facto, era indescritível a sensação de fragilidade e impotência que sentíamos perante a natureza adversa com que nos confrontávamos. Estávamos perdidos algures no meio do oceano dentro de uma casca de noz que adornava para todos os lados e rodeados de ondas impiedosas que, a cada momento, ameaçavam engolir a embarcação. Durante cerca de uma hora em que permanecemos naquele calvário dançante não consegui sequer preparar o material para dar início à pesca. Fiquei de tal forma perturbado que a minha luta se limitava a tentar controlar a indisposição que teimava em não me abandonar. Depois de cada vómito, ia ingerindo mais uma golada da minha reserva de água mineral tentando evitar que as entranhas me saíssem pela boca. Quando esgotei as duas garrafas de litro e meio, fui forçado a recorrer ao vinho que levava para acompanhar o almoço. O mais novato mergulhou também no porão de onde só viria a sair à noite aquando do nosso regresso ao porto de Peniche. Apesar de todos os meus contratempos, ainda presenciei o comportamento de alguns resistentes que, após cada lançamento faziam uma pausa para vomitar e, logo a seguir içavam para bordo o peixe que entretanto picara. Cenas quase inacreditáveis, que se foram repetindo ao longo daquela manhã atribulada.
Logo que o piloto concluiu que a situação estava a piorar, mandou içar a âncora e rumámos às Berlengas em busca da tão desejada terra firme. Assim que o navio atracou cada um procurou acomodar-se de modo a tentar recuperar-se do desgaste sofrido. Quem parecia não estar pelos ajustes eram as gaivotas que, em voos rasantes e ameaçadores, nos queriam impedir de descansar sobre as rochas nuas.
Depois de duas horas de descanso e de um pequeno lanche, para tentar estabilizar o organismo, a ondulação acalmou ligeiramente e acabámos por voltar ao baloiço no mar. A viagem foi curta. O navio acabaria por fundear perto do Forte de S. João Batista onde, abrigados do vento, pescámos exemplares de várias espécies e ali nos mantivemos até perto do fim do dia.
Por volta das dezoito horas, regressamos ao porto sem que nada de mais grave nos tivesse acontecido. O mais novato, que entretanto deixou as catacumbas do navio, não parecia o mesmo homem. Vinha completamente desfigurado. Lembrava um infeliz que acabara de deixar as masmorras da tortura. Quando chegou junto dos companheiros, apenas pronunciou a sua intenção de não repetir a experiência. Também para mim foi um dia complicado. Depois de pisar terra firme, o meu corpo parecia baloiçar, como se continuasse em alto mar.