quinta-feira, 9 de agosto de 2018

MOINHOS DE ÁGUA

         Poço de Pé Carvalho, com os antigos moinhos encarrapitados nos rochedos contíguos.

MOINHOS DE ÁGUA - Obreiros de outros tempos

Em muitas localidades serranas, os moinhos de água serviram muitas gerações de moleiros e foram palco de inúmeras histórias de vida que, mais tarde, preenchiam os serões da aldeia e prendiam a atenção dos mais novos. Algumas reais que ilustravam as agruras dos moleiros, ocasionais, carregando os cereais por incontáveis precipícios que não passavam de carreiros rudes, por veredas e piçarros quase inacessíveis às cabras e muito menos a gente feita burro de carga. Carreiros que começavam logo à saída dos povoados e se prolongavam até aos moinhos que, como era o caso dos do Pé Carvalho, Pampilhosa da serra, distavam cerca de quatro quilómetros. Outras histórias não passavam de fruto da imaginação dos moleiros relatando medos e encantamentos ou situações insólitas com abordagem do sobrenatural. Situações passadas quase sempre à noite, onde supostas bruxas aproveitando a escuridão e os locais ermos, sem horizontes, geralmente afundados entre montanhas, se divertiam a encravar e desencravar os moinhos com a finalidade de exasperar os pobres dos moleiros. Esses, impotentes perante a proximidade das imaginárias criaturas do além refugiavam-se em exorcismos que julgavam apropriados à situação e que, algumas vezes, duravam até ao nascer do dia momento em que todos esses medos se dissipavam.


O que sobra dos moinhos.

A propósito dessas situações insólitas, o Ti António contava o que lhe acontecera certa noite em que pernoitara no moinho de Pé Carvalho para moer dois alqueires de milho.
Nessa ocasião, segundo contava, logo que chegou ao moinho apressou-se a coloca-lo a trabalhar para que a chegada do crepúsculo não lhe dificultasse o acerto da moagem. Assim, depois de concluir que a farinha estava a seu gosto, em termos de espessura, saiu a rua para apanhar um pouco de lenha para a fogueira e mato para improvisar uma espécie de colchão. De regresso ao moinho, logo que a escuridão caiu sobre aquele vale sombrio, preparou a tarimba no espaço disponível ao lado da tremonha. Depois, com a ajuda de uma moita, ateou os troncos de madeira como forma de afugentar ratos e répteis que, por vezes, se movimentavam pelas paredes dos moinhos. Por fim, trancou a porta pronto para se acomodar. Não era um homem medroso, mas não podia esquecer que estava sozinho naquele ermo e nunca seria demais prevenir-se dado que, na época, pela região, o pão era escasso e os furtos de cereais eram frequentes. Por fim, como que embalado pelo crepitar da fogueira, acendeu um cigarro e bebeu um trago de alcoviteira de medronho para lhe ajudar a passar o tempo, mas logo que se deixou cair sobre o colchão improvisado o moinho encravou. A surpresa gelou a alma do Ti António. Já não tinha farinha para cozer a broa e regressar a casa com o milho era uma possibilidade que o atormentava. Então, havia que meter mãos à obra até esgotar as suas capacidades em termos de reparação. Para o tentar desencravar, levantou e baixou, várias vezes, a mó com a ajuda do pau das cunhas e nem sinal de movimento. Logo a seguir, saiu à rua, munido de uma tocha, para observar a cale e verificou que estava cheia de água. Em face disso, pouco havia a fazer, mas, pelo sim pelo não, desceu ao leito da ribeira tentando verificar o que havia acontecido. Logo que se enquadrou com a abertura destinada ao rodizio o moinho arrancou a toda a velocidade ao ponto do Ti António ter sido atingido pelo jato de água libertado pelo movimento da turbina. Quando se preparava para entrar no moinho aquele voltou a encravar. Tudo aquilo acompanhado de gargalhadas estridentes que, ecoaram pela ribeira e, lhe gelaram o espirito. O Ti António para tentar fugir ao abismo de emoções em que ficara mergulhado, gritou e praguejou em todas as direções até ficar totalmente exausto. Por fim, vencido e impotente perante a adversidade, recolheu ao moinho, trancou a porta, espevitou a fogueira, bebeu mais um trago de aguardente e atirou-se sobre as carquejas indiferente à dureza do colchão. Logo a seguir, sem que nada o fizesse prever, o moinho voltou a funcionar, agora, sem mais paragens, até terminar a moagem.

Os moinhos eram edificados em pedra nua de xisto ao longo das margens serpenteadas das ribeiras bordadas, aqui e acolá, por caprichados lameiros de semeadura, ideais para o cultivo de milheirais. Em meados do século XX, na aldeia de Carvalho, talvez uma das maiores produtoras de milho do concelho da Pampilhosa da Serra, existiam doze moinhos de água de utilização comunitária e dois ou três particulares. A utilização comunitária era regulada individualmente através de uma adua, materializada num determinado número de dias ou horas mensais. Situação que não deixava de gerar conflitos entre os usuários, aquando da utilização abusiva ou menos cuidada na conservação. Bastava que qualquer dos deles ultrapassasse os tempos de utilização para logo prejudicar terceiros. Qualquer descuido que deixasse o moinho a trabalhar sem cereal, era suficiente para que as mós de moer o pão ficassem danificadas, dando assim origem a paragens com que não contavam, ao que acrescia a despesa da picagem das mós.
Enquanto a água corria com abundancia pelas ribeiras, normalmente, durante o inverno até meados da primavera, os moinhos trabalhavam sem descanso, dia e noite. Fora dessa época ou durante longos períodos de estio tudo se tornava mais problemático atendendo a que, para além da redução natural dos caudais, o precioso líquido era utilizado na rega dos milheirais e noutras novidades hortícolas. Em função disso a corrente de água, que restava, mal dava para oxigenar trutas, bordalos e enguias que, só muito a custo, se iam esgueirando por entre as pedras e muito menos para fazer mover os moinhos que só trabalhavam com a cale cheia. Assim, só à noite, com a pausa nas regas era possível moer algum cereal. Situação que obrigava, quem necessitasse de farinha, a passar a noite nos moinhos para controlar a moagem face à constante alteração dos caudais. Como era o caso dos moinhos do Pé Carvalho que, atendendo a todas essas contingências a que se juntava a dificuldade de acesso, obrigava a que os moleiros ali passassem a noite em condições muito precárias. Mas a necessidade do pão falava mais alto.
Durante séculos, essas moendas foram o melhor processo de transformar os cereais em farinha. Concretamente, de milho, trigo e centeio, tão necessária à cozedura da broa, indispensável na alimentação das gentes serranas onde, em alguns lares, por falta de outros meios, a comiam quase sem condimentos.
Quando a água não permitia moer os cereais numa determinada localidade, as populações procuravam um moinho, onde quer que funcionasse, independentemente da distância e sujeitando-se à maquia que lhes fosse exigida. Como era o caso das gentes de Carvalho que, confrontados com a falta de farinha, chegavam a ir a Alvares para moer um saco de milho. Percorriam mais de dez quilómetros, carregados como burros, por não haver noutro lugar mais próximo a possibilidade de o fazer.
Hoje, como é sobejamente sabido, os tempos são outros e os moinhos de água perderam a importância que tinham naquela época e como não podia deixar de ser, seguiram a mesma trajetória decadente das terras de semeadura que foram deixadas em pousio. O que não deixa de ser compreensível pois, atendendo a vários fatores onde se inclui a desertificação e a idade avançada dos poucos residentes que ainda vão restando, tornou-se impossível a preservação de todo esse património histórico, bem como o proceder à limpeza das ribeiras, levadas e açudes, como era feita noutros tempos. Assim, depois de muitos anos deixados ao abandono, as estruturas ruíram e as peças com algum valor, como as mós de moer o pão, rumaram a outras paragens onde passaram a ser usadas como meros objetos decorativos. Por via disso, de muitos desses moinhos pouco mais resta do que os escombros e estes, ainda assim, tem sido devorados pela vegetação selvagem que, junto às linhas de água, atingiu proporções quase impenetráveis. Só agora, depois dos incêndios, em alguns locais, é possível ter acesso ao que resta deles. Uma situação que para além de trágica acabaria por, de certo modo, ser benéfica por deixar à vista esses pedaços de história.
Agora, resta aguardar que a natureza viva se refaça e os homens se encarreguem da limpeza das ribeiras, açudes e levadas que as espécies piscícolas muito iriam beneficiar.

Abandono e decadência