sexta-feira, 11 de abril de 2014

DEPOIS DA SERVIDÃO




O Sargento Gervásio era um militar que, depois de mais de três décadas em que participara em muitas missões de alto risco, se encontrava na situação de reserva. Para além de outras, destacam-se duas mobilizações para a guerra colonial, uma para Angola outra para Moçambique. Nesses dois cenários integrara as mais variadas missões, mas sempre em locais onde a atividade da guerrilha era mais aguerrida 
Agora, estava refugiado na serra num pequeno lugarejo situado próximo do rio Zêzere onde buscava o merecido sossego. Local onde esperava encontrar o aconchego que, por imperativo de missão, lhe fora negado ao longo da sua carreira de serviço onde, com resiliência, sempre evidenciara a sua abnegação estoica. 
Finalmente, aguardava o inevitável entardecer da vida longe das sombras desse passado que fora sempre impregnado dos mais variados sacrifícios, mas onde a estrelinha da sorte estivera do seu lado preservando, não só, a sua integridade física como até a de caráter. 
Sempre que recordava aqueles tempos tumultuosos, em que vivera sob um regime que rejubilava ao silenciar os mais fracos, ainda, era notório um pequeno rasgo de nostalgia pela forma como soube enfrentar todas as adversidades com que era confrontado, até mesmo em palcos de guerra. Da mesma forma, lamentava já não ter a idade e a vitalidade daquela época, mas fazia os possíveis para desenvolver uma atividade regular e ocupar o tempo disponível na lida campestre onde acompanhava o crescimento dos muitos produtos hortícolas que ele próprio ia semeando. Não queria ficar ocioso e aguardar o passar do tempo com a resignação pachorrenta de quem já não espera mais nada da vida. 
Agora, o Gervásio raramente se deslocava à cidade, mas quando tal acontecia era para participar em almoços de convívio na companhia de alguns camaradas do seu tempo que, após o afastamento profissional, comungavam, ainda, de elevado espírito de amizade e camaradagem. Não passava de um pretexto para se irem encontrando depois de uma geração inteira de trabalho impregnada de provações em que o relacionamento, entre eles, se fora tornando familiar. Todos esses encontros eram aproveitados para uma confraternização pura. Discutiam assuntos de interesse comum, partilhavam ideias e recordavam histórias, revivendo algumas etapas da caminhada dos sonhos desfeitos. Histórias verdadeiras, não só de momentos eternos e do sentimento do dever cumprido como também das dificuldades, de toda a ordem, que enfrentaram durante todo o percurso ativo. 
Durante os convívios, por vezes, surgiam birras entre alguns elementos do grupo a troco de uma simples teimosia. Todavia, o Gervásio, bom conhecedor da natureza humana, fruto da sua longa experiência nas relações com o público, tratava logo de apaziguar os ânimos partindo da ideia de que algumas pessoas, a partir de certa idade, regridem em termos espirituais. Do mesmo modo, lamentava que a parte física não fizesse essa mesma trajetória recuando ao tempo da infância. Essa sim, seria uma mudança maravilhosa para toda a humanidade e que espantaria, até, os cientistas que há muito buscam uma fórmula para eternizar a juventude. 
É por demais evidente que o desgaste ao longo da vida vai tornando os homens mais frágeis e sensíveis, dando facilmente azo a melindres a pretexto das coisas mais insignificantes que poderemos imaginar. Em face disso, compete aos que ainda não atingiram essa fase decadente fazerem uma mediação tolerante e ponderada dos conflitos para que uma longa amizade não seja, subitamente, amputada devido a uma questão de menor importância.
Quando o Gervásio e os camaradas do seu tempo desempenhavam funções, todos os subalternos viviam um quotidiano de tal modo submisso que se tornaram mais solidários e leais, criando em torno desses valores muitas cumplicidades, mas norteando sempre o espírito de unidade que era uma das divisas da sua condição. Assim, viam nessa firme ligação um exercício de bravura e o melhor processo de irem superando as injustiças e as exigências desmedidas que surgiam a cada momento do seu quotidiano. Com o passar lento dos anos e a renovação de alguns quadros as mentalidades foram, felizmente, evoluindo para patamares de maior justiça. Contudo, o espírito de unidade reinante até então, nos escalões inferiores, foi-se mantendo, orgulhosamente, intacto na alma dos que iam restando.
Mais tarde, com a chegada dos mais novos, tudo se tornaria incomparavelmente diferente: por um lado, a liberdade deu origem a formas de trato muito mais humanas e civilizadas que, por si só, permitiram uma maior autonomia individual, a todos os níveis; por outro, a agitação quotidiana não concede, certamente, espaço para grandes amizades entre as pessoas para que se aglutinem em torno dos valores que, para as gerações anteriores, constituíam uma marca de referência.
Naquele dia, estavam reunidos em mais um convívio e a determinada altura, depois de a discussão ter versado vários assuntos, o Gervásio disse:
– Os temas de hoje conduziram-me a um passado com mais de quatro décadas ao encontro de algumas etapas que ainda povoam a minha memória, como foi o caso do cão que me acompanhou em algumas operações no mato, aquando do cumprimento da minha segunda comissão em Angola. 
‘Era um pastor alemão – continuou ele, enquanto os restantes o escutavam, – lindo, pujante e corpulento, parecia um lobo. Também ele foi vítima daquela guerra estúpida que se fartou de molestar inocentes. Apesar de nunca ter sido treinado para isso, acompanhava-nos em muitas operações no mato e cooperava instintivamente na segurança das instalações de um pequeno destacamento perdido algures nas terras do fim do mundo, longe de tudo aquilo que, para nós, era minimamente elementar. Tratava-se de uma pequena subunidade que se ia articulando no terreno, conforme as necessidades de adaptação ao desenrolar da missão que lhe fora atribuída: garantir a segurança do pessoal e meios, empenhados na construção de uma estrada em zona de combate, mais precisamente, nas imediações do rio Sessa que se situa a leste do país. 
A função policial de que tínhamos sido incumbidos representava para nós um risco acrescido e para o qual não havíamos sido preparados. No entanto, para tentar minimizar as consequências que um ataque de surpresa poderia causar às nossas forças, deitávamos mão a tudo o que nos poderia dar alguma vantagem como fora o caso da adoção daquele animal que dava pelo nome de Nero. Só quem viveu aqueles dias atribulados poderá ter uma noção avalizada sobre o enorme sentimento de insegurança que sentíamos na selva. Era à noite que a nossa miserável fragilidade guerreira se tornava mais real e quase assumia laivos de crueldade. Ficávamos entregues a nós próprios no meio das trevas e de um abismo sem fim. Estávamos rodeados de múltiplos e indecifráveis ruídos, com o inimigo a rondar por perto e perfeitamente conhecedor do terreno e da nossa fragilidade de meios. Não passávamos de uma dúzia de gatos-pingados, sem comunicações e logo aí sem possibilidade de pedir a evacuação de um ferido ou até o apoio das forças colocadas em posições mais recuadas no terreno quando tal fosse necessário. Como se tudo isso não bastasse, só tínhamos permissão para fazer uso das armas depois de termos sido flagelados pelo fogo inimigo e nunca como forma de prevenir uma agressão como seria normal esperar numa qualquer frente de combate. Esta restrição à partida deixava-nos em desvantagem perante os rebeldes e logicamente aumentava as dificuldades de progressão e, em última instância, sem medidas políticas de permeio, contribuía de forma decisiva para eternizar o conflito. 
Enfim, com o passar dos dias, fomos convivendo de perto com a triste realidade de que não passávamos de peças de baixo valor sem possibilidade de opinar ou contestar ordens independentemente da sua legitimidade. Em resumo, éramos a peça mais barata de toda a máquina de guerra e incomparavelmente menos importante do que as armas e outros meios logísticos. 
Mas voltando ao cão, – prosseguiu o Gervásio, perante o ar atento dos companheiros, – nunca consegui entender a rapidez com que o animal se adaptou à família militar e às novas exigências, tornando-se, assim, num pisteiro de eleição que farejava o odor rebelde a quilómetros de distância. Qualidades que o tornaram num valoroso aliado das nossas forças. 
Certa madrugada, algures na selva, o Nero, integrado numa missão avançada, detetou a aproximação de um grupo inimigo que se preparava para atacar a nossa pequena guarnição assim que rompesse a aurora. Na realidade é nesse período de transição que o cansaço e a sonolência ficam mais evidentes tornando, assim, os homens mais vulneráveis. Mas voltando ao Nero, mal este se apercebeu de que os rebeldes se aproximavam e sem quebrar o silêncio, despertou a atenção da sentinela que, de imediato, alertou os restantes elementos para adotarem uma postura defensiva e assim forçarem a horda inimiga à debandada imediata.    
Tal como a maioria de nós, o Nero viveu dias atribulados longe de qualquer carinho e sujeito aos mais variados tormentos. O antigo dono era um colono embrutecido pela vida dura em terreno hostil. Estivera vários anos radicado num aldeamento no meio da selva, depois de se ter lançado na aventura africana, em busca de melhores condições de vida que não tinha na pátria mãe. Nesse tempo, para tentar fugir à concorrência comercial que alastrava um pouco por toda a colónia, acabara naquela terra situada a várias centenas de quilómetros longe do tecido citadino mais próximo. Ali, onde fora pioneiro na implantação de um comércio de produtos variados, foi estendendo a sua atividade à produção agrícola. Os primeiros anos foram, para ele, de franco progresso, mas com a chegada da guerrilha a sua vida tornara-se numa insegurança constante e em função disso, resolvera adotar um cão, ainda bebé, com a finalidade de o moldar aos seus caprichos na busca de alguma proteção. Assim, escolhera um Pastor Alemão apenas pelas caraterísticas da raça, tanto em robustez, com até em agressividade. Queria transformá-lo numa fera implacável como forma de preservar a sua segurança e proteger o seu estabelecimento onde vendia, algumas mercearias, roupas defeituosas e cortes de pano coloridos. 
Para o comerciante levar por diante os seus intentos, logo que o cachorro atingiu três meses de idade, procurou um indígena para que este lhe aplicasse, sistematicamente, alguns açoites. Não foi difícil encontrar um negro gentio que cumprisse à risca as suas ordens sem qualquer abalo de consciência. 
Mas, algum tempo depois, o comerciante rumou a outras paragens abandonando o animal à sua sorte que acabaria por se refugiar junto dos militares e em contrapartida nós passamos a contar com um colaborador fiel que sabíamos que nunca nos trairia.
Infelizmente, a partir do dia em que a tropa abandonou a sua posição no terreno, por força da transferência de poderes para a nova administração, muita gente foi deixada para trás ao livre arbítrio rebelde. Foram os grupos especiais que, combatiam ao nosso lado, irmanados dos nossos princípios e valores. Os estrangeiros que ficavam em sentido quando içávamos a nossa bandeira. Tudo isso, sem falar na população que colaborava connosco e estava aos poucos a aprender a nossa língua. Todos eles foram abandonados à sua sorte, sem qualquer preocupação, por parte dos políticos de então. O Nero também foi incluído nesse enorme grupo de dispensados que, certamente, não puderam contar com a tolerância dos novos dirigentes’. – concluiu o Gervásio.
Depois do Gervásio terminar a sua história, brindaram a mais um dia em que a sua sobrevivência se ia tornando, a cada momento, mais problemática…