sexta-feira, 6 de maio de 2016

A DEFORRA DA NATUREZA



O Outono estava já a meio mas a temperatura mantinha-se alta, apoiada num Céu sem nuvens, onde o Sol se mostrava inclemente, pouco disposto a oferecer tréguas. O silêncio era total; nem ramos agitados pelo vento ou sequer uma ligeira brisa que aliviasse a canícula. Com exceção da torga magoriça, de floração serôdia e prolongada, o mato em redor exibia um tom áspero e chocalhante, implorando por chuva.
Cansado, com as forças a minguarem-se-lhe, transpirando abundantemente, Jacinto enveredou por um carreiro de cabras que serpenteava as courelas do Vale da Carreira, para regressar mais rapidamente à sua aldeia que distava dali cerca de dois quilómetros. Ao ombro transportava uma arma de um só cano, com o cão erguido, em posição de fogo. Pendurada no cinturão, uma perdiz balanceava como pêndulo em relógio. À sua frente, uma cadela pouco interessada, igualmente despojada de energias, língua de fora, farejava ao desfastio como se entendesse que a jornada estava concluída. A Tita, perdigueira de raça épagneul-breton, olhava, receosa, para os tojos que via à sua volta, cujos espinhos, quando se aventurava por entre o mato, lhe picavam a pele, fazendo-a ganir, dorida. Que delícia, – pensava ela – regressar à casa do dono para se refastelar no sofá acolhedor, onde a mãe de Jacinto, atenta e prestável, como pajem em ambiente real, era pródiga em mimos.
De súbito, uma voz feminina fez-se ouvir pelo valeiro:
    Jacinto! Jacinto! 
Como nada visse ao longo do caminho, olhou em redor até que se deteve numa figura de mulher que se desenhava num plano inferior, entre o carreiro e o riacho.
    Ah!... És tu, Deolinda?
    É verdade! Quem esperavas que fosse? – disse ela em voz alta.
    Que fazes aí?
    A roçar mato para o curral.
Sim – pensou ele – ali seria o local próprio, pois o mato, próximo do ribeiro, estava mais viçoso. Todavia deu consigo a pressentir uma armadilha (roçar mato ao domingo não era tarefa habitual). Detestava ser apanhado naquela situação, como qualquer láparo que, imprudentemente, vem aliviar-se à clareira, em pleno dia, afastado da toca. Pelo que reatou a marcha sem mais delongas, dizendo apenas:
    Está bem!
    Eh! Espera, quero falar contigo! – disse ela, em voz rouca e imperativa.
    Que queres?
  Quero saber o que se passa contigo! Já não te vejo há dois meses. Francamente, não sabes o que fizeste?
Diabo! As suspeitas de Jacinto confirmavam-se. É verdade que haviam namoriscado e que a posse acontecera naturalmente, na palha do alpendre, tendo por testemunha uma Lua que espreitava, divertida e cúmplice. Coisa sem grande importância. Aliás, o ato em si revelara-se caricato, devido aos esforços que ela fizera para mostrar uma virgindade que não existia. Se havia alguma coisa a discutir teria que ser com outro, não com ele.
    Afinal, o que queres de mim? – perguntou Jacinto, com voz impaciente.
Então, Deolinda foi-se aproximando, afastando o mato da sua frente com notada impaciência e Jacinto sentiu-se mais tranquilo ao notar que ela deixara para trás a enxada com que cortava o mato. Manejada com raiva e de supetão, poderia transformar-se numa arma temível. Por isso baixou a guarda e também o cão da espingarda. Ela chegou a arfar e só passado um momento pode dizer:
    Que sejas responsável!
Erguendo os olhos em direção ao firmamento, procurando juntar ideias dispersas, Jacinto suspirou, resignado. Na limpidez do Céu, só um cirro se destacava, vindo de Sul. Recordou-se da história antiga, da mula do papa, quando este, em tempos conturbados, pontificava em Avignon, à beira do Ródano. A mula esperara sete anos para se vingar do palafreneiro que a havia tratado mal. E o coice que lhe aplicara fora de tal ordem que as águas do rio se agitaram inquietas. Estaria também ele condenado a esse género de vendeta?
    Não te forcei a nada! Tu até aceitaste a situação com alvoroço, como se a desejasses há muito! – respondeu Jacinto.
    Estás doido? Quero que vás domingo a minha casa! – disse ela em tom áspero.
Nesse momento, vindas do cimo do monte, várias perdizes, sete ou oito, asas desembainhadas, sobrevoaram o mato, rasteiras, fazendo uma zoada caraterística. Na portela, perto, curvaram para a direita e desapareceram. Algum caçador ou simples caminhante as teria levantado. Jacinto fez uma careta. Aquelas flibusteiras, como ele lhes chamava, eram suas conhecidas. Há dias que se entretinham a negacear consigo, nunca permitindo que ele se aproximasse à distância de tiro.
    No próximo não pode ser. Conta comigo na quinta-feira. – respondeu ele, tentando suavizar o momento. Mas é claro que a sua intenção seria outra. Sabia que o pai de Deolinda, conhecido como o Tio Bisarma, não se ensaiava nada para varrer tudo à sua volta com a foice de cortar as silvas, sobretudo se o bagaço lhe esquentasse a cabeça.
    Falas a sério?
  Sim, conto ir... – respondeu Jacinto, que ao mesmo tempo levou a mão ao cinto e desprendeu a perdiz do gancho, dizendo:
    Leva esta perdiz e prepara-a para quinta-feira. Ajudarei a comê-la.
    É mesmo verdade?
    Lá estarei. Agora vou ver se encontro as perdizes que passaram aqui. Adeus!
De faces pálidas, cabelos em desalinho, ainda desconfiada, Deolinda viu que ele se afastava e durante um momento manteve-se atenta, sem desviar os olhos, até Jacinto, se diluir na vegetação.
*
Dois dias depois, Jacinto partiu para a conhecida urbe, à beira do Tejo, capital de um império extinto, também conhecida em tempos longínquos como a grande cloaca, onde não seria localizado com facilidade.