sexta-feira, 23 de março de 2018

FUGINDO AO STRESS DA GUERRA




A noite caía sobre as colinas de Sessa. O sol que se escondera por detrás do arvoredo deixava no horizonte um clarão avermelhado que, anunciava a continuação de um tempo tórrido que, naquela época do ano, era muito acentuado. Com a chegada do crepúsculo as sentinelas reforçavam os postos de vigia para a indispensável segurança  e a solidão invadia todo o dispositivo. Por muito resistente que cada homem fosse, era à noite que a sua fragilidade emocional se tornava por demais evidente. Então, enquanto uns se refugiavam no aconchego da camarata outros amontoavam-se na barraca a que chamávamos cantina e ali iam afogando as mágoas até que o cantineiro o permitisse. As constantes recordações das origens também não contribuíam para facilitar a estadia naquele cenário de guerra. Naquela fase do conflito a atividade operacional exigia dos soldados uma resiliência muito para além da sua capacidade, tanto física como psicológica, mas eles lá iam resistindo, como podiam, enfrentando todas as adversidades. 
A última operação fora longa e cansativa. Desenrolara-se ao longo de quatro etapas onde o calor, durante o dia, não dera tréguas e as noites não pararam de se revestir de uma crueldade abismal. Para além do equipamento que carregávamos e que nos dificultava os movimentos em plena selva, ainda tivemos que lutar contra milhões de mosquitos que nos atacavam os olhos, o nariz e os ouvidos com uma sofreguidão insuportável. O terreno, naquela região, era constituído por um misto de mata densa e áreas mais abertas onde, por imperativo de missão, tivemos de rasgar o capim e atravessar chanas com água pela cintura convivendo de perto com répteis e bicharada de toda a espécie. Embora, desta vez, não tenha havido contacto com os rebeldes que, certamente, controlavam os nossos movimentos à medida que íamos progredindo no terreno, o perigo era anunciado em cada momento, desde logo, no chão que pisávamos que escondia minas traiçoeiras preparadas para estilhaçar as pernas das suas vítimas e desmoralizar todo um batalhão. Apesar da nossa juventude, à medida que o tempo ia passando, o desgaste era espelhado em cada rosto. 
Assim, logo que regressámos ao aquartelamento, depois de quatro dias e três noites em constante desassossego, resolvi deixar o, aparente, conforto da camarata e rumar à sanzala. Uma deslocação que eu ansiava há algum tempo, talvez para conhecer de perto o viver indígena que surpreendia pela sua capacidade de sobrevivência, numa terra onde faltava tudo o indispensável. Tratava-se de uma aldeia localizada numa colina perto do rio Sessa e que era constituída por dezenas de palhotas onde se acomodava mais de uma centena de habitantes e que distava dali perto de oitocentos metros. Naquele dia, para além de tentar aliviar o stress e fugir à guerra, queria entregar roupa à lavadeira que havia contratado assim que fui colocado para aquele fim do mundo. Ali, estávamos entregues a uma rotina que nos ia devorando a alma, nos expunha aos perigos, nos castigava o corpo e privava da liberdade, sem direito a contestação de qualquer tipo. Enfim, apesar de tudo, a vida tinha que continuar.
Pela frente, esperava-me uma picada arenosa ladeada por vetação diversa que dificultava a visibilidade para ambos os lados e de onde só podiam surgir surpresas desagradáveis. Mas, convivendo de perto com os riscos que era uma realidade que tínhamos de enfrentar todos os dias, não pensei duas vezes, peguei no saco com a roupa que atestei com cerveja gelada, meti duas granadas ofensivas nos bolsos do camuflado e parti indiferente àquilo que pudesse surgir. As granadas, nesta situação, funcionavam mais como aconchego de espirito de que como arma de defesa, em caso de ataque surpresa de pouco me serviriam, mas, ainda assim, nunca seria demais estar minimamente prevenido. 
Logo à saída, fui alertado pelos funcionários da JAEA, (Junta Autónoma de Estradas de Angola), um ramo da organização que estava sediada em instalações contíguas às nossas, que teceram comentários desencorajadores à minha deslocação. Trabalhavam há muitos anos em zona de guerra, na construção de vias de comunicação, e conheciam muito bem, não só, a forma de atuar dos guerrilheiros como das populações locais. Ainda assim, as suas recomendações não foram suficientes para me levar a mudar de intenção. 
Durante o percurso a escuridão abateu-se, rapidamente, sobre toda a área que me envolvia e com ela a temperatura baixou acentuadamente, nada que não fosse habitual naquela época do ano. Ao longe, eram visíveis pequenos pontos de luz deixados pelas fogueiras que os aldeões acendiam à porta das palhotas e só então tomei consciência da aventura em que me metera. No momento em que acendia um cigarro surgiu na minha proximidade um ruido, inesperado, vindo da mata, que interrompeu os meus pensamentos e provocou em mim um pequeno sobressalto. Receio esse que rapidamente se dissipou ao ver que se tratava de uma gazela em fuga que fora surpreendida com a minha presença. Nesse momento, comecei, então, a equacionar o meu regresso ao aquartelamento logo que terminasse o motivo que me levava à sanzala. Esse sim, seria, certamente, muito mais problemático para a minha condição de homem desarmado e isolado em meio hostil. Até porque os potenciais inimigos que, eventualmente, coabitassem com a população local, para obter logística e informações, ficariam perfeitamente inteirados da minha movimentação, mas agora era tarde demais para fugir à minha insensatez. 
Assim que atingi o perímetro do casario, edificado de forma simples e desordenada, de ambos os lados da rua, numa extensão que devia rondar os duzentos metros, fui saudado com um “moio”, muito efusivo, que me pareceu mais de espanto do que de saudação. O cumprimento partiu de um indígena que se encontrava sentado à porta do kimbo. Parecia o mais velho de um grupo de seis pessoas que saboreavam o jantar à volta da fogueira. De imediato, todos os comensais, interromperam a refeição e ficaram de olhar pregado em mim como se esperassem algo de dramático com a minha chegada. Depois de retribuir a saudação continuei, normalmente, o meu caminho sem demonstrar qualquer intimidação embora a realidade fosse bastante mais cruel. Não podia afastar a ideia de estar a ser observado por elementos inimigos que me podiam intercetar sem que tivesse oportunidade de me defender. Só nesse momento me apercebi do sussurro que se gerava nos populares à medida que ia prosseguindo a marcha sem, no entanto, perceber o seu conteúdo. Do dialeto “canguela” apenas entendia meia-dúzias de palavras e, apesar disso, lá fui avançando até à casa da lavadeira que se situava no extremo oposto da sanzala, relativamente ao meu sentido de deslocação. Embora não fosse um homem medroso fui avançando atento a tudo o que pudesse surgir.
A Teresa lavadeira vivia sozinha e, à semelhança dos outros populares, estava sentada à porta da cubata a preparar o jantar. Uma pequena panela de ferro, escurecida pelo uso prolongado e abraçada pelas chamas, estava apoiada em duas pedras para mais facilmente ficar exposta ao calor. A ementa era fuba, um prato tradicional da região. Num outro recipiente, encostado às brasas, preparava o molho que, segundo fui informado, era elaborado a partir de carne de galinha. A rapariga, apesar dos seus trinta e oito anos de idade e de algumas rugas que lhe davam ar de mulher madura, prendia a atenção de qualquer homem. Eu diria que até mesmo noutras circunstâncias e bem longe de tantas privações. Vestia saia cintada e blusa garrida que davam destaque ao seu corpo elegante e bem torneado. Não obstante o sotaque africano, falava português quase na perfeição. O seu antigo companheiro morrera quando desempenhava uma missão de pisteiro e ela, agora, numa terra onde não existiam oportunidades de trabalho remunerado, ia sobrevivendo do cultivo das lavras e dos trocos que recebia de cuidar da roupa de alguns militares. Ali, confrontada pela minha presença, àquela hora tardia, pareceu-me um pouco embaraçada e cumprimentou-me num murmúrio quase indecifrável. Parecia que queria ocultar da vizinhança aquilo que dizia. Durante a noite não era habitual os militares se movimentarem pela aldeia e talvez por isso a minha presença tenha causado tanta apreensão nos moradores.
Com os olhos adaptados à penumbra que envolvia a sanzala, localizei facilmente um tronco que arrastei para me sentar junto à fogueira. Depois de acender um cigarro, para tentar disfarçar o meu embaraço, comecei por me justificar com a necessidade urgente de roupa limpa. Devo confessar que, nesse momento, tive o pressentimento de que devassava a intimidade de toda aquela gente. Era como se tivesse entrado numa casa comunitária sem ser convidado, mas também reconheci que já não era possível fugir a isso. Então, abri o saco e tirei duas cervejas que abri de imediato, entreguei uma à lavadeira e segurei outra, como forma de partir o gelo que, aparentemente, se instalara com a minha presença. Logo que refrescámos a garganta ela aconchegou as brasas para espevitar a chama, pegou na colher de pau e mexeu a fuba até o jantar ficar pronto. No final ofereceu-me da sua comida que, por delicadeza, não pude recusar. 
O tempo foi passando e quando demos por isso a maioria dos habitantes tinham recolhido à privacidade das suas casas. As fogueiras, aos poucos, iam sucumbindo e a sanzala ficava mais escura e abandonada. O sussurro ia dando lugar ao silêncio apenas quebrado por ruídos indecifráveis que chegavam da mata contígua e onde se movimentava bicharada de muitas espécies. Enquanto isso acontecia, entreguei-me ao prazer de mais um cigarro e no intervalo de uma baforada concluí que estava na hora de tomar uma decisão: regressar ao aquartelamento ou aceitar o convite que Teresa, entretanto, me fizera para pernoitar na sua casa. Qual seria a melhor decisão? Ambas me pareciam arriscadas! Mas viver ali, naquele ambiente agreste, era um risco permanente. Portanto, regressar à base seria, certamente, um alvo fácil, mas ficar na sanzala também se tornava arriscado, pensamento assente em relatos, de outros locais e, de situações idênticas em que militares, indefesos, foram surpreendidos e atacados por criminosos. No entanto, sem grande alternativa, optei pelo convite, mas ficámos mais um instante no aconchego da fogueira indiferentes a tudo o que nos rodeava. Em aconchego nostálgico, falámos do nosso quotidiano, das minhas saudades da terra distante, da esperança em melhores dias e de coisas sem importância como se, entre nós, existisse uma grande intimidade. Como eu ansiara por um momento assim, esquecendo, temporariamente, o quotidiano de guerra e trazendo à ribalta aquilo que nos ia prendendo à vida. 
Quando concluímos que naquele labirinto de cubatas não se vislumbrava vivalma, resolvemos recolher à privacidade do lar onde Teresa se acomodava. A casa era rudimentar como a generalidade das habitações da aldeia. Construída com paus e capim, com paredes revestidas a barro. Mas, apesar desse aparente desconforto nenhum de nós, naquele momento, se mostrava exigente. Existia uma calorosa cumplicidade e isso, agora, era suficiente. Logo que nos encontrámos no interior, a rapariga acendeu um candeeiro a petróleo que deixou a nu o espaço exíguo que ocupava, cerca de dez metros quadrados, que era constituído por piso térreo onde se destacava um baú em madeira tosca e uma tarimba apoiada em quatro troncos e ainda, um caniço, uma espécie de primeiro andar que funcionava como arrumação. Nesse momento, a minha preocupação centrou-se na porta que, em meu entender, oferecia fraca resistência contra qualquer intruso que tentasse invadir a nossa intimidade. Então, para além de a trancar com o fecho apropriado, utilizei o baú para a bloquear na perspetiva de obter uma maior segurança. Apesar dos riscos que corríamos, ficámos longe de olhares indiscretos e entregues à volúpia como se aquela fosse a última noite das nossas vidas. 
Assim, na madrugada seguinte, aproveitando a madorra em que a sanzala estava mergulhada, regressei ao aquartelamento sem que nada de grave me tivesse acontecido e pronto para mais uma etapa que me fosse destinada.