sexta-feira, 11 de julho de 2014

O VIVER SERRANO NO PRINCÍPIO DO SÉCULO XX




"Com a chegada da recessão em 1930, as dificuldades agravaram-se e as populações, já anteriormente carenciadas, ainda ficaram mais fragilizadas. Desde o princípio do século que a instabilidade política era a causa apontada para o grande colapso em que viviam as comunidades rurais em Portugal. Agora, para esta agonia económica, teria contribuído essencialmente a crise a nível mundial, como reflexo ainda da Primeira Grande Guerra que doze anos depois, teimava em semear dramas.
Para tentarem fugir à penúria que não parava de os molestar, todos os homens válidos, mas sem pão no açafate, cujo passadio se limitava a um caldo de couves, boiando sem condimentos por o azeite se destinar à candeia fumarenta, com um pouco de broa migada para que o seu bolor se desvanecesse, todos eles olhavam para o horizonte com alguma esperança, sobretudo em época de ceifas, nas grandes planícies do Alentejo ou na província de Badajoz em Espanha."
In Madrugadas de Esperança.




sexta-feira, 4 de julho de 2014

A FONTE MILAGROSA


Naquela manhã de maio, João Nabiça decidiu experimentar a potência do seu novo jeep numa viagem pela serra risonha onde para além do prazer da condução queria saborear a beleza da paisagem. Para além do passeio e do contacto com a natureza, queria, ainda, verificar a resistência da viatura, face à aridez do terreno, numa das diversas vias florestais de acesso à barragem de Santa Luzia. Tratava-se de um período do ano em que os montes serranos se revestiam de um colorido matizado deslumbrante que deleitava o olhar até do mais distraído passante.
A esposa que, nesse dia, não quisera experimentar a viatura para se furtar à constante censura do marido, relativa à sua condução, ia sentada a seu lado contemplando o rendilhado florido que cobria os montes quase no seu auge. Durante todo o percurso de ida, ambos conviviam com toda aquela beleza natural como se visitassem a região serrana pela primeira vez. Passaram ali noutras ocasiões, mas nunca se haviam apercebido de que a paisagem fosse tão arrebatadora, motivo que os forçou a paragens frequentes para o inevitável registo fotográfico.
Depois de um percurso térreo de grande inclinação em que João Nabiça aproveitou para fazer diversos testes ao veículo que, apesar do elevado grau de dificuldade, correspondeu às suas expetativas, chegaram ao Casal da Lapa. Assim, logo que Nabiça estacionou o carro decidiram percorrer o circuito da pista pedestre, construída junto à albufeira da barragem de Santa Luzia, exercitando as pernas e sorvendo o ar puro daquele lugar retemperador.  
Logo que o apetite os despertou para o almoço encaminharam-se para Fajão, uma aldeia de xisto de grandes tradições que, para além do património histórico de visita quase obrigatória, lhes reservava uma refeição como há muito não comiam. Depois das entradas de queijo de cabra curado e doce de chila, optaram por uma emanta de cabrito assado, guarnecido com batata alourada e castanha pilada, acompanhado com um bom tinto. No final, após se terem deliciado com uma sobremesa de tigelada na púcara, Nabiça rematou com um digestivo de aguardente medronheira. Uma iguaria, para auxiliar a digestão, de sabor ligeiramente adamado e aroma inconfundível, produzida na região serrana por gente experiente no fabrico artesanal.  
Quando se encaminhavam para a viatura, Nabiça notou que tinha exagerado nas bebidas alcoólicas. Não estava bêbedo, mas já se sentia um pouco tocado ao ponto de notar pequenas alterações de coordenação motora. Apesar disso, não comentou o assunto com a esposa para não a motivar a pegar no volante. Até porque ela também tinha bebido, embora em menor quantidade. Ao mesmo tempo, ele não tinha muita confiança na sua condução, especialmente, naquela zona montanhosa onde os precipícios se sucediam em cada curva da estrada que ao mínimo descuido poderiam originar um despiste com consequências imprevisíveis. Assim, sentou-se ao volante consciente do seu estado que julgava não ser impeditivo de guiar. De qualquer forma, tinha a noção de que naquela região o trânsito era bastante reduzido e também não era habitual ser confrontado com qualquer ação de fiscalização. Então, iniciou a viagem de regresso à Lousã, em marcha muito cautelosa para tentar minimizar qualquer imprevisto. No entanto, enquanto subia a serra, para uma altitude superior a mil metros e onde a pressão atmosférica já é notória, foi acometido de forte sonolência, mas, apesar disso, foi progredindo tentando contrariar o descanso que organismo lhe pedia.
Entretanto, para obedecer a uma necessidade fisiológica, foi forçado a interromper a marcha no momento em que circulava próximo do cimo da catraia do Farropo. Antes de reiniciar a viagem ficou a saborear a brisa fresca que soprava de norte, tentando, com isso, espantar a sonolência que o atormentava. Vento era coisa que não faltava por ali em qualquer época do ano. No dorso daquelas serranias era utilizado como força propulsora para produção de energia.
Enquanto se movimentava, na berma da estrada, apercebeu-se da existência de uma nascente contígua à via que brotava da fenda de uma rocha em caudal abundante. Como se o cantarolar da corrente lhe tivesse despertado o apetite, desceu o pequeno valeiro, encheu uma garrafa que ali encontrou e bebeu em pequenos goles. Minutos depois repetiu o enchimento e convidou a esposa para que lhe fizesse companhia, mas como aquela declinou ele esvaziou a garrafa sozinho saboreando a frescura e a leveza da água em lentos tragos.
Entretanto, o tempo foi passando e, meia hora mais tarde, notou que a sua disposição melhorara nitidamente. A sonolência e a perturbação visual tinham desaparecido. Em função disso, retomou a marcha, aparentemente, consciente para o exercício da condução.
Porém, quando se aproximava do entroncamento da Catraia da Martinha, lobrigou, por entre a ramagem dos pinheiros, a presença de uma força policial que se encontrava a menos de duzentos metros à sua frente. Ao ver os agentes, Nabiça estremeceu e interrompeu bruscamente a marcha com uma travagem que embora não tivesse sido ruidosa despertou a atenção da fiscalização.
De facto, estava longe de imaginar que, naquele local, em plena serra, iria ser surpreendido por uma operação de stop. Precisamente no dia em que tinha ingerido um copito a mais, uma situação que só muito esporadicamente acontecia. No mesmo instante, sentiu-se invadido por um misto de emoções contraditórias: se por um lado se recriminava por não ter tido cuidado suficiente com a bebida, por outro, insurgia-se contra a presença dos agentes de autoridade logo num local que não lhe deixava alternativa de desvio. Pensou em trocar de lugar com a esposa, mas, ao mesmo tempo, descartou a ideia dado que, certamente, os agentes iriam notar. Ao mesmo tempo, equacionava uma forma de se desenvencilhar da situação em que estava metido, talvez, invertendo o sentido de marcha para se por em fuga. Tinha uma viatura apropriada para circular por qualquer estrada florestal, onde não seria facilmente alcançado, mas corria o risco de vir a ser confundido com um vulgar criminoso, coisa que nem sequer podia imaginar que lhe acontecesse. Considerava-se uma pessoa responsável e, como tal, a sua única solução, seria assumir as consequências que pudessem resultar da fiscalização. Nos poucos segundos que mediaram a sua reflexão tudo isso lhe passou pela mente. Mas, de repente, lembrou-se de que não tinha averbado qualquer infração no seu cadastro de condutor e decidiu prosseguir o caminho na expectativa de que isso lhe servisse de atenuante.
Então, como tanto receara, mal entrou na Estrada Nacional 112, foi logo intercetado pelos agentes de autoridade. Ao ser questionado se havia ingerido bebidas alcoólicas respondeu com realismo. Não valia apena mentir até porque o aparelho não se deixaria, obviamente, iludir pela sua negação. Porém, a sua ansiedade era de tal modo que, depois de sopro, ficou com os olhos vidrados no aparelho como se esperasse algo muito decisivo na sua vida de condutor. Mas o resultado surgiria quase de imediato, com a indicação de 0,35 g/l. Um resultado perfeitamente dentro dos limites legais para poder exercer a condução. Nabiça nem queria acreditar naquilo que ouvia da boca do agente, quando aquele lhe deu conta do resultado.
Só depois de ter sido autorizado a continuar a viagem, comentou com a esposa não só o mau bocado que passara provocado pelos efeitos do excesso de bebida como, ainda, o susto que apanhara no ato da fiscalização. Ao mesmo tempo, não se cansava de fazer conjeturas sobre o resultado do teste e só encontrou uma explicação razoável - as excelentes propriedades da água que tinha ingerido. De facto, logo que a primeira golada deslizou pela garganta, notou uma reação quase imediata que lhe trouxe a boa disposição, razão que julgava suficiente para acreditar naquilo que lhe acontecera.
No dia seguinte, João Nabiça mandou fabricar uma placa metálica com a inscrição seguinte: “Fonte Milagrosa”. Não tardou em arranjar uma oportunidade para voltar à serra e colocar a placa, junto à fonte, bem à vista de qualquer transeunte, como se com esse gesto fizesse um agradecimento à generosidade da natureza pela pureza daquela nascente.  
Dois meses mais tarde, por motivos desconhecidos, a placa com a indicação da "Fonte Milagrosa" viria a desaparecer.