quinta-feira, 20 de agosto de 2020

O DECLÍNIO DO PINHEIRO-BRAVO

Durante grande parte do século passado, a economia serrana assentava, essencialmente, na agricultura de subsistência, na criação de gado ovino e caprino, na produção de carvão e na exploração do pinheiro-bravo. 

O pinheiro-bravo que é originário da Europa mediterrânica resiste ao frio e à seca com alguma facilidade, mas desenvolve-se melhor em terrenos arenosos sob temperaturas mais amenas. Para além da madeira, permite a extração da resina. Nessa época, o pinheiro estendia-se por vastas áreas do território serrano, entre o limite das terras de semeadura e a crista dos cabeços. Embora se trate de uma espécie de crescimento lento, quando implementada em terreno fértil e encostas solarengas, cresce com maior robustez, à média de um metro por ano. A reprodução é feita através do pinhão alado que é libertado pelas pinhas, no fim da primavera, sendo depois levado pelo vento para clareiras onde vai germinar em contacto com a humidade do solo. Infelizmente, devido à doença do “Nemátodo”, aos fogos florestais e ao corte para retirar madeiras, tem vindo a desaparecer do interior do país. Situação que afeta também a indústria resineira que vai ficando sem matéria- prima para produzir os derivados da resina.

Na época, o trabalho da colheita de resina, na região serrana, criou muitos postos de trabalho e permitiu aos proprietários dos pinhais o recebimento dos sempre preciosos tostões, que eram pagos no final de cada temporada, em função do preço contratado e do número de bicas ou sangrias que cada um possuía. Como não existia na região mão-de-obra suficiente e preparada para a extração da resina, recebia imigrantes de localidades como: Idanha-a-Nova, Almaceda ou Castelo Branco e outras que também buscavam os tão desejados postos de trabalho que escasseavam nas suas terras de origem.

Para além dos lucros da resina, quando surgia alguma despesa extraordinária, os proprietários recorriam à venda de pinheiros para equilibrar o orçamento familiar. Apesar de toda essa aparente mais-valia económica que o pinheiro-bravo fornecia, não deixava de ser uma fonte de desentendimentos entre todos os intervenientes. Por um lado, alguns proprietários de courelas encarregavam-se de mudar os marcos e alterar, unilateralmente, as estremas para chamar a si árvores que não lhes pertenciam. Por outro, os resineiros faziam cortes excessivos ou mesmo várias sangrias no mesmo pinheiro, para daí retirar maior quantidade de resina, pagando somente uma bica simples se o proprietário da mata não desse conta disso. Ao mesmo tempo, ignoravam que o excesso de colheita enfraquecia de tal modo o pinheiro que alguns acabavam por sucumbir. Também se enganavam, deliberadamente, nas estremas para resinar um ou outro pinheiro que se mostrava mais pujante, na busca de maior quantidade de resina. Situações que davam origem a discussões. Como se isso não bastasse, os danos nos utensílios da recolha de resina eram frequentes, quer por furto, brincadeira ou mesmo por má-fé e causavam a ira de resineiros, proprietários dos pinhais e até donos das resineiras. Ainda, no início de cada época deparavam-se com a falta de muitos púcaros de barro que se destinavam a aparar a seiva do pinheiro. Alguns eram desviados para uso doméstico, principalmente para beber o vinho nas adegas e até constava que o vinho servido no barro aveludava o paladar.

A propósito de brincadeiras relacionadas com a resina, recordo um episódio ocorrido na década de 1950, quando três jovens, com idades a rondar os quinze anos, que pastoreavam o gado nos arredores da aldeia, se depararam com um barril cheio, com duzentos litros de resina, optaram por um divertimento invulgar. E de que é que eles se haviam de lembrar, lançar o barril pela encosta abaixo pelo simples prazer de o ver rebolar. Escolheram o local mais apropriado para que aquele rolasse autonomamente, soltaram-no e detiveram-se a comtemplar aquele cilindro destrutivo.

O barril, fabricado em madeira de carvalho, aguardava ser recolhido por um de dois carreiros, que se ocupavam naquele tipo de transporte quase em permanência, para um local acessível a uma camioneta, mais concretamente para o estaleiro do sítio das Árvores, junto à Estrada Nacional 112, perto das Moradias. Mas os comparsas não lhe deram oportunidade para que tal.

A descida era muito acentuada e prolongava-se por várias centenas de metros. Como seria de esperar, ao fim de poucos segundos, o barril atingiu tal velocidade que se tornou imparável, derrubando tudo o que se lhe deparava pela frente. Apesar da solidez da resina e da resistência da vasilha, a partir de certa altura, começou a perder o conteúdo, que foi deixando aos poucos ao longo da encosta repleta de vegetação diversa, até se imobilizar no leito do ribeiro. Embora parcialmente esventrado, quando finalmente se imobilizou, deixou os populares, que laboravam nas terras de semeadura, incrédulos com o acontecido, dado que não tinham memória de assistir a algo idêntico. O susto foi enorme com aquela situação invulgar e logo que chegaram à povoação, não se cansaram de relatar o sucedido.

Os autores da façanha, após terem presenciado aquela experiência espetacular, que os surpreendeu, não só pela velocidade que atingiu e ruído que provocou, mas sobretudo pelo rasto de destruição que deixou à sua passagem, congeminaram uma forma de se furtar à responsabilidade. Conhecedores do terreno e de outros potenciais autores, capazes de uma brincadeira semelhante, decidiram atuar por antecipação e atribuir a autoria do delito a três outros jovens da aldeia, também pastores de gado, mas que por sinal, nesse dia, andavam noutro local.

Condenados à partida de pouco valeu aos injustamente incriminados a negação de tal ato, porque logo que o boato se espalhou pela aldeia, não perderam pela demora e levaram um corretivo dos pais. Contudo, o castigo não ficaria por aqui. No dia seguinte, foram intimados a comparecer no Posto da Guarda, em cumprimento de queixa apresentada pelo proprietário da resina. Durante a inquirição, dois dos acusados negaram e quase convenceram as autoridades, mas o terceiro, talvez receando que o interrogatório se tornasse mais rigoroso, deitou tudo a perder, acabando por admitir ter participado no delito e em função disso, os três incriminados tiveram que ressarcir o dono da resina, na quantia de 140 escudos.

Ainda a propósito dos transportes de resina, noutra ocasião, na década de 1960 perto do Vale Dianteiro, dois garotos, um com dez anos de idade e outro com oito, resolveram apanhar boleia num carro de bois que circulava carregado com dois barris de resina. 

O carreiro era um homem com idade a rondar os cinquenta anos e um trabalhador determinado. Fruto do tempo de amargura que se vivia no interior serrano entregava-se à labuta quotidiana, tanto de dia com de noite, sem horários para refeições nem para descanso. Nesse dia fazia o transporte para o estaleiro existente na aldeia. Como habitualmente, aquele, no seu estilo desembaraçado, só conduzia os bois à soga quando o terreno obrigava a maiores cuidados de segurança, caso contrário caminhava à frente dos animais, de aguilhada ao ombro, numa postura que para aqueles garotos parecia distraída. Assim, aproveitando a aparência descontraída, quando o carro se aproximava dos dois petizes, anunciando a marcha numa chiadeira que se assemelhava a um interminável gemido, movidos pela imprudência própria da idade, sentaram-se, sorrateiramente, na traseira do carro, indiferentes ao perigo que corriam e com a convicção de que o carreiro não se havia apercebido. Acomodaram-se como puderam sempre com a preocupação de ocultar a silhueta no bojo dos barris para evitar serem detetados. Apesar do desconforto, a vigem foi prosseguindo com muitos solavancos que o piso irregular obrigava, mas para eles isso não representava obstáculo, apenas queriam usufruir de uma boleia que nunca tinham experimentado. Contudo, depois de terem percorrido perto de um quilómetro, já à entrada da aldeia, local onde o traçado se tornava mais irregular, o carreiro ter-se-á apercebido de presença dos dois passageiros clandestinos e resolveu reprimi-los à vergastada. Sem provocar alarido nem abrandar a marcha, afastou-se, sorrateiramente, da frente dos animais pronto para ação. Com a vara de tocar os bois em riste e pronto a desferir a vergastada, esperou que a traseira do carro se aproximasse da sua posição. Mas imediatamente antes, os dois garotos, num movimento ágil, conseguiram fugir e evitar o corretivo. É claro que, o carreiro quando viu gorados os seus intentos e reparou no riso divertido dos garotos, soltou um chorrilho de impropérios, com a convicção própria de quem não tinha outra alternativa.

          

 

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