sexta-feira, 13 de junho de 2014

UM ALMOÇO INESQUECÍVEL



Logo que Norberto Vidreiro e o jovem Vicente chegaram à povoação da Várzea encaminharam-se para a tasca que era o único estabelecimento que servia refeições num raio de vinte quilómetros. Embora nunca lá tivessem entrado, tinham boas referências sobre a qualidade da comida ali confecionada. Apenas um senão, a variedade de pratos estava limitada ao chamado “prato do dia”, a menos que o menu fosse previamente encomendado. De qualquer modo, os dois homens não estavam preocupados com isso, queriam matar a fome fosse qual fosse a ementa.
Para eles a manhã fora longa e atribulada. Levantaram-se cedo a caminho de um lugar que distava das suas residências perto de cem quilómetros. Ali, esperava-os trabalho árduo a braços com a colocação de vidros num edifício em construção. Durante a viagem tiveram uma avaria no veículo que lhes roubou quatro horas de labuta e nem sequer lhes permitiu a ingestão do pequeno-almoço. Motivo suficiente para que nesse dia se sentissem mais esfaimados do que nunca.
O Vidreiro era um antigo atleta na disciplina do lançamento do peso que, depois de alguns anos de entrega à prática desportiva, se dedicava, agora, em exclusivo à sua profissão de vidreiro. Era um homem com cinquenta anos de idade, bem humorado e robusto, que gostava de se alimentar bem. O Vicente era seu empregado. Tinha dezoito anos e nunca lhe faltava o apetite.
Logo que chegaram ao tasco, sentaram-se à mesa e pediram duas doses de jardineira que era a ementa do dia. Mas assim que o tasqueiro colocou as travessas em cima da mesa o Vidreiro olhou-o nos olhos e disse:
-    Olhe que nós pedimos duas doses!
-   Exatamente, estão à sua frente! – respondeu o tasqueiro, também um homem robusto, mas ligeiramente mais velho.
-   Tenho almoçado em muitos locais pelo país e não só, mas nunca me serviram uma dose tão pobre! O senhor acha que isto é refeição suficiente para um homem de trabalho? – insistiu Norberto Vidreiro de plena voz.
-  Se quiser mais peça outra dose! Não se acanhe! A panela está cheia! – respondeu o sexagenário, com cara de quem esperava a visita dos funcionários do fisco.
- Não, obrigado! Para pagar outra dose é preferível fazer a viagem de vinte quilómetros e almoçar num restaurante digno desse nome! – respondeu o Vidreiro, sem alterar o tom de voz.
Ao fim de duas dúzias de garfadas, ambos ficaram com os pratos vazios. O Vidreiro ainda esteve tentado a pedir outra dose para o colaborador, que era jovem e tinha necessidade de se alimentar bem, mas acabaria por desistir depois de ouvir a recusa daquele. Ambos concordaram num jantar reforçado, aquando de regresso às suas residências.
Mas, a meio da tarde, a fome voltou para ensombrar a habitual boa disposição dos dois homens e Vidreiro não se ficou pelas intenções, ordenou ao jovem que fosse comprar qualquer coisa para o lanche. Em função disso, quando o Vicente se dirigiu ao tasqueiro e pediu duas sandes, aquele disse:
-   Muito bem! Enquanto eu as preparo, vá perguntar ao seu patrão se amanhã cá vêm almoçar e diga-lhe que a ementa vai ser favas.
-    Eu não gosto de favas. – atalhou o Vicente.
-    Não faz mal, para si preparo um bife com batatas fritas!
A resposta não tardou muito e foi afirmativa. Norberto Vidreiro adorava favas e decidiu repetir a experiência antes de optar por uma alternativa.
Assim, no dia seguinte, sensivelmente à mesma hora, os dois homens sentaram-se à mesa preparados para satisfazer o apetite, nem que, para isso, tivessem que pedir doses reforçadas. Depois de alguns minutos de espera, o tasqueiro, conforme havia acordado, colocou à frente do jovem um bife de novilho que enchia totalmente o prato e à frente de Vidreiro um tabuleiro a abarrotar de favas. Estavam tão bem empilhadas que, no meio, formavam uma torre em forma de pirâmide. Pelo volume devia rondar dois quilos.
- Para quem é este vagão de favas? – questionou Vidreiro, que parecia impressionado com o que via.
-  Para o homem de trabalho que está sentado a essa mesa! Não quero que ele repita aquilo que disse ontem! E como se não bastasse a reclamação, pronunciou-se em tom audível a outros clientes, pondo em causa o bom nome desta casa, fruto do trabalho de duas gerações. – respondeu o tasqueiro, com ar de quem julgava ter ganho a causa.
-   Muito bem! Então, traga um jarro de vinho de litro!
Só depois do sexagenário se afastar é que Vidreiro tomou consciência do sarilho em que estava metido. Conhecia a sua capacidade gastronómica, mas nunca se vira perante uma situação que tinha tudo para ser um desafio provocador. Embora fosse um homem de trato austero sabia dar o braço a torcer quando a situação o exigia, mas, naquele caso, decidiu enfrentar a refeição como se travasse uma batalha com o tasqueiro que o serviu, personalizada na montanha de favas. Não podia permitir que aquele se divertisse à sua custa.
Depois de várias dezenas de garfadas e um quarto de hora a comer a pirâmide parecia ainda maior, mas o Vidreiro estava determinado a concluir a refeição a que se propusera. Pelo canto do olho, notava que o tasqueiro o tinha sob observação em conluio com alguns comparsas que se apinhavam ao longo do balcão, mas não dava qualquer importância aos olhares indiscretos. A determinada altura levantou o braço e o sexagenário correu na sua direção como se esperasse o anúncio de tréguas. Contudo, a batalha ainda estava longe do fim. Contentou-se com o pedido de outro jarro de vinho.
Alheio à guerra das favas, estava o jovem que, enquanto almoçava, olhava o patrão com o ar divertido de quem nunca assistira a semelhante façanha.
Apesar de totalmente enfartado, o Vidreiro continuou a lenta degustação para que as favas se fossem acomodando o melhor possível. Não tinha pressa. O trabalho podia esperar. Era patrão de si próprio, não tinha que dar contas a ninguém.
Uma hora mais tarde, o tasqueiro não resistiu a uma provocação. Abeirou-se da mesa e questionou:
-     Então! Gosta das favas?
-     Muito! – respondeu o Vidreiro.
-     São do meu quintal!
-    Olhe! Para lhe ser franco, acho-as bem confecionadas! No entanto, se não me leva a mal, gostaria de fazer um pequeno reparo:
-    Fale à vontade, homem!
-   Acho que a cozinheira se excedeu no tempero! Tem piripiri a mais! Mas para isso também o senhor arranja solução! Traga-me mais um jarro de vinho! Tenho a boca a escaldar!
-    Meu amigo! Não seja por isso! A pipa está cheia! Pode beber à vontade! – disse o tasqueiro engolindo em seco a resposta que não esperava. Logo que chegou atrás do balcão, encheu o jarro e trocou palavras em surdina com uma senhora que estava junto a si que logo a seguir foi entregar o vinho que ele acabara de encher.
Depois de quase duas horas, surgiu aquilo que o tasqueiro nunca imaginara. O tabuleiro estava limpo e o jarro vazio. Vidreiro vencera o primeiro combate. O segundo estava reservado para a digestão de todo aquele excesso de comida e bebida.
Logo a seguir, mal o Vidreiro terminou a refeição, o sexagenário abeirou-se da mesa e em tom provocatório, questionou:
-     E, agora, vai desejar sobremesa?
-     Depende do que tiver!
-     Hoje, só temos mousse de chocolate! – respondeu o tasqueiro.
-    Nesse caso fica sem efeito! Não me dou bem com os doces! Traga-me apenas o café e um bagaço bem cheio. Entretanto, pode fazer a conta que ainda tenho meio-dia de trabalho pela frente.
-   Caro amigo! As contas estão feitas! Hoje, é por conta da casa! Dou-lhes os parabéns! Se de facto for tão bom a trabalhar como é a comer não há obra que lhe resista.
-    Pode crer! Mas eu faço questão de pagar a minha despesa. – insistiu o Vidreiro.
-    Como já lhe disse, hoje a despesa é por minha conta!
-   Nesse caso, obrigado! Mas estava longe de imaginar de que iria comer um almoço à borla. Ah!... Quando voltar a servir favas não se esqueça de me avisar! – disse o Vidreiro no momento da despedida, perante o ar desalentado não só do tasqueiro como, também, dos comparsas que o rodeavam. 
Só quando se levantou é que Vidreiro tomou a verdadeira consciência do exagero em que se metera. A barriga estava a abarrotar e as pernas teimavam em não lhe obedecer. Mas ele era resistente e estava mentalizado para as dificuldades que o esperavam. Não estava em condições de trabalhar, mas também não podia estar parado. O movimento era essencial para fazer a digestão. Assim, por via disso, o resto do dia, não parou de caminhar ao longo de uma artéria secundária para não dar a entender o seu transtorno digestivo. Mas o exagero tinha sido grande e não havia forma de se livrar daquele enfartamento. A barrigada fora de tal ordem que se prolongou até ao meio da tarde do dia seguinte, apesar de não mais ter comido nem bebido.