Em janeiro de 1961, depois de ter cumprido o serviço militar obrigatório, que à data não ia além de seis meses, três de recruta e três de especialidade, Luís Rambóia regressou à Povoação da Portela, localidade de onde nunca havia saído até ser chamado à tropa.
Enquanto permaneceu na aldeia onde nascera, nunca
laborara por conta de outrem devido à escassez de postos de trabalho por toda a
região. E quando algum aparecia era, apenas, para ao abate de pinheiros e
processamento da madeira. Uma forma de ganhar a vida com que ele não se
identificava porque, para além de perigosa e muito esforçada, era mal remunerada.
Em função disso, Luís Rambóia sempre rejeitara as propostas de trabalho, feitas
por madeireiros, por discordar dos baixos salários que aqueles se propunham
pagar. Em contrapartida, auxiliava os seus progenitores no pastoreio de um
pequeno rebanho de caprinos e em algumas tarefas agrícolas. Começava a manhã a ajudar a mãe na ordenha das
cabras que, no final do dia anterior, deixara no aprisco. Depois, soltava o gado para que se alimentasse,
livremente, por montes e vales em pousio. Ainda assim, não perdia o rebanho vista, para evitar que invadisse propriedades de cultivo, vinhedos, pomares, alfobres e hortas. Durante a época das sementeiras,
também se ocupava no amanho de duas courelas que funcionavam no apoio do sustento
familiar. Uma ocupação onde nunca se esforçara, mas que também não lhe dera o necessário
para viver. À mesa, a comida nem sempre abundava, mas agora vinha mentalizado
para lutar por uma vida mais desafogada.
Habituado à vida libertina que levara na
aldeia, ao ser chamado a cumprir o seu dever militar, tivera alguma dificuldade
em se adaptar à instrução de recruta e às regras disciplinares. Discordava das normas do RDM que, na redação dos seus artigos, só lhe impunha deveres. Durante a instrução e após leitura atenta concluíra que os direitos dos soldados não eram contemplados naquele regulamento. Todavia, quando
percebeu de que não tinha outra alternativa senão cumprir o que lhe era
exigido, acabaria, ainda, por colher bons princípios para a sua formação de
homem. Paralelamente a isso, também aprendera de que nunca seria tarde demais
para tentar melhorar a sua vida e que só enfrentando as adversidades o poderia
conseguir.
Assim, movido por alguns valores da escola militar, logo
que regressou ao seio familiar decidiu dedicar-se ao trabalho, com entusiasmo,
mas como não tinha grande escolha optou pela profissão de resineiro. Um
trabalho bastante exigente, mas que, à data, estava a ser bem remunerado devido
ao aumento da procura dos derivados da resina a nível internacional. Então, apressou-se
a fazer uma parceria com o proprietário de uma fábrica resineira que lhe viria
a fornecer o equipamento necessário para começar a renova das sangrias que, normalmente, se iniciava em março. Assim, para
ele, tudo parecia estar a começar bem, no entanto, quando menos esperava, o
rumo da história do país viria a modificar também o curso da sua vida.
Na época, na região, os camponeses digladiavam-se
em busca de uma paveia de mato para estrume e empalho dos milheirais. A procura
era tão grande que nem dava tempo a que, urzes e carquejas, crescessem o
suficiente para roçar. Para além do corte constante, tinham um desenvolvimento
lento provocado pelos de rebanhos de caprinos que se alimentarem dos viços atrasando
assim a medrança. Devido a toda essa busca, as florestas ficavam devidamente limpas
e os incêndios só muito esporadicamente ocorriam. Ainda assim, quando tal
acontecia, eram rapidamente debelados devido à falta de combustível. O corte frequente
dos matos permitia a existência de vastas áreas de pinheiro-bravo com
crescimento ideal para a exploração de madeira e resina. Indústrias que, na
época, eram as únicas empregadoras em todo o interior serrano.
Embora dotado de uma imaginação fértil, Luís
Rambóia era bastante limitado para as letras. Foram necessários seis anos para
concluir a instrução primária e, ainda assim, contara com a boa vontade do
professor que, paralelamente aos castigos que lhe aplicara, tudo fizera para o
ajudar a concluir a quarta classe. Em contrapartida, era fisicamente robusto e,
aparentemente, talhado para o trabalho braçal, embora antes do serviço militar
nunca tivesse dado prova disso. Vivera sempre, num quotidiano de sem
preocupações de maior, na esperança de que, por obra e graça, as suas condições
de vida melhorassem.
Naquele tempo, na aldeia, num ritual que já se
perdia no tempo, depois da missa dominical, os populares reuniam-se a porta da capela
onde participavam no leilão de oferendas em favor do Santo Padroeiro. As
ofertas resultavam de promessas feitas ao Santo em prol de determinados pedidos
que queriam ver realizados. Normalmente, as dádivas materializavam-se nos diversos
produtos endógenos, como derivados da matança do porco, agrícolas e destilados.
De acordo com essa tradição, em março, desse
mesmo ano de 1961, depois da arrematação de duas chouriças e de uma garrafa de
aguardente, algumas pessoas abandonaram a reunião, outras continuaram, por ali
como habitualmente, a trocar impressões sobre os mais variados temas pois,
devido à vida rude que eram forçados a enfrentar, só ao domingo tinham
disponibilidade para dialogar, divertir e até confraternizar.
Então, o recém-chegado militar, que raramente
faltava às celebrações religiosas, aproveitando o dia de descanso e a presença de
dois jovens que brevemente iriam entrar nas sortes, lembrou-se de fantasiar as
peripécias por que passara na tropa, como se de um herói se tratasse. Logo que
achou que as condições estavam reunidas deu início às suas estórias, com tal convicção
que os jovens interessados em saber o que os esperaria num futuro próximo
ficavam impressionados com tais relatos.
Na realidade, nenhuma dessas façanhas, que Rambóia
arengava, correspondia à verdade. A sua passagem pela vida militar fora de
curta duração e nem sequer fora escolhido para uma qualquer especialidade. Para
além de lições de ordem unida, onde mal aprendera a marchar e a manejar uma
espingarda, enquanto soldado pronto, não apanhara castigos, mas também nada fizera
de relevante. Apesar de ter obtido boa pontuação no exercício de tiro, talvez
por desinteresse da formação nessa área, nem tão pouco chegara a ser escolhido
para a especialidade de atirador especial. No entanto, sem saber muito bem
porquê, fora dado como básico. Então, em função dessa desvalorização como
militar, que era mesmo disso que se tratava, acabaria selecionado para o serviço
de faxina à ordem do sargento do rancho e dos cozinheiros. Passou a fazer de
tudo um pouco. Para além de cuidar das pocilgas que funcionavam em apoio ao
rancho, carregava sacaria, descascava batatas, lavava panelas e pratos de
alumínio designados na gíria da soldadesca por discos. Por vezes, as faxinas
até disputavam o número de discos que a cada um competia lavar.
Agora, Luís Rambóia, no meio de uma das suas
estórias, ao verificar que o ti Zé Ricardo se aproximava do seu grupo, tentou mudar de assunto, mas ficou sem palavras e acabaria por se calar. Depois, de forma um pouco embaraçada, levou a
mão ao bolso, pegou numa pequena caixa metálica de onde retirou um pedaço de
capa de milho e tabaco da sua produção, e começou a preparar um cigarro.
O ti Zé Ricardo era de um sexagenário que
residia numa aldeia vizinha, mas que, a pretexto de assistir à missa, costumava
ir à povoação da Portela para conviver com os velhos amigos. Era um homem
experiente e aprimorado pelo o que a vida lhe ensinara enquanto correra mundo
em busca de melhor situação financeira. Para além disso, era um sobrevivente da
primeira guerra mundial. Em junho de 1916, embarcara a caminho do norte de
Moçambique integrado na terceira força enviada por Portugal para fazer frente
aos alemães que avançavam sem oposição pela margem direita do rio Rovuma. Foram
tempos de muitos sacrifícios e dos quais não guardava boas recordações, mas
que, ainda assim, se orgulhava de ter servido a Pátria naquele tempo difícil
para a o país e o mundo. Por todo esse historial de vida o ti Zé Ricardo não se
deixava iludir pelas fantasias do jovem Rambóia e depois das normais saudações entre
os presentes, disse:
-
Oh Luís!? Pelo que percebi, estavas a inventar
estórias!
- É tudo verdade ti Zé! – levou o cigarro à boca,
libertou uma densa baforada de fumo aromático e acrescentou: – não foi como no
seu tempo, mas passei lá dias bem amargurados. – o Zé Ricardo esboçou um
sorriso irónico e retorquiu:
-
Não digas asneiras! Antes de mais toma nota no
que te vou dizer! Vem mesmo a propósito. Acabei de ouvir, na minha telefonia,
que Portugal vai enviar tropas para Angola. Parece que os massacres não têm parado
de aumentar.
-
Olhe a sorte que eu tive, em já ter passado à
disponibilidade! – respondeu o Luís Rambóia, soltando uma gargalhada.
-
Não tenho assim tanta certeza!
-
Era só o que faltava que me voltassem a chamar!?
- Eu, no teu lugar, começava já a preparar mala! – rematou Zé Ricardo, que nesse momento se afastou para cumprimentar João Silva que, entretanto, terminara o leilão das oferendas, como habitualmente o fazia. Aquele que, para além de amigo e camarada em algumas etapas da vida, era, também, outro sobrevivente da primeira Guerra Mundial em Moçambique.
Naquele tempo, as notícias demoravam a chegar
ao interior. Os jornais só esporadicamente lá chegavam e a telefonia estava
reservada aos mais abastados que já possuíam nas suas casas corrente elétrica.
Uma regalia que, na aldeia da Portela, só agora se começava a implementar. Portanto,
com essas barreiras à informação, dificilmente se poderia saber o que se
passava no mundo. Então, quando se falava de um tema importante, havia que
tentar obter informações por todos os meios possíveis.
Depois daquele diálogo que o preocupou, Luís
Rambóia esqueceu as suas estórias e limitou-se a dizer:
- Venham comigo! Vamos ouvir o noticiário no
rádio do carro do ti Manuel Madeireiro.
Assim, os dois jovens que o
escutavam concordaram em o acompanhar, partindo a caminho da garagem, local
onde a viatura se encontrava parqueada. Logo que ali chegaram, Rambóia sintonizou
a telefonia na onda média da Emissora Nacional à espera de novidades que os pudessem
inteirar da decisão governamental. Aliás, fora no rádio daquela viatura que se
habituara a ouvir as crónicas dos correspondentes da Emissora Nacional
espalhados pelo mundo, principalmente, a partir de 22 janeiro de 1961, aquando
do assalto ao paquete de Santa Maria, em águas venezuelanas. Um sequestro com
motivação política, que se prolongara até ao início de fevereiro no porto
brasileiro do Recife e, que viria a causar um duro golpe no regime de Salazar,
lançando os alicerces para a Guerra Colonial.
Depois, a curiosidade pelas notícias, continuara,
não só com o regresso do barco de Santa Maria a Lisboa, como ainda, com as
crónicas de Ferreira da Costa relatando a sublevação de trabalhadores em Angola
que munidos de catanas e canhangulos, destruíam casas e plantações de algodão. E
agora, em março, com o relato de massacres contra a população branca e os
operários que para ela trabalhavam.
Depois de confirmada a notícia do embarque eminente
dos primeiros militares para Angola, um dos jovens comentou:
-
Oh Rambóia! Também acredito que vais ser
chamado!
- Isso é que era bom! Eu já fiz bem a minha
parte! Agora é a vossa vez. – respondeu o Rambóia com cara de poucos amigos.
Mas, ainda mal tinham terminado aquele diálogo
quando surgiu uma patrulha da Guarda com uma notificação para que o Luís
Rambóia se apresentasse, urgentemente, na sua Unidade Militar.
Passados oito dias, aquele embarcou no Paquete Niassa
a caminho de Angola triste e desalentado. Partia para um palco de guerra sem a indispensável
formação militar. Nem física, nem técnica e muito menos psicológica.
Enfim…ficava entregue à sua sorte e assim, para além de ter perdido a liberdade,
todos os seus projetos de vida ficariam adiados.
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