Por volta das oito horas da manhã, escutámos a
equipa de carcereiros num sussurro indecifrável como se estivesse a preparar
uma estratégia de última hora. De repente, a porta da cela abriu-se e a
crueldade dos captores atingiu-nos com frases cínicas que acompanhavam com
sorrisos provocadores:
- Espero que tenham gostado da estadia! Gostaram
do nosso hotel? Voltem sempre!... Ah, agradeçam ao vosso chefe, senão ficavam
cá mais algum tempo!
- Inesquecível! Então é este o vosso respeito
pelos mais antigos? – disse, enquanto me afastava tentando fugir às provocações
que poderiam vir a ter um desfecho trágico. Afinal, ainda tínhamos uma missão
para terminar.
Ao por
do sol, desse mesmo dia, dávamos entrada no quartel de Malange com a missão
cumprida.
Tudo começara, quando passavam três meses após
a revolução de Abril e a minha secção fora escalada para efetuar a escolta a
um transporte de material de guerra de Malange para Luanda, mais concretamente,
para o depósito militar do Grafanil. À mistura com material obsoleto, o
carregamento era constituído, na sua maioria, por peças em perfeito estado de
utilização que, devido ao anunciado fim das confrontações armadas, deixava de
ser necessário nas linhas mais avançadas. Embora, na prática, ainda se
registassem, pontualmente, pequenas escaramuças, - sobretudo no final dos
comícios “ditos de pacificação”, mas que na realidade apenas criavam crispação promovido por agitadores - já existia uma relativa acalmia por todo o território. Em função desse desanuviamento
beligerante, agora era o tempo de reunir o espólio bélico para entregar no anunciado
render da guarda e, mais dia, menos dia, partir com o rabo entre as pernas, deixando os soldados, ao Deus dará e, ao livre arbítrio dos vencedores. Ou seja, ao salve-se quem puder, como infelizmente se viria a verificar.
Assim, por volta das oito horas, animados por
boatos que davam como certo o nosso regresso antecipado à metrópole, demos
início à missão, com as indispensáveis preocupações de segurança. Desde logo,
pela natureza do transporte e depois, porque a paz ainda não era uma garantia
assumida por todas as partes envolvidas sendo que, de um momento para o outro,
tudo se poderia complicar. Todavia, para além do calor sufocante com que nos
deparámos, mais intenso entre o Alto Dondo e Salazar, a viagem foi decorrendo
sem surpresas embora com as indispensáveis paragens para logística. Ao final da
tarde, cansados pela distância, pelo desconforto do veículo e alagados em suor,
chegámos ao destino sem que nada de grave nos tivesse acontecido.
O quartel do Grafanil estendia-se por uma vasta
área geográfica e era um local por onde passavam quase todos os militares
mobilizados para Angola. Em função da sua dimensão, buscámos de arrecadação em
arrecadação e quando acertámos com o local de entrega, para o equipamento que
transportávamos, o mesmo já se encontrava encerrado, o que nos obrigaria a
adiar a descarga para o dia seguinte. Ali, a guerra também tinha horário de
funcionamento o que não era o caso de quem fora mobilizado para o mato que
estava de serviço em permanência, vinte e quatro horas por dia, trezentos e
sessenta e cinco dias por ano.
A maior parte dos militares que me
acompanhavam, depois da partida para o interior, já lá iam dezasseis meses, nunca mais tinha voltado a
Luanda. Em função disso, tive a insensatez de sugerir:
- E se fossemos até à cidade beber uma cerveja!? –
disse, mesmo sabendo que não era permitido frequentar qualquer local da cidade com
uniforme militar e nenhum de nós ali dispunha de roupa civil.
- Vamos embora! – responderam, em uníssono os
militares, indiferentes ao que daí pudesse resultar.
Em função da unanimidade concordante não
pensámos duas vezes. Estávamos a precisar de um momento de diversão ainda que
fosse, apenas, para beber uma caneca de cerveja. Assim, depositámos o armamento
pessoal no armeiro de serviço, pegámos no unimog e arrancámos, desarmados, em
direção à porta de armas onde, só depois de detalhadas justificações, uma das sentinelas
se decidiu a levantar a cancela. Vencido o primeiro obstáculo, ali estava a juventude
faminta de liberdade, tentando, quanto possível, fugir aos regulamentos
militares, ao isolamento, à violência das picadas e ao stress com que era
confrontada diariamente.
Naquele fim de tarde e debaixo de um calor
tórrido, passámos por vários locais onde poderíamos usufruir do tão desejado
aconchego de uma loira gelada. Mas o nosso destino era o coração de Luanda onde
a cidade fervilhava de vida e a cerveja parecia ter um sabor mais aveludado. Na
esplanada da Portugália, os civis, brancos e negros, deambulavam irmanados de
aparente concórdia. Ali, até então, nunca chegara a guerra. Mas, para nós
militares, era o único sítio, em toda a cidade, onde não nos era permitido
parar porque estava permanentemente vigiado pela polícia militar. E mesmo
trajando à civil não era garantia de não se ser incomodado.
Quando chegámos ao local não vislumbrámos, por
entre o arvoredo, qualquer elemento da PM e parámos a viatura no único lugar disponível
junto à esplanada. Até parecia estar propositadamente reservado para nós. Logo
que abandonámos o unimog, abeirei-me do bar e solicitei oito canecas de cerveja
com a finalidade de demorarmos o mínimo indispensável. Um jovem, funcionário da
cervejaria, que estava de serviço à esplanada, quando nos viu com farda
operacional, olhou-nos de soslaio mostrando um sorriso irónico de quem já
soubesse no que a nossa presença iria resultar. Talvez por isso, pareceu não
ligar ao pedido, só após a minha insistência se apressou a encher as
canecas. Entretanto, e enquanto eu tirava uma nota de cinquenta escudos da
carteira, para pagar a despesa, fui abordado por um cambista que, sem meias
palavras, me questionou se tinha dinheiro português para cambiar pelo escudo angolano, que fazia o
câmbio a trezentos por cento, ao que respondi negativamente. Enquanto me ocupava com o negociante, os restantes militares foram bebendo à medida que os copos
iam ficando cheios. Quando chegou a minha vez, agarrei na caneca, mas,
imediatamente antes de a levar à boca, fui interpelado por um elemento da polícia
militar que ali surgiu repentinamente. Aquele, para além de me tentar impedir de beber, chamou outro com o
posto de furriel que de imediato atirou de voz altiva:
- Então, o nosso furriel não sabe que não é
permitido andar com uniforme camuflado na rua.
- Oh militar! Estamos a chegar do mato! É só
beber a cerveja e já vamos embora para o Grafanil. - respondi de copo na mão.
- Aqui estamos na cidade! Nem sequer permito que
bebam a cerveja. Estão todos presos! – atirou, de semblante franzido, o zeloso
militar que parecia querer mostrar serviço aos novos camaradas. Tratava-se de
um maçarico de barba mal semeada que concluíra recentemente o doutoramento e já
se sentia imbuído das novas doutrinas progressistas. Era a elite libertadora no seu melhor. Depois,
quando olhei à minha volta, reparei que estávamos cercados por vários PMs. No
meio de tanta hostilidade depreendi que apenas quisessem agradar aos militantes
do futuro regime, diluídos na multidão que nos rodeava e que assistia com aparente indiferença ao desenrolar do nosso diálogo.
-
Oh militar!? Esquece a prisão que nós já andamos
saturados e não queremos mais complicações. – disse eu, pensando que tudo se
resolveria a bem.
-
Não! Agora, vão sob prisão para o quartel! E
não nos obriguem a usar a força?
- Está bem! Se é assim que queres, não vamos comprar
mais guerras que a nossa já vai longa! Apenas aguardamos, ansiosamente, pelo
regresso a casa. – respondi, ciente de que eles estavam armados e todos pareciam dotados
de boa robustez física. Ao mesmo tempo, deduzi que não podia esperar
compreensão de quem parecia embriagado pelo sonho libertador e não olhava a meios para atingir os fins. Assim, entreguei
a nota ao empregado do bar, dizendo para se pagar da despesa e ficar com o
troco. Depois, acatei a ordem de prisão com a resignação de quem não tinha
outra alternativa. Era a onda revolucionária a querer agradar aos futuros camaradas.
Então, como verdadeiros criminosos, seguimos no nosso unimog, escoltados por
dois veículos da PM, um à frente e outro à retaguarda, a caminho do presídio. No
entanto, durante a viagem, ainda acreditei que se tratasse, apenas, de uma
brincadeira de mau gosto. Mas não. Era mesmo para levar a sério.
Quando chegámos ao presídio a luz solar já se havia esgotado. Como nos palcos operacionais, com a proximidade da noite crescia a nossa ansiedade e sensação de impotência
perante a intolerância gratuita que espezinha o mais vulnerável. Tomaram nota
da nossa identificação e logo a seguir, no meio de uma troca de palavras azedas,
de parte a parte, depositaram-nos, todos na mesma cela, como escória criminosa, sem sequer
ter direito à refeição do jantar. Afinal era aquele o tratamento que os
libertadores tinham reservado aos veteranos que, para eles, não passavam da face podre do regime deposto. Era a inversão total de valores.
- Agora
é assim e quando vocês se forem embora, como será? Pelo desprezo a que somos votados e o caminho que as coisas
estão a levar será o fuzilamento!? – questionou o Adão, um camarada negro, amigo do peito, que pertencia
à minha secção. Uma questão para a qual não tínhamos resposta, mas se para nós,
continentais, não estava fácil, mas para os nossos camaradas, militares naturais de
Angola, as perspetivas de futuro também não eram animadoras. Situação que, infelizmente, passado pouco tempo, se viria a confirmar como a dieta dos libertadores para calar os veteranos.
Foi uma noite longa e penosa. A nossa mente
fervilhava numa angústia sem fim. Também na selva tínhamos passado noites
difíceis, de permanente insónia, mas nenhuma tão profundamente revestida de ingratidão, como a que estávamos
a viver. Amontoados no chão, sem a mais elementar tarimba para descansar o
esqueleto desgastado pela já longa servidão, devorámos cigarro após cigarro,
como se isso nos ajudasse a expurgar os maus intentos que não nos davam sossego.
Mas era difícil calar a indignação. Para o ego dos captores, fora uma
extraordinária façanha. Mas para nós não passava de uma severa humilhação. Em
função disso, não foi fácil controlar a nossa vontade retaliativa.
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