sábado, 27 de fevereiro de 2021

A NOITE MAIS LONGA

 

Por volta das oito horas da manhã, escutámos a equipa de carcereiros num sussurro indecifrável como se estivesse a preparar uma estratégia de última hora. De repente, a porta da cela abriu-se e a crueldade dos captores atingiu-nos com frases cínicas que acompanhavam com sorrisos provocadores:

-  Espero que tenham gostado da estadia! Gostaram do nosso hotel? Voltem sempre!... Ah, agradeçam ao vosso chefe, senão ficavam cá mais algum tempo!

-    Inesquecível! Então é este o vosso respeito pelos mais antigos? – disse, enquanto me afastava tentando fugir às provocações que poderiam vir a ter um desfecho trágico. Afinal, ainda tínhamos uma missão para terminar.

Ao por do sol, desse mesmo dia, dávamos entrada no quartel de Malange com a missão cumprida.

 

Tudo começara, quando passavam três meses após a revolução de Abril e a minha secção fora escalada para efetuar a escolta a um transporte de material de guerra de Malange para Luanda, mais concretamente, para o depósito militar do Grafanil. À mistura com material obsoleto, o carregamento era constituído, na sua maioria, por peças em perfeito estado de utilização que, devido ao anunciado fim das confrontações armadas, deixava de ser necessário nas linhas mais avançadas. Embora, na prática, ainda se registassem, pontualmente, pequenas escaramuças, - sobretudo no final dos comícios “ditos de pacificação”, mas que na realidade apenas criavam crispação promovido por agitadores - já existia uma relativa acalmia por todo o território. Em função desse desanuviamento beligerante, agora era o tempo de reunir o espólio bélico para entregar no anunciado render da guarda e, mais dia, menos dia, partir com o rabo entre as pernas, deixando os soldados, ao Deus dará e, ao livre arbítrio dos vencedores. Ou seja, ao salve-se quem puder, como infelizmente se viria a verificar.

Assim, por volta das oito horas, animados por boatos que davam como certo o nosso regresso antecipado à metrópole, demos início à missão, com as indispensáveis preocupações de segurança. Desde logo, pela natureza do transporte e depois, porque a paz ainda não era uma garantia assumida por todas as partes envolvidas sendo que, de um momento para o outro, tudo se poderia complicar. Todavia, para além do calor sufocante com que nos deparámos, mais intenso entre o Alto Dondo e Salazar, a viagem foi decorrendo sem surpresas embora com as indispensáveis paragens para logística. Ao final da tarde, cansados pela distância, pelo desconforto do veículo e alagados em suor, chegámos ao destino sem que nada de grave nos tivesse acontecido.

O quartel do Grafanil estendia-se por uma vasta área geográfica e era um local por onde passavam quase todos os militares mobilizados para Angola. Em função da sua dimensão, buscámos de arrecadação em arrecadação e quando acertámos com o local de entrega, para o equipamento que transportávamos, o mesmo já se encontrava encerrado, o que nos obrigaria a adiar a descarga para o dia seguinte. Ali, a guerra também tinha horário de funcionamento o que não era o caso de quem fora mobilizado para o mato que estava de serviço em permanência, vinte e quatro horas por dia, trezentos e sessenta e cinco dias por ano.  

A maior parte dos militares que me acompanhavam, depois da partida para o interior, já lá iam dezasseis meses, nunca mais tinha voltado a Luanda. Em função disso, tive a insensatez de sugerir:

-   E se fossemos até à cidade beber uma cerveja!? – disse, mesmo sabendo que não era permitido frequentar qualquer local da cidade com uniforme militar e nenhum de nós ali dispunha de roupa civil.

-   Vamos embora! – responderam, em uníssono os militares, indiferentes ao que daí pudesse resultar.

Em função da unanimidade concordante não pensámos duas vezes. Estávamos a precisar de um momento de diversão ainda que fosse, apenas, para beber uma caneca de cerveja. Assim, depositámos o armamento pessoal no armeiro de serviço, pegámos no unimog e arrancámos, desarmados, em direção à porta de armas onde, só depois de detalhadas justificações, uma das sentinelas se decidiu a levantar a cancela. Vencido o primeiro obstáculo, ali estava a juventude faminta de liberdade, tentando, quanto possível, fugir aos regulamentos militares, ao isolamento, à violência das picadas e ao stress com que era confrontada diariamente.

Naquele fim de tarde e debaixo de um calor tórrido, passámos por vários locais onde poderíamos usufruir do tão desejado aconchego de uma loira gelada. Mas o nosso destino era o coração de Luanda onde a cidade fervilhava de vida e a cerveja parecia ter um sabor mais aveludado. Na esplanada da Portugália, os civis, brancos e negros, deambulavam irmanados de aparente concórdia. Ali, até então, nunca chegara a guerra. Mas, para nós militares, era o único sítio, em toda a cidade, onde não nos era permitido parar porque estava permanentemente vigiado pela polícia militar. E mesmo trajando à civil não era garantia de não se ser incomodado.

Quando chegámos ao local não vislumbrámos, por entre o arvoredo, qualquer elemento da PM e parámos a viatura no único lugar disponível junto à esplanada. Até parecia estar propositadamente reservado para nós. Logo que abandonámos o unimog, abeirei-me do bar e solicitei oito canecas de cerveja com a finalidade de demorarmos o mínimo indispensável. Um jovem, funcionário da cervejaria, que estava de serviço à esplanada, quando nos viu com farda operacional, olhou-nos de soslaio mostrando um sorriso irónico de quem já soubesse no que a nossa presença iria resultar. Talvez por isso, pareceu não ligar ao pedido, só após a minha insistência se apressou a encher as canecas. Entretanto, e enquanto eu tirava uma nota de cinquenta escudos da carteira, para pagar a despesa, fui abordado por um cambista que, sem meias palavras, me questionou se tinha dinheiro português para cambiar pelo escudo angolano, que fazia o câmbio a trezentos por cento, ao que respondi negativamente. Enquanto me ocupava com o negociante, os restantes militares foram bebendo à medida que os copos iam ficando cheios. Quando chegou a minha vez, agarrei na caneca, mas, imediatamente antes de a levar à boca, fui interpelado por um elemento da polícia militar que ali surgiu repentinamente. Aquele, para além de me tentar impedir de beber, chamou outro com o posto de furriel que de imediato atirou de voz altiva:

-  Então, o nosso furriel não sabe que não é permitido andar com uniforme camuflado na rua.

-    Oh militar! Estamos a chegar do mato! É só beber a cerveja e já vamos embora para o Grafanil. - respondi de copo na mão.

-     Aqui estamos na cidade! Nem sequer permito que bebam a cerveja. Estão todos presos! – atirou, de semblante franzido, o zeloso militar que parecia querer mostrar serviço aos novos camaradas. Tratava-se de um maçarico de barba mal semeada que concluíra recentemente o doutoramento e já se sentia imbuído das novas doutrinas progressistas. Era a elite libertadora no seu melhor. Depois, quando olhei à minha volta, reparei que estávamos cercados por vários PMs. No meio de tanta hostilidade depreendi que apenas quisessem agradar aos militantes do futuro regime, diluídos na multidão que nos rodeava e que assistia com aparente indiferença ao desenrolar do nosso diálogo.

-         Oh militar!? Esquece a prisão que nós já andamos saturados e não queremos mais complicações. – disse eu, pensando que tudo se resolveria a bem.

-         Não! Agora, vão sob prisão para o quartel! E não nos obriguem a usar a força?

-        Está bem! Se é assim que queres, não vamos comprar mais guerras que a nossa já vai longa! Apenas aguardamos, ansiosamente, pelo regresso a casa. – respondi, ciente de que eles estavam armados e todos pareciam dotados de boa robustez física. Ao mesmo tempo, deduzi que não podia esperar compreensão de quem parecia embriagado pelo sonho libertador e não olhava a meios para atingir os fins. Assim, entreguei a nota ao empregado do bar, dizendo para se pagar da despesa e ficar com o troco. Depois, acatei a ordem de prisão com a resignação de quem não tinha outra alternativa. Era a onda revolucionária a querer agradar aos futuros camaradas. Então, como verdadeiros criminosos, seguimos no nosso unimog, escoltados por dois veículos da PM, um à frente e outro à retaguarda, a caminho do presídio. No entanto, durante a viagem, ainda acreditei que se tratasse, apenas, de uma brincadeira de mau gosto. Mas não. Era mesmo para levar a sério.

Quando chegámos ao presídio a luz solar já se havia esgotado. Como nos palcos operacionais, com a proximidade da noite crescia a nossa ansiedade e sensação de impotência perante a intolerância gratuita que espezinha o mais vulnerável. Tomaram nota da nossa identificação e logo a seguir, no meio de uma troca de palavras azedas, de parte a parte, depositaram-nos, todos na mesma cela, como escória criminosa, sem sequer ter direito à refeição do jantar. Afinal era aquele o tratamento que os libertadores tinham reservado aos veteranos que, para eles, não passavam da face podre do regime deposto. Era a inversão total de valores. 

-       Agora é assim e quando vocês se forem embora, como será? Pelo desprezo a que somos votados e o caminho que as coisas estão a levar será o fuzilamento!? – questionou o Adão, um camarada negro, amigo do peito, que pertencia à minha secção. Uma questão para a qual não tínhamos resposta, mas se para nós, continentais, não estava fácil, mas para os nossos camaradas, militares naturais de Angola, as perspetivas de futuro também não eram animadoras. Situação que, infelizmente, passado pouco tempo, se viria a confirmar como a dieta dos libertadores para calar os veteranos.

Foi uma noite longa e penosa. A nossa mente fervilhava numa angústia sem fim. Também na selva tínhamos passado noites difíceis, de permanente insónia, mas nenhuma tão profundamente revestida de ingratidão, como a que estávamos a viver. Amontoados no chão, sem a mais elementar tarimba para descansar o esqueleto desgastado pela já longa servidão, devorámos cigarro após cigarro, como se isso nos ajudasse a expurgar os maus intentos que não nos davam sossego. Mas era difícil calar a indignação. Para o ego dos captores, fora uma extraordinária façanha. Mas para nós não passava de uma severa humilhação. Em função disso, não foi fácil controlar a nossa vontade retaliativa.

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