Naquele dia, Joaquim
Melro, depois de bem almoçado, saiu à rua, acendeu um cigarro e partiu com a intenção de se dirigir ao local
onde estacionara o carro. Porém, durante o percurso, deparou-se com o compadre
Ricardo que estava sentado à porta da adega, saboreando a sombra da latada que
envolvia o edifício, e como normalmente acontecia Joaquim parou para o cumprimentar. Ricardo
levantou-se, estendeu-lhe a mão e depois da normal saudação disse em voz bem
audível:
─ Compadre! Ainda bem que aparece! Acabei de abrir uma pipa e estava
precisamente à sua espera para provar a pinga!
A tarde estava
quente, mas os dois sexagenários não precisavam de qualquer pretexto para
refrescar a garganta com um copo de tinto. Mas aqui, Melro não anuiu
prontamente ao convite como seria o normal a esperar. Cofiou o bigode,
pensativo, como se fizesse uma análise ao seu historial de tintos e só depois disse:
─ Compadre!... Não me leve a mal, mas hoje almocei bem e bebi melhor! Acho
que até já ultrapassei o meu limite! – ao mesmo tempo e enquanto falava ia-se
aproximando da porta da adega.
─ Deixe-se de filosofias, homem!... Venha daí e vamos provar o vinho! –
teimou o Ricardo.
─ Bem!... já que tanto insiste, vamos a isso!
Assim que
entraram na adega, Ricardo apressou-se a encher um copo e entregou-o ao Joaquim Melro que, de imediato, o levou à boca e foi sorvendo em pequenos goles como se de um enólogo se tratasse. No
intervalo de cada gole, mascava como se analisasse os extratos do néctar.
Enquanto ele saboreava o vinho, o compadre observava-o, atentamente, à espera
de um parecer entendido e no final questionou:
─
Então que tal?
─ Este palheto é muito aveludado, mas hoje o meu paladar não está,
suficientemente, apurado para analisar vinho. Talvez depois de beber mais um
copito ou dois lhe possa dar uma opinião mais avalizada!
─
Não seja por isso, compadre! Caramba, a pipa está cheia!
─ Pois!... Mas não posso abusar! Sabe que está na hora de travar os
apressados e não vá a minha missão altruísta virar pesadelo…
Após a reforma,
Melro descobriu um processo invulgar de ocupar o tempo. Como discordava da velocidade
que o trânsito fluía na estrada nacional resolveu colocar em prática um
método para tentar impor alguma moderação à circulação automóvel. Assim, passou
a fazer o percurso várias vezes ao dia, no seu carro, a partir da povoação onde
vivia, até à entrada da cidade e vice-versa, numa distância aproximada de quatro quilómetros. A marcha que utilizava era tão lenta que só muito raramente
chegava aos trinta quilómetros hora, estimulando, deste modo, a paciência de
muitos condutores. Mentalizou-se que, com a sua
intervenção, para além do divertimento pessoal, prestava um bom serviço à
comunidade local, servida por aquela via.
─ Ah!... Então é por causa disso que o compadre Melro hoje está esquipático?
Deixe essa tarefa às autoridades que é para isso que pagamos impostos!
─
Vossemecê fala bem! – fez uma pausa para acender um cigarro, libertou uma
densa baforada e continuou: – Com os políticos não podemos contar que só se preocupam em tratar dos seus próprios interesses. A polícia raramente cá passa e ninguém quer saber
da nossa segurança. Eu ainda nem sei para que servem os limites de velocidade
de 50 Km/hora, quando eles passam aqui a mais de 100! Até estou admirado como é
que aqui ainda não ocorreram acidentes.
─ Pois!... Mas tenha cuidado! Olhe que eu já ouvi comentários muito
desfavoráveis à sua pessoa, sabe que aquilo a que chama missão altruísta
perturba a vida a muita gente.
─
Francamente, não me diga que também está do lado deles! Olhe que eu não
esperava isso de si!
─ Oh Melro! Parece que me conhece há dois dias! Eu apenas o estou a aconselhar.
Nunca se sabe quando aparece algum diabo capaz de lhe dar uma “cachaporrada”.
Vontade parece que não lhes falta! Bom!... Deixemos isso e vamos beber mais um
tinto que como este o compadre bebe pouco!
─ É melhor é! A conversa deu-me securas –
disse Melro forçando um sorriso. Esperou que Ricardo enchesse os copos e de
seguida bebeu o seu de um só trago e no final exclamou: – Parabéns compadre!
Este merecia ser premiado com a medalha de ouro!
─
Se o Melro o diz!
─ É muito bom! Mas voltando ao assunto!... Ai daquele que me tente agredir
que não perde pela demora. Era só o que faltava, proibirem-me de transitar na
via pública as vezes que eu quiser!
─ A discordância deles reside apenas na velocidade, muito lenta, que
vossemecê imprime ao seu carro, que provoca a ira de alguns automobilistas. Sabe
muito bem que, em mais de quatro quilómetros, é proibido ultrapassar! – disse
Ricardo, enquanto voltava a encher os copos.
─ Paciência! O meu carro, que agora apelidam de papa-reformas, não dá mais de 30 Km/hora, quem tiver pressa
que se vá queixar ao construtor – interrompeu a fala para beber mais um tinto e
no final, com visível ansiedade, acrescentou: – Até já, compadre Ricardo! Agora, vou dar a volta ao
percurso e no regresso, se cá estiver, bebo mais um copo!
Assim, já bem
bebido, Joaquim Melro ocupou o lugar ao volante do seu carro e abalou deleitado
para mais um dos seus passeios. Logo que entrou na estrada nacional, em direção à cidade,
foi brindado por uma buzinadela de um transeunte já familiarizado com aquela
habitual marcha lenta que o forçava a uma penitência cansativa. Mas as
contestações não desalentavam Melro, antes pelo contrário, extravasava até um
certo divertimento, face aos protestos evidenciados pelos condutores, através
de gestos e graçolas.
Logo que terminou
a primeira parte da viagem, antes de inverter o sentido de marcha, decidiu
parar para comprar tabaco. Despreocupado, estacionou o carro da forma que lhe
pareceu mais cómoda e entrou no café. Quando se abeirava do balcão notou que,
tinha bebido em excesso, estava a ficar tonto, sentou-se, pediu um café e ficou
a aguardar que as suas faculdades lhe permitissem regressar a casa.
Meia hora mais
tarde, sentiu-se melhor e resolveu retomar o seu itinerário. No entanto, quando chegou
junto ao carro, verificou que este havia sido vandalizado. Tinha várias manchas
de tinta escura por toda a estrutura que contrastavam nitidamente com a cor
branca, original da viatura. Não se cansou de protestar a plenos polmões, mas como não obteve resposta ocupou o lugar ao
volante sem se lembrar mais do motivo que o levara ali e partiu de tal modo
perturbado que espevitou o carro até aos setenta quilómetros hora, que era a
velocidade máxima que na realidade atingia. Contudo, a determinada altura, ao
entrar numa curva, carregou no pedal do acelerador em vez de acionar o travão e
entrou em despiste de encontro a uma barreira. Ainda assim, para além de danos
materiais avultados, saiu fisicamente ileso. No entanto, quando abandonava o
habitáculo, parou junto a si um carro da polícia.