Quando nos deslocávamos de automóvel, com
destino ao porto de Peniche, fomos informados de que o mar estava bastante agitado
e de que não haveria, certamente, condições para a nossa habitual pescaria. Pelo
teor da informação, concluímos que o nosso passeio quinzenal, rumo às ilhas Berlengas
e Farilhões, estava em vias de não se concretizar. Mas, apesar disso,
continuámos a viagem na esperança de que a ondulação, entretanto, amainasse e de
que o barco pudesse deixar a barra. Que diabo, depois de uma noite perdida e
uma viagem tão longa, com o pensamento nos cardumes que habitavam aquelas
paragens, também merecíamos melhor sorte! Contudo, já não era a primeira vez
que ficávamos em terra. Noutras ocasiões, fomos também surpreendidos por
contrariedades semelhantes.
Naquela madrugada de setembro, chegámos ao cais
por volta das cinco horas. Fazia algum vento e o céu estava estrelado. A maré
estava na vazante e, aparentemente, a agitação marítima, dentro do porto,
parecia normal. Por aquilo que nos era dado analisar nada parecia indiciar
algo de anormal, mas os responsáveis pela embarcação eram experientes marinheiros e tinham outra opinião.
Depois de quase uma hora de espera e argumentação insistente com o mestre da embarcação, acabámos por colocar todo o material logístico a
bordo. E, enquanto se procedia ao sorteio dos pesqueiros, reforçámos a dose de
comprimidos anti enjoo para a eventualidade das coisas se complicarem. O
sorteio tinha como objetivo evitar disputas pelos considerados melhores
lugares, atendendo a que os doze pesqueiros disponíveis na embarcação tinham
características de comodidade diferentes. No entanto, tudo dependia das
correntes marítimas. Assim, logo que cada um ocupou a posição que lhe calhou em
sorte, o navio desamarrou dando início à viagem.
Quando deixámos
a barra, o dia ainda não estava totalmente claro, mas a ondulação começava a
mostrar as suas garras. Contudo, logo que avançámos mar dentro, o vento
aumentou e a ondulação tornou-se mais violenta. Só nesse momento, reconhecemos
as agruras que nos estavam reservadas nesse dia. À medida que o barco sulcava as
ondas, o convés ia sendo invadido por constantes enxurradas, que nos forçaram a
procurar refúgio no espaço exíguo da cabina de pilotagem. Entretanto, com a
turbulência a aumentar, começaram a surgir indisposições e alguns companheiros
desceram a escadaria para se acomodarem no porão nos aposentos reservados aos
tripulantes. Um sinal de desistência perante a adversidade, como era frequente
ouvir dos mais resistentes, atendendo a que, como era costume, quem se
acomodava no porão só de lá saía quando o navio atracava. Pelo meu lado, lá fui
resistindo como pude, junto ao piloto partilhando o compartimento com os outros
pescadores, onde nem sequer tínhamos espaço para mudar os pés.
Ao fim de quase uma hora de viagem, ainda sem
terra à vista, a sonda indicou a presença de um cardume e de imediato soou a
ordem para lançar a âncora para se dar início à pescaria. Em dias de ondulação
normal, numa situação idêntica, não havia mãos a medir para iscar e tirar
peixe. Agora, assim que a embarcação fundeou, tudo se alterou para pior. Os
pescadores, eu incluído, não resistiram ao baloiçar constante, em todas as direções.
Os movimentos eram de tal forma violentos e descoordenados que não havia modo
de apaziguar a revolta rapidamente instalada no estômago de cada um. Lembrava
uma interminável incontinência de bêbedos. A todo aquele transtorno orgânico, nem
sequer escaparam os dois elementos da tripulação. Perante um cenário tão
sombrio, questionei os companheiros se não teria havido engano nos comprimidos
anti enjoo, mas nenhum deles me soube responder. Então, lembrei-me de um velho
amigo, que me acompanhou noutras jornadas de pesca no porto da Figueira da Foz, que antes de deixar a barra, tomava
sempre um cálice de vinho generoso, vulgarmente chamado de vinho do Porto, alegando ser o melhor antídoto contra a
indisposição. Coincidência ou talvez não, ele nunca enjoava e regressava ao
porto, sempre de semblante risonho, independentemente da agitação que se
fizesse sentir.
Agora, o mais novato naquelas andanças
implorou desesperado que o levassem para terra firme. Mas tal não viria a
acontecer por falta de unanimidade na decisão. Uns alegavam que não era fácil
encontrar cardumes como aquele e que logo que o navio estabilizasse a situação
melhorava. Outros aconselhavam-no a que olhasse apenas em direção ao infinito e
que assim iria facilmente ultrapassar o enjoo.
De facto, era indescritível a sensação de
fragilidade e impotência que sentíamos perante a natureza adversa com que nos
confrontávamos. Estávamos perdidos algures no meio do oceano dentro de uma
casca de noz que adornava para todos os lados e rodeados de ondas impiedosas
que, a cada momento, ameaçavam engolir a embarcação. Durante cerca de uma hora
em que permanecemos naquele calvário dançante não consegui sequer preparar o material
para dar início à pesca. Fiquei de tal forma perturbado que a minha luta se
limitava a tentar controlar a indisposição que teimava em não me abandonar. Depois
de cada vómito, ia ingerindo mais uma golada da minha reserva de água mineral
tentando evitar que as entranhas me saíssem pela boca. Quando esgotei as duas
garrafas de litro e meio, fui forçado a recorrer ao vinho que levava para
acompanhar o almoço. O mais novato mergulhou também no porão de onde só viria a
sair à noite aquando do nosso regresso ao porto de Peniche. Apesar de todos os
meus contratempos, ainda presenciei o comportamento de alguns resistentes que, após
cada lançamento faziam uma pausa para vomitar e, logo a seguir içavam para
bordo o peixe que entretanto picara. Cenas quase inacreditáveis, que se foram
repetindo ao longo daquela manhã atribulada.
Logo que o piloto concluiu que a situação
estava a piorar, mandou içar a âncora e rumámos às Berlengas em busca da tão
desejada terra firme. Assim que o navio atracou cada um procurou acomodar-se de
modo a tentar recuperar-se do desgaste sofrido. Quem parecia não estar pelos
ajustes eram as gaivotas que, em voos rasantes e ameaçadores, nos queriam
impedir de descansar sobre as rochas nuas.
Depois de duas horas de descanso e de um
pequeno lanche, para tentar estabilizar o organismo, a ondulação acalmou
ligeiramente e acabámos por voltar ao baloiço no mar. A viagem foi curta. O navio
acabaria por fundear perto do Forte de S. João Batista onde, abrigados do
vento, pescámos exemplares de várias espécies e ali nos mantivemos até perto do
fim do dia.
Por volta das dezoito horas, regressamos ao
porto sem que nada de mais grave nos tivesse acontecido. O mais novato, que
entretanto deixou as catacumbas do navio, não parecia o mesmo homem. Vinha completamente
desfigurado. Lembrava um infeliz que acabara de deixar as masmorras da tortura.
Quando chegou junto dos companheiros, apenas pronunciou a sua intenção de não repetir
a experiência. Também para mim foi um dia complicado. Depois de pisar terra
firme, o meu corpo parecia baloiçar, como se continuasse em alto mar.
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