Naquela noite
de novembro de 1920, Acácio Mineiro não fez serão à lareira como habitualmente, logo que terminou a ceia decidiu ir para a cama. Estava muito cansado. Passara o dia a podar a vinha e como se esse trabalho já não fosse suficientemente cansativo o tempo, chuva miudinha ininterrupta, também não ajudara. Em função dessa labuta, assim que chegou à cama adormeceu, mas estava longe de imaginar o que a noite lhe reservava.
Uma hora mais tarde, acordou estonteado, ao som do matraquear das
ferraduras de uma qualquer cavalgadura que se aproximava pela viela que dava
acesso à sua casa. A esposa, como habitualmente, dormia que nem uma pedra. Tinha
a doença do sono, dificilmente acordava a menos que a casa lhe caísse em cima. No
entanto, pelo contrário, ele dava conta de qualquer ruído, fruto dos seus dias
de guerra e da intranquilidade que lá vivera que o forçara a um alerta
permanente na luta pela sobrevivência. Para além dessa vigilância constante, a
sua casa, edificada em pedra de xisto, ficava paredes-meias com a via
pública e isolada do resto do casario, cerca de duzentos metros, o que, por si
só, facilitava a perceção de qualquer movimento, mas ao mesmo tempo, tornava a habitação mais vulnerável a um qualquer assalto.
Não era normal
a passagem de quadrúpedes pela aldeia àquela hora tardia, muito menos por uma ruela estreita que,
apenas, dava acesso às propriedades agrícolas. Em
face disso, Acácio ficou confuso, sem saber muito bem onde se encontrava, como se
despertasse de mais um dos seus, frequentes, pesadelos. Começou por fazer
conjeturas sobre o que teria acontecido, mas como não encontrou explicação
lógica, ajeitou a almofada, aconchegou as mantas e mudou diversas vezes de
posição, à espera que o sono lhe sossegasse a mente. Porém, quando estava quase
a adormecer, o silêncio voltou a ser interrompido. O matraquear atormentador
das ferraduras sobre a rua em macadame voltou a ouvir-se em passada muito
pausada. De passada em passada acabaria por se imobilizar junto ao seu casebre.
Agora estava
acordado, tinha a certeza de que não se tratava de um pesadelo. Era mesmo real!
Quem seria àquela hora da noite? Assaltantes? Uma força policial no encalce de
algum criminoso? Algum viajante perdido em busca de auxílio? Sem resposta para as suas conjeturas, saltou da cama
como que impulsionado por uma mola, mas enquanto aguardava que lhe batessem à
porta e se identificassem, muitos pensamentos lhe passaram pela ideia. Enquanto esperava que a situação evoluísse manteve-se imóvel.
Entretanto,
vieram-lhe à memória histórias de arrepiar que ouvira sobre as invasões
francesas. Nessa época, as tropas de Napoleão vandalizavam casas e celeiros,
dia e noite, saqueando e destruindo tudo o que encontravam. Aos aldeões não
restava outra solução que não fosse fugir ou pactuar com os invasores na
esperança de que nada de pior lhes acontecesse.
Tentando conter
a respiração e com a mente mergulhada nesses pensamentos aterrorizantes tateou
o canhangulo, de carregar pela boca, que tinha junto à cama. Armou o cão e
ficou de tocaia à espera que um qualquer vândalo lhe entrasse pela casa dentro.
Estava convicto que o primeiro a invadir a sua intimidade seria abatido à
queima-roupa. Depois logo veria, mas como não teria tempo para recarregar a
espingarda resolveria a questão à cacetada. Aguentou alguns segundos na
escuridão do seu pequeno espaço, sem que a situação evoluísse. Por fim, ouviu
um murmúrio confuso de vozes que se misturavam com o chapinhar das pingos de chuva que caíam dos beirados, prenúncio de que algo de inesperado estaria para
acontecer. Um arrepio percorreu-lhe a espinha que o impulsionou a antecipar-se
aos acontecimentos. Abeirou-se, silenciosamente, do postigo que dava para a
viela, conteve a respiração e abriu cautelosamente o caixilho. Meteu o cano da arma de fora e
disparou para o vazio. O clarão, acompanhado de um estrondo aterrador, rasgou inesperadamente
a escuridão e, ato contínuo, gerou movimentos inesperados que culminaram numa
retirada em galope desenfreado. Logo a seguir, acendeu a candeia de azeite e
recarregou apressadamente a espingarda, na expectativa do que pudesse surgir. Apesar
da sua cautela não viria a se incomodado o resto da noite.
Acácio Mineiro
tinha regressado, há cerca de dois anos, da Primeira Grande Guerra onde
combatera na região da Flandres. À semelhança de muitos companheiros havia sido
integrado no Corpo Expedicionário, sem estar minimamente preparado para a
guerra. Na realidade, para além de teorias avulsas e de prática de
ordem unida, tinha apenas no seu curriculum uma dúzia de disparos com a
espingarda Mauser, efetuados em carreira de tiro. Em função disso e das
condições deploráveis que ali encontrara, enterrado nas trincheiras, com água
pelos joelhos e exposto aos gases utilizados tanto pelas forças inimigas, como
até pelas amigas, acabaria por adoecer alguns meses depois. Contudo, só
regressaria a Portugal após o Armistício, onde viria a chegar num estado
lastimável, magro e doente, ao ponto de a família ter dificuldade em o
reconhecer. Agora parecia curado das lesões físicas, mas os traumas das etapas vividas ainda
estavam latentes.
A par das agruras que lá passara, parece que ainda teria tido um
pequeno rasgo de sorte. Constava-se que, durante um combate, enquanto se
abrigava nos escombros de um edifício parcialmente destruído pela guerra, teria
encontrado uma caixa com cinquenta libras em ouro. Só mais tarde, depois de
regressar a casa, viria a denunciar a posse do seu pequeno tesouro, trocando
algumas libras por moeda corrente. Com o passar do tempo, a história do tesouro
foi tomando forma e espalhou-se pelos negociadores de ouro, desencadeando a
cobiça dos amigos do alheio que, devido àquele tempo difícil, estavam mais
ávidos do que nunca. Foi preciso aquele susto para que Acácio Mineiro tomasse
consciência disso e ficasse mais acautelado.
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