Quando os
primeiros raios de sol beijaram a colina onde estávamos aquartelados, deixámos
Ninda rumo a Gago Coutinho, (atual Lumbala) sede do Comando da nossa Unidade. Antes de iniciar
a marcha, esperámos por dois indígenas que nos haviam pedido boleia e logo que
eles se acomodaram, com os sacos de tralha, a um canto da carroçaria, dei a
ordem de arranque. Esperava-nos uma viagem de cerca de setenta quilómetros, em
picada arenosa, onde os turras se recreavam a enterrar minas e a
montar emboscadas. Tínhamos também pela frente várias pontes, para a travessia das linhas de água e pântanos das chanas, edificadas sobre
estacaria em madeira que eram alvo frequente de sabotagem. Para além disso, o
inimigo estava sempre à espreita para a qualquer momento nos atacar
traiçoeiramente.
Naquela fase do
ano, em pleno junho de 1973, os dias eram longos, mas a crueldade da picada, na
maioria das vezes, tornava-os insuficientes para um regresso, ao aquartelamento,
dentro do tempo previsto. A partir do crepúsculo até ao nascer do sol as nossas
comunicações sofriam um forte empastelamento e não funcionavam. Assim, para
além de não podermos evacuar feridos também não podíamos dispor de apoio de
qualquer natureza. Em face disso, os movimentos operacionais ficavam limitados ao período
diurno.
Naquele dia, o
meu pelotão fora incumbido de levar a cabo uma operação de reabastecimento
logístico a partir do Comando da Unidade até à nossa posição. Como é sabido, uma tropa moralizada e eficiente carece de um bom apoio logístico, mas ali tudo era problemático. Assim, o reabastecimento auto, normalmente, era de periocidade quinzenal, em dias aleatórios para tentar fugir à rotina. Os chamados frescos, "congelados" carne e peixe, chegavam, quase sempre, por via aérea. O terreno era hostil e qualquer deslocação era
sempre arriscada, pelo que era indispensável tomar todas as precauções e o pessoal ir
equipado com todo o material disponível: G3, HK-21, morteiro 60`, granadas e alguns
dilagramas. Contudo, como frequentemente acontecia, o alferes, comandante do
pelotão, baldou-se mais uma vez e o comando recaiu no furriel mais antigo que
por sinal era eu. Quando a situação se complicava aquele costumava contrair paludismo deixando, assim, o pelotão entregue aos subalternos.
Logo que abandonámos a nossa fortaleza, cercada por arame farpado, constituída por meia dúzia de barracos
revestidos a cal e alguns buracos na areia a que chamávamos abrigos, a angústia inundou o nosso espírito. Com a cabeça afogada de dúvidas, carregávamos
silêncios. Não falávamos do tempo que faltava para terminar a comissão e regressar à terra mãe, nem dos
mosquitos que, durante a noite, nos espetavam o ferrão venenoso e não nos deixavam descansar, nem das matacanhas que nos roíam os
pés, nem da Flor do Congo que nos devorava as virilhas, nem tão pouco dos
percevejos que, nas camaratas, nos sugavam o sangue. No meio do silêncio
daquele abismo de incertezas, para além dos olhos bem escancarados tentando observar tudo o que rodeava, por vezes, sobrava um rumor de impaciência em
jeito de desabafo, sobre a via-sacra em que estávamos mergulhados. Digeríamos
com dificuldade as patranhices que, ao longo do tempo, nos iam sendo incutidas
por quem nunca calcava areia minada. Enquanto nos deslocávamos de coração
apertado esquecíamos as dores, de todo o tipo, que nos ensombravam a mente.
As viaturas, três berliets escolhidas de um parque em exaustão,
sem manutenção especializada, roncavam em penosa aflição, picada fora, rasgando a areia
que teimava em entupir o sulco rasgado pelos rodados dianteiros e assustando a
bicharada que povoava a mata. Ao fim de uma hora, em que percorremos cerca de vinte quilómetros, surgiu o primeiro contratempo. A certa altura, ouvimos um enorme estrondo
semelhante ao deflagrar de uma granada. Depois dos procedimentos de segurança
habituais, em situações de contacto com o inimigo que era saltar das viaturas e procurar abrigo para ripostar ao ataque, concluímos que se tratara de
um simples rebentamento de um pneu na berliet que ocupava a segunda posição na
coluna e que ficou com a jante enterrada na areia. Estávamos junto à ponte
sobre o rio Luati onde, de ambos os lados da picada, eram visíveis pedaços de
chaparia de viaturas que, em passagens anteriores, não resistiram aos
rebentamentos de minas anticarro. Era um local propício a novos confrontos com
os turras, pelo que montámos o dispositivo de segurança que se impunha para evitar uma surpresa desagradável. Havia
que tomar precauções redobradas enquanto substituíamos o pneu, que não foi tarefa fácil, apesar da intervenção do mecânico que nos acompanhava em todas as deslocações auto.
Entretanto,
digo ao furriel Duarte, de alcunha “Cacimbado”, para se encarregar da inspeção
aos paus de mogno que revestiam a ponte e nos permitiam a travessia do rio. Era um veterano,
cansado da guerra, a contas com duas dezenas de castigos que o iam perpetuando
na guerra. Embora, durante os quase cinco anos que já levava de comissão, por várias regiões de Angola, tivesse tido desempenhos dignos de louvor, para os superiores hierárquicos só
as suas falhas mereciam destaque. Apesar desse currículo pouco invejável, a par
do desgaste físico e psicológico, tentava, a todo o custo, preservar a sua
integridade física e de todo o grupo de combate. Em situações de caráter operacional, todos aprendíamos com a sua experiência
guerreira. Ali, de G3 empunhada e sem abandonar o charro que trazia
ao canto da boca, chamou dois homens da sua secção e diluiu-se no capim que
ocultava a estacaria que sustentava a ponte. Situação que se foi repetindo
sempre que eramos confrontados com outros pontões.
Uma hora mais
tarde, prosseguimos a marcha num cenário que alternava entre chanas com boa
visibilidade e mata densa onde o sol, apenas, espreitava por entre as frondes
de mogno e acácia, vegetação que nos ia servindo de máscara. Perto da hora de almoço, chegámos a Gago Coutinho sem que
tivéssemos sido surpreendidos por qualquer ataque inimigo.
Carregámos o
material logístico previamente requisitado: combustíveis, produtos alimentares e componentes de guerra. Logo a seguir, apressámo-nos a regressar a Ninda que se adivinhava mais difícil. Para além
da distância que tínhamos que percorrer podiam surgir surpresas de todo o tipo.
Até porque em missões de reabastecimento não podíamos contrariar as rotinas e o
nosso regresso à Base já não era surpresa para o inimigo. Apesar disso, a
viagem foi decorrendo sem que a sua proximidade tivesse sido notada.
Na continuação da nossa missão, quando nos
aproximávamos do rio Luce, numa descida de forte inclinação, a última berliet
ficou sem travões. O condutor para não embater na viatura que circulava à sua
frente guinou para a chana abrindo uma clareira através do capim. Só parou
quando as rodas da frente ficaram totalmente atoladas no lodo. Como se aquela contrariedade
não bastasse, na linha do horizonte eram visíveis nuvens ameaçadoras que se
formaram rapidamente e anunciavam tempestade eminente. Então, para resgatar a berliet
daquele pântano, utilizámos outra viatura como reboque e ainda a força braçal
dos trinta homens do pelotão. Com os pés enterrados na lama, todos tentávamos
dar o máximo das nossas forças. Entretanto, enquanto nos ocupávamos da viatura, fomos atingidos
por uma trovoada, com chuva diluviana, acompanhada de granizo. Os relâmpagos
pareciam querer fulminar tudo ao nosso redor. Os trovões faziam tremer o chão
lamacento que pisávamos. As nuvens pariam pedras como ovos de galinha-do-mato. Perante tal cenário e tentando contrariar a alucinação de tanta adversidade, o experiente "Cacimbado", gritou:
“força pessoal! Chuva civil não molha militares!”, frase que nos deu força
redobrada para enfrentar com denodo a tarefa em que estávamos empenhados.
A fim de uma
hora, encharcados até à alma, retomámos a marcha, ainda, debaixo de chuva.
Restavam apenas duas berliets a funcionar porque a terceira ia atrelada à do
meio ligada por uma lança de ferro. A noite caiu e a viagem foi prosseguindo,
agora com maior lentidão. A picada tinha muita areia e as viaturas carregadas
tinham maior dificuldade em progredir. A certa altura, o condutor da berliet
que circulava em primeiro lugar não conseguiu engrenar a tração às rodas da
frente e ficámos parados sem possibilidade de continuar e expostos a todos os
perigos. Perante mais aquele incidente, chamei o mecânico tentando equacionar
uma solução. Aquele, embora fosse um homem voluntarioso que não olhava a
sacrifícios, naquela noite, não respondeu à chamada. Estava abatido física e
psicologicamente para cumprir a sua função. Partilhava a capa de oleado com
outro militar, mas estava totalmente molhado, respondeu com dificuldade:
─ Não saio daqui nem que me matem! Aqui, não posso fazer nada! É preciso
desmontar a caixa de velocidades!
A chuva não
abrandava. A noite ia avançando, fria e cruel, sem nos deixar alternativa. Não
tínhamos comunicações e a viatura avariada estava atolada na areia a bloquear a
passagem da única berliet que ainda podia circular com autonomia. Durante
alguns minutos a chuva aumentou de intensidade, fustigando a escuridão com
crueldade. Embriagados pela adversidade, alguns elementos refugiaram-se debaixo
da blindagem das carroçarias. Quando a chuva abrandou, fiz nova tentativa junto
do mecânico, mas obtive a mesma resposta impiedosa:
─ Já lhe disse que, não saio daqui nem que me matem!
Então, resolvi
utilizar outra tática numa tentativa para aliciar o precioso mecânico.
Convidei-o para me ajudar a beber uma garrafa de whisky Old Parr, que tinha
guardada no meu baú, logo que chegássemos ao aquartelamento. Aí a coisa mudou
de figura. Não respondeu de imediato,
mas depois de alguns segundos de refleção, disse:
─ Está bem! Vou ver o que posso fazer!
Sem mais
comentários, deixou o local onde estava refugiado, muniu-se de ferramenta
apropriada e avançou determinado. Pegou na gambiarra que o condutor, entretanto
lhe havia preparado e rastejou por debaixo da cabine, besuntada de óleo
queimado, em busca de uma solução. Com a farda colada ao corpo iniciou o
trabalho que se lhe afigurava difícil. Enquanto mexia nos ferrolhos ia dando
instruções ao condutor para, em conjunto, conseguirem engrenar uma velocidade.
Depois de muitas tentativas, o mecânico gritou:
─ Alto! Não mexas mais! Vamos experimentar assim! Temos que ir sempre em
segunda! Se não aguentar, temos que ir sempre em primeira! Não toques mais na
alavanca de velocidades!
Quando o
mecânico saiu debaixo da berliet metia dó. Para além de molhado e a tremer de
frio, parecia um negro totalmente pintado de óleo queimado. Mas, ainda assim,
não se cansava de realçar os seus conhecimentos técnicos que foram
determinantes para remediar a avaria.
Finalmente,
retomámos a marcha, picada fora, em busca de algum aconchego. Já estávamos
perto. Não seriam mais de seis quilómetros. Mas nada estava garantido. Assim,
em velocidade de caracol, chegámos ao conforto do Destacamento por volta da uma
hora da manhã. Quando me preparava para mudar a farda molhada, fui interpelado
pelo Comandante que, em jeito de ameaça, me questionou sobre o motivo de tão
grande demora. Depois de um relato muito sumário, virei-lhe as costas com
indiferença. Estava sem paciência para aturar o seu militarismo doentio,
próprio de quem se resguardava no aconchego do arame farpado, longe do sacrifício
e da guerra. Até porque estava na hora de pagar a minha promessa.
Logo que o mecânico chegou ao bar, onde usufruímos da companhia experiente do Cacimbado, bebemos e brindámos os três até esgotar duas garrafas.
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