quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

O LADRÃO DA AVENIDA






Naquela manhã, Tiago estacionou o seu Ford Escort, a meio da avenida, mesmo em frente à mercearia do ti Januário, sem a habitual volta aos quarteirões em busca de lugar disponível. As dificuldades crescentes de estacionamento obrigavam-no, em cada dia, a sair mais cedo de casa para não chegar atrasado ao trabalho. Chegava ali muitas vezes àquela hora e nunca se apercebera de uma alvorada, assim, tão pachorrenta. Ao longo dos passeios não faltavam espaços disponíveis para parqueamento dando mesmo a ideia de que toda a gente havia fugido adivinhando uma catástrofe. Apenas se ouvia o tric tric de uma tesoura de podar, habitualmente, utilizada pelo ti Januário que, nas horas de menor aperto, deixava o seu estabelecimento de mercearia ao cuidado da esposa, para se ocupar de jardins particulares anexos às vivendas da redondeza.
O jardineiro era um sexagenário bastante dinâmico. Dedicara sempre um pouco do seu tempo disponível à botânica. Estudara sobre a diversidade das espécies, trato e habitats, mas também aprendera muito de forma empírica, mercê do seu gosto pelas plantas. Apesar de todos os seus conhecimentos e empenho, por vezes, era confrontado com vândalos que para além de lhe roubarem algumas espécies, mais raras e mais bonitas, também lhe danificavam os jardins que tinha a seu cargo.    
Ansiando por tranquilidade, logo que Tiago fechou a porta ao veículo olhou em redor e sentiu uma agradável surpresa pelo estranho sossego que o rodeava. Trabalhava num escritório de contabilidade, onde passava os dias enclausurado, em guerra constante com papéis e números, que lhe aumentavam os níveis de stress. Ao fim de cada dia, quando chegava à via pública já não tinha pachorra para suportar a sofreguidão urbana que o envolvia. De facto, atendendo à forma como era obrigado a viver o seu quotidiano, nada lhe podia ser mais gratificante do que, poder entrar e sair da cidade sem os constantes congestionamentos de trânsito que o impediam de se mover livremente. Assim, saboreando aquela agradável acalmia, caminhou em direção ao quiosque da D. Amélia a fim de comprar um jornal. Depois de uma maviosa troca de palavras com aquela, tomou consciência de que aquele sábado era o último dia de julho e como tal, antecipara as férias de agosto. Motivo que justificava a debandada dos moradores daquela zona burguesa que, ano após ano, procuravam outras latitudes em busca de paraísos exóticos com climas mais propícios a alguns dias de lazer rodeados de mordomias.
Tiago nunca gozara verdadeiramente férias, mas também nunca se sentira obcecado por elas. Isso, era um luxo a que não se podia permitir. Quando lhe calhavam por sorteio aproveitava para se ocupar nas tarefas agrícolas em apoio ao orçamento familiar. Em função disso, nem sequer lhe passava pela ideia como seriam esses dias de devaneio, longe do seu meio natural, viajando pelo mundo, em pousadas e hotéis de cinco estrelas. De onde sobravam, quase sempre, histórias românticas e aventuras de toda a espécie mais tarde comentadas entre veraneantes com um snobismo elitista de criar inveja ao desventurado cidadão.
Nessa manhã, antes de se encaminhar para o escritório, Tiago deteve-se a passar os olhos pela primeira página dos matutinos, tentando à partida, inteirar-se dos conteúdos e escolher um. Pelo enfado que os temas políticos lhe causavam, decidiu-se por um desportivo e partiu calmamente rua fora, contornando os troncos de plátanos e tiliáceas, a caminho do local de trabalho. Enquanto caminhava, folheando o jornal para ler, apenas, os títulos, sentiu um toque no ombro e ouviu uma voz que lhe era familiar:
    Tiago, não mudas de rotina!
Aquele, depois de um pequeno sobressalto, virou-se repentinamente e deparou-se com o Diogo, o colega que no ano anterior havia trocado a empresa onde ambos laboravam, por um banco.
    Olá Diogo!... Por aqui, a está hora?
    Vim fazer uma visita aos velhos amigos! Dei boleia à minha esposa que veio participar num congresso médico e aqui estou.
    Muito bem! Então, como têm corrido as coisas no banco?
  Adaptei-me facilmente ao trabalho e à melhoria de vida, mas ainda não me esqueci dos amigos!
    Estás a ver como eu tinha razão! Trabalhas menos, ganhas melhor e tens outro estatuto.
    Sim, mas continuo a mesma pessoa!
    Não me arranjas lá uma cunha igual à tua?
    Ah! Ah! Ah!... Qual cunha qual quê! Não me digas que não te contei? Foi tudo muito simples! Quando abriu o concurso para o banco, concorri eu e a minha mulher. Ela não estava interessada no lugar, como é óbvio. Uma médica tem coisas mais importantes para fazer do que querer candidatar-se a empregada bancária. Queria apenas ajudar-me. Tem mais habilitações e sem dúvida nenhuma que é muito mais inteligente do que eu. Assim, no dia do concurso, antes de entregarmos os testes trocámos as provas. Simples, fácil e claro, não podia ter corrido melhor! Embora a minha formação moral e cívica, nada tenha a ver com estes métodos, reconheço que em muitos casos é a única solução para quem não tem à partida influências políticas.
  Não acredito!... Pensaste em tudo e ainda dizes que não és inteligente! – exclamou Tiago, deixando sair um sorriso irónico.
   Não!... Amigo Tiago, isso não é bem assim! O assunto dava para uma longa conversa, mas que vou tentar resumir, sem no entanto, abdicar das ideias que suportam a minha teoria. Como sabes, vivemos tempos de um compadrio nunca visto e para nós, só nos restam duas opções: ou carregamos o fardo que nos calhou em sorte, pacificamente e em silêncio, até ficarmos completamente trucidados por aquilo a que pomposamente chamamos democracia, ou pelo contrário, arriscamos ousadamente buscando o que ambicionamos, contornando as regras por eles instituídas visando, apenas, terceiros, mesmo correndo sérios riscos de virmos a ser descobertos. Se de facto, não optarmos pela segunda, nunca chegaremos a lado nenhum, seremos sempre relegados para o fim da lista e por muito que a gente se lamente, nunca ninguém se vai preocupar da nossa existência.
    Bom, … visto por esse prisma, não deixas de ter razão! Já agora, vamos mudar de assunto, … falar de política e dos políticos causa-me náuseas.
Subitamente, uma voz angustiada, ecoou grave por todo o quarteirão, interrompendo a conversa de ambos:
    Oh ladrão, não fujas, que te racho ao meio! Oh ladrão, não fujas!...
Os dois amigos lançaram um olhar ao longo da avenida e viram um homem a escapulir-se em direção a uma rua transversal e logo a seguir detiveram-se numa figura que lhes era familiar e que saiu de um portão em marcha acelerada, de sachola em riste, pronto a desferi-la na criatura que perseguia. Era o ti Januário, que ao fim de uma dúzia de passadas tropeçou e acabou estatelado nos paralelos da calçada, praguejando numa lamúria de impropérios.
Perante aquele quadro, Diogo seguiu no encalço do fugitivo até o perder de vista e Tiago correu em socorro do ti Januário, um velho conhecido de ambos. Volvidos poucos minutos ouviram um veículo a arrancar em alta velocidade em sentido oposto à posição que ocupavam.
    O ladrão conseguiu escapar! Há vários dias que este meliante andava por aqui a rondar, talvez à espera que eu tivesse um deslize! É claro que assim que apanhou a garagem aberta, sem ninguém por perto, avançou decidido a fazer limpeza aos meus haveres. A minha sorte foi ter voltado atrás para pegar o aspirador de relva e ter visto aquele patife em plena atividade.
    Amigo Januário, o artista não levou nada e quem foge não quer guerra! – disse Tiago, tentando acalmar o jardineiro.
    Tem toda a razão! Não vale a pena enervar-me com isto! Ainda foi bom não ter apanhado o ladrão, senão, da maneira que as coisas estão, estava agora metido num sarilho dos grandes.
Entretanto os antigos colegas despediram-se do ti Januário e seguiram para a empresa onde trabalharam juntos, mas quando chegaram perto do local onde Tiago estacionara o carro, exclamou:
    Onde diabo está o meu carro?... Comprei-o a semana passada, em segunda mão, no Stand do Rio! Não me digas que foi aquele patife que mo roubou! – disse Tiago, ainda um pouco estonteado.
    Agora que falaste no stand, veio-me à memória o local onde me pareceu ter visto aquele artista! Anda daí, vem comigo!...
Na segunda-feira seguinte, quando Tiago se deslocava para o trabalho, viu o ti Januário a caminhar na sua direção com o jornal regional na mão e visivelmente satisfeito. Logo que se encontraram e depois do cumprimento habitual, abriu o matutino numa das páginas centrais e apontou para uma fotografia, dizendo:
   Foi este meliante que eu apanhei dentro da garagem! Parece que fazia uns biscates para um stand de automóveis e agora está a contas com a justiça.
   E eu consegui recuperar o meu carro! rematou o Tiago em jeito de alívio.

 
 

1 comentário: