Naquela manhã, Tiago estacionou o seu Ford Escort, a meio da
avenida, mesmo em frente à mercearia do ti Januário, sem a habitual volta aos
quarteirões em busca de lugar disponível. As dificuldades crescentes de
estacionamento obrigavam-no, em cada dia, a sair mais cedo de casa para não
chegar atrasado ao trabalho. Chegava ali muitas vezes àquela hora e nunca se
apercebera de uma alvorada, assim, tão pachorrenta. Ao longo dos passeios não
faltavam espaços disponíveis para parqueamento dando mesmo a ideia de que toda
a gente havia fugido adivinhando uma catástrofe. Apenas se ouvia o tric tric de
uma tesoura de podar, habitualmente, utilizada pelo ti Januário que, nas horas
de menor aperto, deixava o seu estabelecimento de mercearia ao cuidado da
esposa, para se ocupar de jardins particulares anexos às vivendas da redondeza.
O jardineiro era um sexagenário bastante dinâmico. Dedicara
sempre um pouco do seu tempo disponível à botânica. Estudara sobre a
diversidade das espécies, trato e habitats, mas também aprendera muito de forma
empírica, mercê do seu gosto pelas plantas. Apesar de todos os seus
conhecimentos e empenho, por vezes, era confrontado com vândalos que para além
de lhe roubarem algumas espécies, mais raras e mais bonitas, também lhe
danificavam os jardins que tinha a seu cargo.
Ansiando por tranquilidade, logo que Tiago fechou a porta ao
veículo olhou em redor e sentiu uma agradável surpresa pelo estranho sossego
que o rodeava. Trabalhava num escritório de contabilidade, onde passava os dias
enclausurado, em guerra constante com papéis e números, que lhe aumentavam os
níveis de stress. Ao fim de cada dia, quando chegava à via pública já não tinha
pachorra para suportar a sofreguidão urbana que o envolvia. De facto, atendendo
à forma como era obrigado a viver o seu quotidiano, nada lhe podia ser mais
gratificante do que, poder entrar e sair da cidade sem os constantes
congestionamentos de trânsito que o impediam de se mover livremente. Assim,
saboreando aquela agradável acalmia, caminhou em direção ao quiosque da D.
Amélia a fim de comprar um jornal. Depois de uma maviosa troca de palavras com aquela,
tomou consciência de que aquele sábado era o último dia de julho e como tal,
antecipara as férias de agosto. Motivo que justificava a debandada dos moradores
daquela zona burguesa que, ano após ano, procuravam outras latitudes em busca
de paraísos exóticos com climas mais propícios a alguns dias de lazer rodeados
de mordomias.
Tiago nunca gozara verdadeiramente férias, mas também nunca se
sentira obcecado por elas. Isso, era um luxo a que não se podia permitir.
Quando lhe calhavam por sorteio aproveitava para se ocupar nas tarefas
agrícolas em apoio ao orçamento familiar. Em função disso, nem sequer lhe
passava pela ideia como seriam esses dias de devaneio, longe do seu meio
natural, viajando pelo mundo, em pousadas e hotéis de cinco estrelas. De onde
sobravam, quase sempre, histórias românticas e aventuras de toda a espécie mais tarde comentadas entre veraneantes com um snobismo elitista de criar
inveja ao desventurado cidadão.
Nessa manhã, antes de se encaminhar para o escritório, Tiago deteve-se a passar os olhos pela primeira
página dos matutinos, tentando à partida, inteirar-se dos conteúdos e escolher
um. Pelo enfado que os temas políticos lhe causavam, decidiu-se por um
desportivo e partiu calmamente rua fora, contornando os troncos de plátanos e
tiliáceas, a caminho do local de trabalho. Enquanto caminhava, folheando o
jornal para ler, apenas, os títulos, sentiu um toque no ombro e ouviu uma voz
que lhe era familiar:
–
Tiago,
não mudas de rotina!
Aquele, depois de um pequeno sobressalto, virou-se
repentinamente e deparou-se com o Diogo, o colega que no ano anterior havia
trocado a empresa onde ambos laboravam, por um banco.
–
Olá
Diogo!... Por aqui, a está hora?
–
Vim
fazer uma visita aos velhos amigos! Dei boleia à minha esposa que veio
participar num congresso médico e aqui estou.
–
Muito
bem! Então, como têm corrido as coisas no banco?
– Adaptei-me
facilmente ao trabalho e à melhoria de vida, mas ainda não me esqueci dos
amigos!
–
Estás
a ver como eu tinha razão! Trabalhas menos, ganhas melhor e tens outro
estatuto.
–
Sim,
mas continuo a mesma pessoa!
–
Não
me arranjas lá uma cunha igual à tua?
–
Ah!
Ah! Ah!... Qual cunha qual quê! Não me digas que não te contei? Foi tudo
muito simples! Quando abriu o concurso para o banco, concorri eu e a minha
mulher. Ela não estava interessada no lugar, como é óbvio. Uma médica tem
coisas mais importantes para fazer do que querer candidatar-se a empregada
bancária. Queria apenas ajudar-me. Tem mais habilitações e sem dúvida nenhuma
que é muito mais inteligente do que eu. Assim, no dia do concurso, antes de
entregarmos os testes trocámos as provas. Simples, fácil e claro, não podia ter
corrido melhor! Embora a minha formação moral e cívica, nada tenha a ver com
estes métodos, reconheço que em muitos casos é a única solução para quem não
tem à partida influências políticas.
– Não
acredito!... Pensaste em tudo e ainda dizes que não és inteligente! – exclamou
Tiago, deixando sair um sorriso irónico.
– Não!...
Amigo Tiago, isso não é bem assim! O assunto dava para uma longa conversa, mas
que vou tentar resumir, sem no entanto, abdicar das ideias que suportam a minha
teoria. Como sabes, vivemos tempos de um compadrio nunca visto e para nós, só
nos restam duas opções: ou carregamos o fardo que nos calhou em sorte,
pacificamente e em silêncio, até ficarmos completamente trucidados por aquilo a
que pomposamente chamamos democracia, ou pelo contrário, arriscamos ousadamente buscando o
que ambicionamos, contornando as regras por eles instituídas visando, apenas,
terceiros, mesmo correndo sérios riscos de virmos a ser descobertos. Se de
facto, não optarmos pela segunda, nunca chegaremos a lado nenhum, seremos
sempre relegados para o fim da lista e por muito que a gente se lamente, nunca ninguém
se vai preocupar da nossa existência.
–
Bom,
… visto por esse prisma, não deixas de ter razão! Já agora, vamos mudar de
assunto, … falar de política e dos políticos causa-me náuseas.
Subitamente, uma voz angustiada, ecoou grave por todo o
quarteirão, interrompendo a conversa de ambos:
–
Oh
ladrão, não fujas, que te racho ao meio! Oh ladrão, não fujas!...
Os dois amigos lançaram um olhar ao longo da avenida e viram
um homem a escapulir-se em direção a uma rua transversal e logo a seguir
detiveram-se numa figura que lhes era familiar e que saiu de um portão em
marcha acelerada, de sachola em riste, pronto a desferi-la na criatura que
perseguia. Era o ti Januário, que ao fim de uma dúzia de passadas tropeçou e
acabou estatelado nos paralelos da calçada, praguejando numa lamúria de
impropérios.
Perante aquele quadro, Diogo seguiu no encalço do fugitivo até
o perder de vista e Tiago correu em socorro do ti Januário, um velho conhecido
de ambos. Volvidos poucos minutos ouviram um veículo a arrancar em alta
velocidade em sentido oposto à posição que ocupavam.
–
O
ladrão conseguiu escapar! Há vários dias que este meliante andava por aqui a
rondar, talvez à espera que eu tivesse um deslize! É claro que assim que
apanhou a garagem aberta, sem ninguém por perto, avançou decidido a fazer
limpeza aos meus haveres. A minha sorte foi ter voltado atrás para pegar o
aspirador de relva e ter visto aquele patife em plena atividade.
–
Amigo
Januário, o artista não levou nada e quem foge não quer guerra! – disse Tiago,
tentando acalmar o jardineiro.
–
Tem
toda a razão! Não vale a pena enervar-me com isto! Ainda foi bom não ter
apanhado o ladrão, senão, da maneira que as coisas estão, estava agora metido
num sarilho dos grandes.
Entretanto os antigos colegas despediram-se do ti Januário e
seguiram para a empresa onde trabalharam juntos, mas quando chegaram perto do local
onde Tiago estacionara o carro, exclamou:
–
Onde
diabo está o meu carro?... Comprei-o a semana passada, em segunda mão, no Stand
do Rio! Não me digas que foi aquele patife que mo roubou! – disse Tiago, ainda
um pouco estonteado.
–
Agora
que falaste no stand, veio-me à memória o local onde me pareceu ter visto
aquele artista! Anda daí, vem comigo!...
Na segunda-feira seguinte, quando Tiago se deslocava para o
trabalho, viu o ti Januário a caminhar na sua direção com o jornal regional na
mão e visivelmente satisfeito. Logo que se encontraram e depois do cumprimento
habitual, abriu o matutino numa das páginas centrais e apontou para uma
fotografia, dizendo:
– Foi
este meliante que eu apanhei dentro da garagem! Parece que fazia uns biscates
para um stand de automóveis e agora está a contas com a justiça.
– E eu consegui recuperar o meu carro! rematou o Tiago em jeito de alívio.
o amigo do Tiago era um gde artista :)
ResponderEliminar