Em meados do século XX, quando a paróquia pretendia fazer a distribuição da ajuda alimentar pelos fregueses de uma determinada aldeia enviava um estafeta para anunciar a convocatória.
Assim, em função disso, Leonel da Mata, que não se podia apoiar na esposa que se encontrava internada no hospital a contas com uma complicada patologia, incumbiu a
vizinha, que à data lhe tomava conta dos filhos, de receber a esmola que, mensalmente,
lhe era destinada. Para isso, entregou-lhe a identificação que normalmente lhe
era solicitada e uma moeda de cinco escudos, quantia que lhe era exigida,
contra a entrega dos cinco corredores de farinha, (medida metálica que levava cerca
de um litro e na época era utilizada pelos merceeiros), um corredor de leite em
pó, uma concha de banha e um pedacito de queijo flamengo.
Sem pagar ninguém levantava a
esmola, como tinha acontecido, no mês anterior à senhora Juliana que embora
tivesse declarado que pagaria em dobro no mês seguinte, depois de receber o
dinheiro dos pinheiros que acabara de vender, mas nem assim lhe abriram uma exceção. O
argumento do pagamento baseava-se nas elevadas despesas com o transporte das
dádivas, entre a estação de caminho-de-ferro e o local de distribuição, que a
paróquia não podia suportar.
Leonel da Mata vivia numa aldeia isolada onde não faltavam carências de toda a espécie. Como diariamente acontecia, levantou-se
cedo para calcorrear perto de seis quilómetros que era a distância que separava
o pardieiro que habitava da localidade onde angariara alguns dias de labuta na
construção civil. Esperava-o um salário miserável, mas do qual não podia abdicar sob pena de perder o pão escasso para os três filhos, todos em idade escolar. Receando
chegar atrasado ao trabalho, naquela manhã, enveredou por um trilho pedregoso,
enfrentando o terreno difícil e o risco de uma queda, sem pensar no perigo que corria. Mas não tinha grande alternativa, naquele tempo, as poucas vias de comunicação perdiam-se a serpentear os montes forçando, assim, os transeuntes a utilizar trilhos alternativos.
Como diariamente acontecia, assim que Leonel da Mata chegou ao local de trabalho
entregou-se à luta, como se não houvesse dia seguinte, para que o patrão não tivesse
motivo para o despedir.
No final da jornada, que se
prolongara até ao pôr-do-sol, exausto e mal alimentado, iniciou a marcha de
regresso ao encontro dos seus filhos que não lhe saíam do pensamento. Assim
que abandonou o local onde laborava, uma povoação de ruas estreitas onde as casas
se amontoavam e que se afundava entre duas colinas íngremes ladeadas por pinheiros
de grande porte, notou que o manto de penumbra, anunciando a chegada da noite,
se abatera muito rapidamente sobre todo aquele imenso vale ondulado. Receando
que a escuridão o apanhasse em pleno atalho, assente em penhascos, optou por
seguir pela via principal não só esperançado numa boleia automóvel que
eventualmente por ali passasse, mas sobretudo como forma de fugir aos
imprevistos que poderiam resultar do itinerário secundário.
No primeiro quilómetro do percurso,
pela estrada alcatroada, não vislumbrou vivalma, mas Leonel caminhava animado
por um pensamento positivo na esperança de que a camioneta do Ti Caeiro, entretanto,
aparecesse e lhe desse boleia como por vezes acontecia. Quanto ao trabalho
estaria garantido por mais alguns dias e do hospital recebera notícias das
melhoras da esposa o que, por si só, lhe redobrava o ânimo para enfrentar as
adversidades que teimavam em não lhe dar tréguas.
Na continuação da sua marcha, quando
Leonel se aproximava de um local mais acidentado e onde a via ia serpenteando o
terreno por entre vegetação densa, a que o avanço da noite se encarregava de
tornar, ainda, mais sombria, foi alertado por ruídos inesperados que se
desenrolavam algures à sua frente. Embora não fosse um homem medroso, progrediu
na via com a cautela que se impunha face à situação de viajante isolado em
terreno e condições hostis. A sua imaginação apoiada em relatos de perseguições
e assaltos ocorridos noutras ocasiões convidavam a uma elementar
precaução. Assim, logo que se apercebeu de que estava muito perto dos sons
desconhecidos, abrigou-se atrás de um emaranhado de acácias na expectativa de
decifrar o que se passava. Ao fim de poucos segundos foi surpreendido por uma
voz masculina que rompeu a escuridão e gelou a alma de Leonel:
– Vamos embora que esta
já está arrumada!
Logo a seguir um motor entrou em
funcionamento e uma viatura de carga iniciou a deslocação em sentido inverso à
marcha de Leonel. Este, para se furtar ao feixe de luz que os faróis debitavam,
continuou imóvel atrás dos arbustos até o veículo se afastar.
Logo a seguir, ainda intranquilo,
retomou o seu caminho atento a tudo o que passava à sua volta, mas assim que
percorreu cinquenta passos, chegou ao local onde um ramal secundário se
entroncava na via e que dava acesso a uma propriedade constituída por uma
espécie de armazém agrícola sem vislumbrar algo que justificasse as manobras e
o diálogo que escutara. Então, adaptado à escuridão e movido pela curiosidade,
deixou a estrada alcatroada penetrando uma dúzia de metros nesse trilho em
terra batida, situado entre paredes de vegetação alta, onde se deparou com um
amontoado de sacaria. Surpreendido pelo achado, tateou de imediato o conteúdo e
concluiu que se tratava de farinha. Notou, ainda, que todos os sacos eram em
pano branco e ostentavam inscrições onde sobressaíam as letras, USA. Precisamente a mesma inscrição que vira, no mês anterior, nos sacos que estavam armazenados nas
instalações da paróquia, aquando da sua comparência para receber a esmola que
lhe fora destinada.
– Que tramoia será esta?
Será que alguém se anda a governar à custa dos que mais precisam? –
interrogou-se Leonel da Mata que nesse momento foi assaltado por mil
pensamentos que, para além da surpresa, lhe pareciam não fazer sentido muito
à custa do sítio onde a mercadoria se encontrava. Enquanto pesquisava,
apercebeu-se da aproximação de um veículo que se viria a imobilizar junto aos
sacos de farinha e de imediato descobriu o motivo de todo aquele movimento de descarga realizado em local ermo e a horas desapropriadas.
Com a aproximação do feixe luminoso Leonel ficou de coração acelerado e abrigou-se o melhor que lhe foi possível,
mas sempre receando que os seus batimentos cardíacos denunciassem a sua
posição. Logo que se apagaram os faróis, saiu um homem aparentemente
descontraído revelando até, naquela forma de aproximação, uma prática
rotineira. Foi logo reconhecido por Leonel. Era o padeiro de uma localidade
vizinha que, em poucos minutos, acomodou meia dúzia de sacos na viatura encaminhando-se, de seguida, para uma arrecadação que se situava ao fundo da
vereda a escassos cem metros.
Nesse momento, Leonel que, apesar do
mundo agreste em que vivia, era um homem dotado de elevado espírito de
integridade, ao verificar que grande parte da dádiva estrangeira destinada a
ajudar os pobres estava a ser desviada para outros fins, não resistiu. Tomado
de indignação e aproveitando a ausência do padeiro, pegou num saco e colocou-o
às costas. Como uma besta de carga seguiu a corta mato enfrentando com torpor
um labirinto vegetal, quase impenetrável, tentando afastar-se o mais rápido
possível. Logo que se distanciou o suficiente, passou-lhe fugazmente pela ideia
repetir o golpe e para vincar o seu descontentamento sabotar o que restava da
sacaria. Ideia logo reprimida por a achar perversa: por um lado, estava muito
longe de casa e não conseguia carregar de uma só vez, por terrenos tão
acidentados, mais de cinquenta quilos; Por outro, conhecia de cor o vocabulário
das dificuldades e estragar, ainda que a troco de um motivo justo, nunca fizera
parte do seu.
Vencido pela resignação,
preocupou-se apenas em regressar à sua casa, por atalhos furtivos, tentando
evitar outros transeuntes.
Embora Leonel da Mata tivesse muitas
dúvidas quanto à justiça dos homens entendia que aos olhos da justiça divina não havia praticado qualquer ato censurável e a existir só se fosse por não ter
sido extensível à totalidade dos sacos.
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