domingo, 12 de janeiro de 2014

NEGÓCIO NAS TREVAS





Em meados do século XX, quando a paróquia pretendia fazer a distribuição da ajuda alimentar pelos fregueses de uma determinada aldeia enviava um estafeta para anunciar a convocatória. 
Assim, em função disso, Leonel da Mata, que não se podia apoiar na esposa que se encontrava internada no hospital a contas com uma complicada patologia, incumbiu a vizinha, que à data lhe tomava conta dos filhos, de receber a esmola que, mensalmente, lhe era destinada. Para isso, entregou-lhe a identificação que normalmente lhe era solicitada e uma moeda de cinco escudos, quantia que lhe era exigida, contra a entrega dos cinco corredores de farinha, (medida metálica que levava cerca de um litro e na época era utilizada pelos merceeiros), um corredor de leite em pó, uma concha de banha e um pedacito de queijo flamengo. 
Sem pagar ninguém levantava a esmola, como tinha acontecido, no mês anterior à senhora Juliana que embora tivesse declarado que pagaria em dobro no mês seguinte, depois de receber o dinheiro dos pinheiros que acabara de vender, mas nem assim lhe abriram uma exceção. O argumento do pagamento baseava-se nas elevadas despesas com o transporte das dádivas, entre a estação de caminho-de-ferro e o local de distribuição, que a paróquia não podia suportar.
Leonel da Mata vivia numa aldeia isolada onde não faltavam carências de toda a espécie. Como diariamente acontecia, levantou-se cedo para calcorrear perto de seis quilómetros que era a distância que separava o pardieiro que habitava da localidade onde angariara alguns dias de labuta na construção civil. Esperava-o um salário miserável, mas do qual não podia abdicar sob pena de perder o pão escasso para os três filhos, todos em idade escolar. Receando chegar atrasado ao trabalho, naquela manhã, enveredou por um trilho pedregoso, enfrentando o terreno difícil e o risco de uma queda, sem pensar no perigo que corria. Mas não tinha grande alternativa, naquele tempo, as poucas vias de comunicação perdiam-se a serpentear os montes forçando, assim, os transeuntes a utilizar trilhos alternativos.  
Como diariamente acontecia, assim que Leonel da Mata chegou ao local de trabalho entregou-se à luta, como se não houvesse dia seguinte, para que o patrão não tivesse motivo para o despedir. 
No final da jornada, que se prolongara até ao pôr-do-sol, exausto e mal alimentado, iniciou a marcha de regresso ao encontro dos seus filhos que não lhe saíam do pensamento. Assim que abandonou o local onde laborava, uma povoação de ruas estreitas onde as casas se amontoavam e que se afundava entre duas colinas íngremes ladeadas por pinheiros de grande porte, notou que o manto de penumbra, anunciando a chegada da noite, se abatera muito rapidamente sobre todo aquele imenso vale ondulado. Receando que a escuridão o apanhasse em pleno atalho, assente em penhascos, optou por seguir pela via principal não só esperançado numa boleia automóvel que eventualmente por ali passasse, mas sobretudo como forma de fugir aos imprevistos que poderiam resultar do itinerário secundário. 
No primeiro quilómetro do percurso, pela estrada alcatroada, não vislumbrou vivalma, mas Leonel caminhava animado por um pensamento positivo na esperança de que a camioneta do Ti Caeiro, entretanto, aparecesse e lhe desse boleia como por vezes acontecia. Quanto ao trabalho estaria garantido por mais alguns dias e do hospital recebera notícias das melhoras da esposa o que, por si só, lhe redobrava o ânimo para enfrentar as adversidades que teimavam em não lhe dar tréguas.
Na continuação da sua marcha, quando Leonel se aproximava de um local mais acidentado e onde a via ia serpenteando o terreno por entre vegetação densa, a que o avanço da noite se encarregava de tornar, ainda, mais sombria, foi alertado por ruídos inesperados que se desenrolavam algures à sua frente. Embora não fosse um homem medroso, progrediu na via com a cautela que se impunha face à situação de viajante isolado em terreno e condições hostis. A sua imaginação apoiada em relatos de perseguições e assaltos ocorridos noutras ocasiões convidavam a uma elementar precaução. Assim, logo que se apercebeu de que estava muito perto dos sons desconhecidos, abrigou-se atrás de um emaranhado de acácias na expectativa de decifrar o que se passava. Ao fim de poucos segundos foi surpreendido por uma voz masculina que rompeu a escuridão e gelou a alma de Leonel:
–   Vamos embora que esta já está arrumada!
Logo a seguir um motor entrou em funcionamento e uma viatura de carga iniciou a deslocação em sentido inverso à marcha de Leonel. Este, para se furtar ao feixe de luz que os faróis debitavam, continuou imóvel atrás dos arbustos até o veículo se afastar. 
Logo a seguir, ainda intranquilo, retomou o seu caminho atento a tudo o que passava à sua volta, mas assim que percorreu cinquenta passos, chegou ao local onde um ramal secundário se entroncava na via e que dava acesso a uma propriedade constituída por uma espécie de armazém agrícola sem vislumbrar algo que justificasse as manobras e o diálogo que escutara. Então, adaptado à escuridão e movido pela curiosidade, deixou a estrada alcatroada penetrando uma dúzia de metros nesse trilho em terra batida, situado entre paredes de vegetação alta, onde se deparou com um amontoado de sacaria. Surpreendido pelo achado, tateou de imediato o conteúdo e concluiu que se tratava de farinha. Notou, ainda, que todos os sacos eram em pano branco e ostentavam inscrições onde sobressaíam as letras, USA. Precisamente a mesma inscrição que vira, no mês anterior, nos sacos que estavam armazenados nas instalações da paróquia, aquando da sua comparência para receber a esmola que lhe fora destinada.
 –  Que tramoia será esta? Será que alguém se anda a governar à custa dos que mais precisam? – interrogou-se Leonel da Mata que nesse momento foi assaltado por mil pensamentos que, para além da surpresa, lhe pareciam não fazer sentido muito à custa do sítio onde a mercadoria se encontrava. Enquanto pesquisava, apercebeu-se da aproximação de um veículo que se viria a imobilizar junto aos sacos de farinha e de imediato descobriu o motivo de todo aquele movimento de descarga realizado em local ermo e a horas desapropriadas.
Com a aproximação do feixe luminoso Leonel ficou de coração acelerado e abrigou-se o melhor que lhe foi possível, mas sempre receando que os seus batimentos cardíacos denunciassem a sua posição. Logo que se apagaram os faróis, saiu um homem aparentemente descontraído revelando até, naquela forma de aproximação, uma prática rotineira. Foi logo reconhecido por Leonel. Era o padeiro de uma localidade vizinha que, em poucos minutos, acomodou meia dúzia de sacos na viatura encaminhando-se, de seguida, para uma arrecadação que se situava ao fundo da vereda a escassos cem metros.
Nesse momento, Leonel que, apesar do mundo agreste em que vivia, era um homem dotado de elevado espírito de integridade, ao verificar que grande parte da dádiva estrangeira destinada a ajudar os pobres estava a ser desviada para outros fins, não resistiu. Tomado de indignação e aproveitando a ausência do padeiro, pegou num saco e colocou-o às costas. Como uma besta de carga seguiu a corta mato enfrentando com torpor um labirinto vegetal, quase impenetrável, tentando afastar-se o mais rápido possível. Logo que se distanciou o suficiente, passou-lhe fugazmente pela ideia repetir o golpe e para vincar o seu descontentamento sabotar o que restava da sacaria. Ideia logo reprimida por a achar perversa: por um lado, estava muito longe de casa e não conseguia carregar de uma só vez, por terrenos tão acidentados, mais de cinquenta quilos; Por outro, conhecia de cor o vocabulário das dificuldades e estragar, ainda que a troco de um motivo justo, nunca fizera parte do seu. 
Vencido pela resignação, preocupou-se apenas em regressar à sua casa, por atalhos furtivos, tentando evitar outros transeuntes.
Embora Leonel da Mata tivesse muitas dúvidas quanto à justiça dos homens entendia que aos olhos da justiça divina não havia praticado qualquer ato censurável e a existir só se fosse por não ter sido extensível à totalidade dos sacos.




 




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