Enquanto João Pimenta, acompanhado por um grupo de amigos,
aguardava que o almoço lhe fosse servido aproveitou para relatar o que lhe
acontecera no dia anterior:
–
Antes
de mais – começou ele – faço questão de pedir alguma tolerância aos presentes,
especialmente aqui ao meu amigo Gervásio, que é militar do exército e como tal ligado
à disciplina militar, para alguma frase menos simpática da minha parte, mas
quero, desde já, salientar que não tenho a mínima intenção de ofender quem quer
que seja e muito menos os amigos.
–
Francamente,
fale à vontade homem! Era só o que faltava! Não obstante um conjunto de normas,
recentemente implementadas, que parecem visar a privação de algumas liberdades,
ainda não existe censura no país! – contrapôs o Gervásio.
–
Então
foi assim! – prosseguiu João Pimenta – quando regressava a casa, acompanhado
aqui do meu compadre Sebastião, depois de ambos termos participado numa largada
de perdizes num monte alentejano, na região de Avis, passei por uma situação bastante delicada.
Como todos sabemos, por mais cuidado que tenhamos, nem sempre é fácil cumprir
as regras de trânsito e ao mínimo descuido ficamos logo inquietados. Assim, quando
me aproximava da cidade de Tomar, entrei por uma via secundária, para responder
a uma necessidade fisiológica. Até aqui, nada mais natural, acontece a qualquer
um e quando menos se espera. Porém, no regresso, logo que me apercebi de que
para retomar o meu itinerário teria de percorrer uma distância superior a três
quilómetros, resolvi atalhar por uma viela que não tinha mais de quinhentos
metros e dava acesso direto à estrada principal. Com um senão, tinha um sinal
de sentido proibido do lado em que eu me deslocava. É claro que àquela hora
havia pouco trânsito e não pensei duas vezes. Arranquei, estrada fora, com o
cuidado indispensável para não colocar a nossa vida em risco nem a de
terceiros. Contudo, para mal dos meus pecados, assim que percorri uma centena de
metros deparei-me com um carro da polícia, parado na berma, onde os agentes
pareciam estar a acertar contas com um pobre diabo qualquer que, certamente,
cometera o mesmo delito que eu. Evidentemente que não liguei à sua presença e
continuei normalmente o meu caminho esperando não hipotecar a minha boa
disposição. Não perdi pela demora. Assim que os agentes me viram, ouvi uma
forte apitadela que até assustou aqui o meu compadre. Confrontado com o som
agudo da advertência, travei repentinamente e olhei em redor fingindo
descortinar de onde partira o aviso. Contudo, logo que me encarei com um
agente, questionei-o em voz alta:
–
Há
algum azar senhor polícia?
– O
senhor está a circular em sentido proibido! Não viu o sinal? – disse
prontamente o agente, que no momento me lançou um olhar impertinente de quem há
muito esperava por uma transgressão.
–
Qual
sinal? – questionei fingindo desconhecer do que ele falava.
– O
sinal que está colocado no cruzamento, mais precisamente no local onde entrou
nesta via! – respondeu o polícia enquanto se deslocava ao meu encontro para me
solicitar a documentação.
– Mais
essa! Não! Não vi sinal algum senhor polícia! Só se estiver escondido atrás de
algum arbusto, como acontece em muitos locais por este país fora! – repliquei,
pensando daí retirar dividendos.
–
E
o cavalheiro que o acompanha também não viu o sinal?
–
Oh!...
Ele nem sequer tem carta de condução e muito menos conhece os sinais de
trânsito! – atalhei de imediato, para evitar que o Sebastião abrisse a boca,
receando que derrubasse as minhas defesas.
–
Então
saia do carro e venha comigo! Vamos lá confirmar para a eventualidade de, entretanto, ter sido
arrancado! – ordenou o polícia com cara de poucos amigos.
Embora eu soubesse que tinha cometido a infração, tentei fazer
prevalecer o meu ponto de vista para ver se me safava. Então, saí do carro e
acompanhei o agente até ao cruzamento onde eu entrara que era precedido de
uma ligeira curva. Assim que chegámos junto do sinal, o polícia, não se ficou
por meias palavras, olhou para mim de semblante carregado e disparou:
–
Se
o senhor não viu um sinal deste tamanho, francamente, sou forçado a dizer-lhe
que está a precisar de óculos! Tenho de o propor a uma junta médica!
– Tem toda
a razão! Não reparei no sinal! – respondi, engolindo em seco e ouvindo
atentamente o que ele me dizia.
–
Muito
bem! Está provado que desobedeceu à sinalização vertical colocada nos termos
regulamentares! Portanto, por muito que me custe, sou forçado a levantar-lhe
uma coima! – aventou de imediato o polícia.
–
Deixe
passar isso, homem!... Sabe que ultimamente tenho andado com o sótão
desarrumado, devido a um rol infindável de complicações que o senhor nem
imagina! – disse eu.
–
Uma
coisa não tem a ver com a outra!
– A
minha atitude não foi intencional e ainda lhe digo mais, foi a primeira vez que
tal coisa me aconteceu! E pode acreditar que tenho percorrido o país de norte a
sul! – respondi-lhe, tentando amolecer a sua vontade de me multar, mas ele não
me pareceu estar pelos ajustes.
–
Então,
fique sabendo que hoje já ouvi cinco versões idênticas à sua! Se eu lhe tivesse
dado ouvidos ainda não tinha elaborado nenhum auto.
–
Acredito,
mas o que acabei de dizer é a pura verdade!
– Tenho
muita pena, mas não o posso atender! – retorquiu ele com um leve sorriso que me
pareceu de satisfação.
Aí, quase perdi as estribeiras e apesar do agente estar a
cumprir a sua função, passei ao ataque tentando com isso tirar alguns
dividendos e acrescentei de imediato:
–
É
fantástico! Percorro diariamente as estradas da região, desde que começou o
tempo invernoso, já lá vão quase dois meses e nunca por aqui vi um polícia.
Hoje, para mal dos meus pecados, assim que apareceu uma réstia de sol, já estou
inquietado. Francamente! Será que vossas excelências não têm nada mais
importante para fazer, ou estavam precisamente à minha espera para me chatear?
Não vê que já venho farto de trabalhar! – ripostei quase em tom de desafio. Mas
o agente continuava a escrever numa calma tão perturbante que parecia ignorar o
que eu dizia, mas logo que me calei disse-me em tom vincadamente irónico:
–
É
isso mesmo! Como é que adivinhou? Mas aconselho-o a moderar os seus
comentários!
–
Não
me diga que não me posso defender! – insisti.
– Tem todo
o direito do mundo, desde que não ultrapasse o limite! – respondeu ele.
Eu via nos seus olhos que perante as minhas afirmações de
desafio fazia um enorme esforço para não me responder de forma rude, como as
minhas palavras indelicadas poderiam merecer. Ainda assim, limitou-se a uma
pequena advertência para além de, naturalmente, de me punir. Mas, em abono da
verdade, agora até acho que foi bem aplicada. Eu estava a pedi-las e apenas me
limitei a dizer:
–
Quer
então dizer-me que já ganhei o dia, não é?
– Interprete
como achar mais conveniente! Como sabe, estou a desempenhar o meu trabalho e
não posso branquear as situações de infração só para agradar ao transgressor.
Para isso, não valia a pena estar aqui. Bastaria colocar cá um placard, com a
fotografia de um polícia, que dava o mesmo resultado e não precisavam de me
pagar o ordenado! O que é que acha desta minha ideia?
–
Que
vocês arranjam sempre maneira de dar a volta ao texto como melhor vos convém!
– respondi sem dar o braço a torcer.
–
Francamente,
não me diga que não tenho razão? – insistiu o polícia com ar risonho de quem
sabia ter ganho a causa.
–
Olhe,
fique com a razão toda para si! Aquilo que eu sei é que, quem ganha a vida
honestamente, por mais que tente, nunca consegue evitar os sarilhos.
– É
o seu ponto de vista! – rematou ele, no momento em que me mandava assinar o
auto.
No final, apesar de todo esse meu sentimento de indignação,
fiz inversão de marcha e arranquei estrada fora, rindo de mim próprio pela
forma corajosa como dei voz ao meu protesto. De qualquer modo, devo confessar
que a caçada nesse dia me ficou muito cara.
Agora de uma coisa tenho a certeza, aquele confronto verbal a
par da multa serviu-me de emenda para futuras situações. – rematou, João
Pimenta, terminando a sua história, sem que os companheiros o tivessem
interrompido.
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