terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

O POLÍCIA AUSTERO







Enquanto João Pimenta, acompanhado por um grupo de amigos, aguardava que o almoço lhe fosse servido aproveitou para relatar o que lhe acontecera no dia anterior:
    Antes de mais – começou ele – faço questão de pedir alguma tolerância aos presentes, especialmente aqui ao meu amigo Gervásio, que é militar do exército e como tal ligado à disciplina militar, para alguma frase menos simpática da minha parte, mas quero, desde já, salientar que não tenho a mínima intenção de ofender quem quer que seja e muito menos os amigos.
    Francamente, fale à vontade homem! Era só o que faltava! Não obstante um conjunto de normas, recentemente implementadas, que parecem visar a privação de algumas liberdades, ainda não existe censura no país! – contrapôs o Gervásio.
    Então foi assim! – prosseguiu João Pimenta – quando regressava a casa, acompanhado aqui do meu compadre Sebastião, depois de ambos termos participado numa largada de perdizes num monte alentejano, na região de Avis, passei por uma situação bastante delicada. Como todos sabemos, por mais cuidado que tenhamos, nem sempre é fácil cumprir as regras de trânsito e ao mínimo descuido ficamos logo inquietados. Assim, quando me aproximava da cidade de Tomar, entrei por uma via secundária, para responder a uma necessidade fisiológica. Até aqui, nada mais natural, acontece a qualquer um e quando menos se espera. Porém, no regresso, logo que me apercebi de que para retomar o meu itinerário teria de percorrer uma distância superior a três quilómetros, resolvi atalhar por uma viela que não tinha mais de quinhentos metros e dava acesso direto à estrada principal. Com um senão, tinha um sinal de sentido proibido do lado em que eu me deslocava. É claro que àquela hora havia pouco trânsito e não pensei duas vezes. Arranquei, estrada fora, com o cuidado indispensável para não colocar a nossa vida em risco nem a de terceiros. Contudo, para mal dos meus pecados, assim que percorri uma centena de metros deparei-me com um carro da polícia, parado na berma, onde os agentes pareciam estar a acertar contas com um pobre diabo qualquer que, certamente, cometera o mesmo delito que eu. Evidentemente que não liguei à sua presença e continuei normalmente o meu caminho esperando não hipotecar a minha boa disposição. Não perdi pela demora. Assim que os agentes me viram, ouvi uma forte apitadela que até assustou aqui o meu compadre. Confrontado com o som agudo da advertência, travei repentinamente e olhei em redor fingindo descortinar de onde partira o aviso. Contudo, logo que me encarei com um agente, questionei-o em voz alta:
    Há algum azar senhor polícia?
 O senhor está a circular em sentido proibido! Não viu o sinal? – disse prontamente o agente, que no momento me lançou um olhar impertinente de quem há muito esperava por uma transgressão.
    Qual sinal? – questionei fingindo desconhecer do que ele falava.
  O sinal que está colocado no cruzamento, mais precisamente no local onde entrou nesta via! – respondeu o polícia enquanto se deslocava ao meu encontro para me solicitar a documentação.
  Mais essa! Não! Não vi sinal algum senhor polícia! Só se estiver escondido atrás de algum arbusto, como acontece em muitos locais por este país fora! – repliquei, pensando daí retirar dividendos.
    E o cavalheiro que o acompanha também não viu o sinal?
    Oh!... Ele nem sequer tem carta de condução e muito menos conhece os sinais de trânsito! – atalhei de imediato, para evitar que o Sebastião abrisse a boca, receando que derrubasse as minhas defesas.
    Então saia do carro e venha comigo! Vamos lá confirmar para a eventualidade de, entretanto, ter sido arrancado! – ordenou o polícia com cara de poucos amigos.
Embora eu soubesse que tinha cometido a infração, tentei fazer prevalecer o meu ponto de vista para ver se me safava. Então, saí do carro e acompanhei o agente até ao cruzamento onde eu entrara que era precedido de uma ligeira curva. Assim que chegámos junto do sinal, o polícia, não se ficou por meias palavras, olhou para mim de semblante carregado e disparou:
    Se o senhor não viu um sinal deste tamanho, francamente, sou forçado a dizer-lhe que está a precisar de óculos! Tenho de o propor a uma junta médica!
 Tem toda a razão! Não reparei no sinal! – respondi, engolindo em seco e ouvindo atentamente o que ele me dizia.
    Muito bem! Está provado que desobedeceu à sinalização vertical colocada nos termos regulamentares! Portanto, por muito que me custe, sou forçado a levantar-lhe uma coima! – aventou de imediato o polícia.
    Deixe passar isso, homem!... Sabe que ultimamente tenho andado com o sótão desarrumado, devido a um rol infindável de complicações que o senhor nem imagina! – disse eu.
    Uma coisa não tem a ver com a outra!
   A minha atitude não foi intencional e ainda lhe digo mais, foi a primeira vez que tal coisa me aconteceu! E pode acreditar que tenho percorrido o país de norte a sul! – respondi-lhe, tentando amolecer a sua vontade de me multar, mas ele não me pareceu estar pelos ajustes.
    Então, fique sabendo que hoje já ouvi cinco versões idênticas à sua! Se eu lhe tivesse dado ouvidos ainda não tinha elaborado nenhum auto.
    Acredito, mas o que acabei de dizer é a pura verdade!
  Tenho muita pena, mas não o posso atender! – retorquiu ele com um leve sorriso que me pareceu de satisfação.
Aí, quase perdi as estribeiras e apesar do agente estar a cumprir a sua função, passei ao ataque tentando com isso tirar alguns dividendos e acrescentei de imediato:
    É fantástico! Percorro diariamente as estradas da região, desde que começou o tempo invernoso, já lá vão quase dois meses e nunca por aqui vi um polícia. Hoje, para mal dos meus pecados, assim que apareceu uma réstia de sol, já estou inquietado. Francamente! Será que vossas excelências não têm nada mais importante para fazer, ou estavam precisamente à minha espera para me chatear? Não vê que já venho farto de trabalhar! – ripostei quase em tom de desafio. Mas o agente continuava a escrever numa calma tão perturbante que parecia ignorar o que eu dizia, mas logo que me calei disse-me em tom vincadamente irónico:
    É isso mesmo! Como é que adivinhou? Mas aconselho-o a moderar os seus comentários!
    Não me diga que não me posso defender! – insisti.
   Tem todo o direito do mundo, desde que não ultrapasse o limite! – respondeu ele.
Eu via nos seus olhos que perante as minhas afirmações de desafio fazia um enorme esforço para não me responder de forma rude, como as minhas palavras indelicadas poderiam merecer. Ainda assim, limitou-se a uma pequena advertência para além de, naturalmente, de me punir. Mas, em abono da verdade, agora até acho que foi bem aplicada. Eu estava a pedi-las e apenas me limitei a dizer:
    Quer então dizer-me que já ganhei o dia, não é?
  Interprete como achar mais conveniente! Como sabe, estou a desempenhar o meu trabalho e não posso branquear as situações de infração só para agradar ao transgressor. Para isso, não valia a pena estar aqui. Bastaria colocar cá um placard, com a fotografia de um polícia, que dava o mesmo resultado e não precisavam de me pagar o ordenado! O que é que acha desta minha ideia?
    Que vocês arranjam sempre maneira de dar a volta ao texto como melhor vos convém! – respondi sem dar o braço a torcer.  
    Francamente, não me diga que não tenho razão? – insistiu o polícia com ar risonho de quem sabia ter ganho a causa. 
    Olhe, fique com a razão toda para si! Aquilo que eu sei é que, quem ganha a vida honestamente, por mais que tente, nunca consegue evitar os sarilhos.
   É o seu ponto de vista! – rematou ele, no momento em que me mandava assinar o auto.
No final, apesar de todo esse meu sentimento de indignação, fiz inversão de marcha e arranquei estrada fora, rindo de mim próprio pela forma corajosa como dei voz ao meu protesto. De qualquer modo, devo confessar que a caçada nesse dia me ficou muito cara.
Agora de uma coisa tenho a certeza, aquele confronto verbal a par da multa serviu-me de emenda para futuras situações. – rematou, João Pimenta, terminando a sua história, sem que os companheiros o tivessem interrompido.
 

Sem comentários:

Enviar um comentário