Nos fins do século XX, os cervídeos
multiplicaram-se pelas florestas da Beira Serra, em grande parte, divido ao
excelente habitat que se estendia por vastas áreas de pinheiros, moitas, carquejas e medronheiros. Assim, todo aquele aumento
de espécies culminou na invasão frequente das propriedades agrícolas, por parte
daqueles, em busca de uma dieta diversificada. Por sua vez, alguns agricultores
da região acharam-se no direito de defender as suas courelas daquela praga,
alegando que os herbívoros lhes causavam elevados prejuízos nas culturas e que
em contrapartida as organizações florestais não assumiam as necessárias
indeminizações. No entanto, para os que se ocupavam na captura dos animais
existia um sério risco de virem a ser apanhados e acusados de caçadores
furtivos, atendendo a que para além de se tratar de uma caça clandestina alguns
exemplares possuíam um chip de monitorização a cargo dos técnicos florestais, o
que seria fácil seguir-lhe o rasto bem como aos autores de tais práticas.
Contudo, depressa os caçadores desses animais se habituaram a contornar o
obstáculo que esse meio eletrónico representava.
Certo dia, em pleno inverno, quando
Alberto, um antigo emigrante em França que se radicara na aldeia onde nascera,
chegou à propriedade que possuía nas imediações da povoação, deu conta que os
veados lhe haviam danificado grande parte da cultura de vegetais de várias
espécies.
Ao ver o produto do seu trabalho e
sustento naquelas condições, ficou de tal modo perturbado que decidiu logo
defender a sua horta de tais predadores. Nem a esposa, receosa que algo de
grave daí pudesse resultar, o conseguiu demover.
Ora, sabendo que é ao crepúsculo que
aqueles animais se movimentam com maior liberdade, tanto pelos matagais, como
até pelas courelas de semeadura, improvisou um plano para mais facilmente lhes
fazer frente.
Embora tivesse receio de vir a ser
apanhado em flagrante, tudo o levava a querer que tal não viesse a acontecer:
por um lado, durante a noite a fiscalização não lhe parecia ter a mesma
eficácia; por outro, tinha a certeza de que ninguém suspeitaria das suas
intenções, mas nunca seria demais acautelar-se para não se ver envolvido num
crime de caça furtiva.
Para levar por diante os seus
intentos, começou por se ataviar de modo a eliminar os possíveis odores
corporais, muniu-se de uma caçadeira que comprara em França para utilizações
clandestinas, atrelou o reboque ao trator agrícola, equipou-se a rigor onde não
faltou a garrafita de cachaça para lhe fazer companhia no relento da noite e
assim que o sol se pôs, meteu-se a caminho da fazenda de semeadura a fim de
montar a emboscada aos cervídeos.
Quando saía da aldeia, foi
interpelado pelo compadre Clemente que ao estranhar aquele movimento tardio,
resolveu questionar:
– Compadre!...
Para onde vai a esta
hora?
– Vou buscar
um pouco de lenha para a lareira! – respondeu prontamente Alberto.
– Precisa da
minha ajuda?
– Não, não, obrigado!
Eu cá me arranjo! – respondeu um pouco embaraçado.
– Não tarda é
noite e um auxílio nunca se deve rejeitar!
– Oh compadre,
fica para outra vez!
– Muito bem,
você é que sabe!
Depois daquele diálogo com que não
contara, Alberto ficou um pouco receoso não fosse o Clemente dar o alarme pela
sua demora. Contudo, retomou a marcha indiferente ao que daí pudesse resultar
até porque, não tinha que lhe dar qualquer justificação dos seus
atos.
Assim que entrou na fazenda e
desligou o trator, pegou logo na garrafa de aguardente e bebeu duas goladas. Tinha
necessidade de massajar a garganta na esperança de que a cachaça lhe controlasse
a ansiedade. Depois escolheu uma posição sobranceira sobre toda a propriedade
de forma a observar sem ser notado. Por fim, carregou a espingarda, sentou-se e
apoiou-a sobre as pernas, pronto para a ação. Ao fim de uma hora de espera,
diluiu-se na escuridão indiferente ao frio que se fazia sentir e que anunciava
um manto de geada. Apesar daquela adversidade, Alberto foi resistindo sem se
movimentar para não denunciar o seu disfarce.
Enquanto esperava, olhou o Céu
repleto de estrelas observando as constelações que cintilavam na imensidão do
universo e perdeu-se num desfilar de recordações esquecendo completamente o
motivo que o levara ali. Começou pelo seu tempo de emigrante clandestino nos
arredores de Paris, onde chegara sem um tostão no bolso depois de entregar aos
passadores oito contos que pedira emprestados. Para conseguir sobreviver
naquela terra, onde nem sequer a língua compreendia, sujeitou-se a impensáveis
provações. Desenvolveu trabalho escravo e viveu em condições desumanas. Só,
volvidos três anos, passou a habitar uma casa digna desse nome e contou com a
companhia da esposa que entretanto permanecera em Portugal à espera de melhores
dias.
Repentinamente, um ruído inesperado,
vindo da floresta, gelou-lhe ainda mais as veias e acordou-o para o que o rodeava
naquele momento, despertando a sua atenção para algo que se movimentava em
redor. Com os olhos adaptados à escuridão, lobrigou por entre a folhagem que
lhe serviam de máscara a silhueta de um animal corpulento que se aproximava e
logo a seguir outro, não menos encorpado. Ambos avançavam cautelosos na busca
de refeição. Nesse momento, o coração de Alberto bateu mais forte ao ponto de ouvir
perfeitamente os batimentos cardíacos. Era o seu primeiro confronto com aquela
espécie cinegética maior e desconhecia o que poderia acontecer, mas foi
resistindo na esperança de que os veados se deixassem seduzir pelo apetite de
forma a ficarem perfeitamente acessíveis ao alcance dos tiros. Não esperou
muito. Ao fim de poucos minutos, que lhe pareceram uma eternidade, os animais
colocaram-se de tal modo a jeito que não seria difícil atingi-los. Então,
Alberto fez uma tentativa para levar a espingarda à cara, mas os braços
trémulos pareciam não lhe querer obedecer e quedou-se indeciso. Segundos
depois, respirou fundo, como quem buscava coragem, apontou e efetuou um disparo e
depois outro, sem qualquer certeza na precisão, ambos em direção ao animal que
lhe estava mais próximo. Após os disparos, aquele, ensaiou de imediato uma fuga
desenfreada, mas acabaria por tombar ao fim de trinta metros.
Os silvos e os ecos sucessivos ao
longo das montanhas foram de tal modo aterradores que Alberto ficou com a impressão
de que iriam, certamente, desencadear uma catástrofe. Para tentar evitar isso, só
queria fugir dali o mais rápido possível. Com as pernas entorpecidas e tentando
não se deixar tomar pelo pânico, esforçou-se para a carregar o animal que
ocultou com alguns feixes de vides de videira.
Já a caminho de regresso equacionou a forma mais expedita para dar continuidade ao processo em que se
envolvera, antes que o Sol anunciasse um novo dia que lhe poderia trazer sérias
consequências.
Quando abria o portão da entrada da
sua casa, foi surpreendido pelo Clemente que alertado pelo ruído do trator a
horas tardias veio a correr saber do sucedido para tamanha demora e logo que
viu o Alberto, aventou:
– Então
compadre! Só agora? Olhe que eu já estava preocupado. Não me diga que aconteceu
algum azar?
– Está tudo
bem! Mas preciso da sua ajuda para descarregar a lenha! Entre e feche a portão!
Depois do bicho esfolado, duas
questões se colocaram aos dois homens: o chip tanto poderia estar na carne,
como na pele. Para contornar esse obstáculo não havia tempo a perder. Em
primeiro lugar, Alberto ordenou à esposa que preparasse uma caldeira para
transformar de imediato a carne do cervídeo em chanfana, com a certeza de que
caso o equipamento eletrónico estivesse alojado na carne não resistiria à
temperatura elevada da cozedura. Depois pensou numa solução para se livrar da
pele. Não poderia, de forma alguma, deixar pontas soltas, senão corria o risco
de vir a ser descoberto. Para evitar que tal acontecesse, meteu a pele dentro
de um saco, montou na moto e abalou a caminho do açude da barragem. Logo que
ali chegou, ainda o dia não havia clareado, adicionou várias pedras ao conteúdo do saco e atirou-o para a água, no local onde a barragem tinha maior profundidade, convencido de que o chip não seria facilmente localizado.
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