quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

CAÇADA FURTIVA





Nos fins do século XX, os cervídeos multiplicaram-se pelas florestas da Beira Serra, em grande parte, divido ao excelente habitat que se estendia por vastas áreas de pinheiros, moitas, carquejas e medronheiros. Assim, todo aquele aumento de espécies culminou na invasão frequente das propriedades agrícolas, por parte daqueles, em busca de uma dieta diversificada. Por sua vez, alguns agricultores da região acharam-se no direito de defender as suas courelas daquela praga, alegando que os herbívoros lhes causavam elevados prejuízos nas culturas e que em contrapartida as organizações florestais não assumiam as necessárias indeminizações. No entanto, para os que se ocupavam na captura dos animais existia um sério risco de virem a ser apanhados e acusados de caçadores furtivos, atendendo a que para além de se tratar de uma caça clandestina alguns exemplares possuíam um chip de monitorização a cargo dos técnicos florestais, o que seria fácil seguir-lhe o rasto bem como aos autores de tais práticas. Contudo, depressa os caçadores desses animais se habituaram a contornar o obstáculo que esse meio eletrónico representava.     
Certo dia, em pleno inverno, quando Alberto, um antigo emigrante em França que se radicara na aldeia onde nascera, chegou à propriedade que possuía nas imediações da povoação, deu conta que os veados lhe haviam danificado grande parte da cultura de vegetais de várias espécies. 
Ao ver o produto do seu trabalho e sustento naquelas condições, ficou de tal modo perturbado que decidiu logo defender a sua horta de tais predadores. Nem a esposa, receosa que algo de grave daí pudesse resultar, o conseguiu demover.
Ora, sabendo que é ao crepúsculo que aqueles animais se movimentam com maior liberdade, tanto pelos matagais, como até pelas courelas de semeadura, improvisou um plano para mais facilmente lhes fazer frente. 
Embora tivesse receio de vir a ser apanhado em flagrante, tudo o levava a querer que tal não viesse a acontecer: por um lado, durante a noite a fiscalização não lhe parecia ter a mesma eficácia; por outro, tinha a certeza de que ninguém suspeitaria das suas intenções, mas nunca seria demais acautelar-se para não se ver envolvido num crime de caça furtiva. 
Para levar por diante os seus intentos, começou por se ataviar de modo a eliminar os possíveis odores corporais, muniu-se de uma caçadeira que comprara em França para utilizações clandestinas, atrelou o reboque ao trator agrícola, equipou-se a rigor onde não faltou a garrafita de cachaça para lhe fazer companhia no relento da noite e assim que o sol se pôs, meteu-se a caminho da fazenda de semeadura a fim de montar a emboscada aos cervídeos. 
Quando saía da aldeia, foi interpelado pelo compadre Clemente que ao estranhar aquele movimento tardio, resolveu questionar:
   Compadre!... Para onde vai a esta hora?                                       
 Vou buscar um pouco de lenha para a lareira! – respondeu prontamente Alberto.
    Precisa da minha ajuda?
    Não, não, obrigado! Eu cá me arranjo! – respondeu um pouco embaraçado.
    Não tarda é noite e um auxílio nunca se deve rejeitar!
    Oh compadre, fica para outra vez!
    Muito bem, você é que sabe! 
Depois daquele diálogo com que não contara, Alberto ficou um pouco receoso não fosse o Clemente dar o alarme pela sua demora. Contudo, retomou a marcha indiferente ao que daí pudesse resultar até porque, não tinha que lhe dar qualquer justificação dos seus atos.   
Assim que entrou na fazenda e desligou o trator, pegou logo na garrafa de aguardente e bebeu duas goladas. Tinha necessidade de massajar a garganta na esperança de que a cachaça lhe controlasse a ansiedade. Depois escolheu uma posição sobranceira sobre toda a propriedade de forma a observar sem ser notado. Por fim, carregou a espingarda, sentou-se e apoiou-a sobre as pernas, pronto para a ação. Ao fim de uma hora de espera, diluiu-se na escuridão indiferente ao frio que se fazia sentir e que anunciava um manto de geada. Apesar daquela adversidade, Alberto foi resistindo sem se movimentar para não denunciar o seu disfarce. 
Enquanto esperava, olhou o Céu repleto de estrelas observando as constelações que cintilavam na imensidão do universo e perdeu-se num desfilar de recordações esquecendo completamente o motivo que o levara ali. Começou pelo seu tempo de emigrante clandestino nos arredores de Paris, onde chegara sem um tostão no bolso depois de entregar aos passadores oito contos que pedira emprestados. Para conseguir sobreviver naquela terra, onde nem sequer a língua compreendia, sujeitou-se a impensáveis provações. Desenvolveu trabalho escravo e viveu em condições desumanas. Só, volvidos três anos, passou a habitar uma casa digna desse nome e contou com a companhia da esposa que entretanto permanecera em Portugal à espera de melhores dias. 
Repentinamente, um ruído inesperado, vindo da floresta, gelou-lhe ainda mais as veias e acordou-o para o que o rodeava naquele momento, despertando a sua atenção para algo que se movimentava em redor. Com os olhos adaptados à escuridão, lobrigou por entre a folhagem que lhe serviam de máscara a silhueta de um animal corpulento que se aproximava e logo a seguir outro, não menos encorpado. Ambos avançavam cautelosos na busca de refeição. Nesse momento, o coração de Alberto bateu mais forte ao ponto de ouvir perfeitamente os batimentos cardíacos. Era o seu primeiro confronto com aquela espécie cinegética maior e desconhecia o que poderia acontecer, mas foi resistindo na esperança de que os veados se deixassem seduzir pelo apetite de forma a ficarem perfeitamente acessíveis ao alcance dos tiros. Não esperou muito. Ao fim de poucos minutos, que lhe pareceram uma eternidade, os animais colocaram-se de tal modo a jeito que não seria difícil atingi-los. Então, Alberto fez uma tentativa para levar a espingarda à cara, mas os braços trémulos pareciam não lhe querer obedecer e quedou-se indeciso. Segundos depois, respirou fundo, como quem buscava coragem, apontou e efetuou um disparo e depois outro, sem qualquer certeza na precisão, ambos em direção ao animal que lhe estava mais próximo. Após os disparos, aquele, ensaiou de imediato uma fuga desenfreada, mas acabaria por tombar ao fim de trinta metros. 
Os silvos e os ecos sucessivos ao longo das montanhas foram de tal modo aterradores que Alberto ficou com a impressão de que iriam, certamente, desencadear uma catástrofe. Para tentar evitar isso, só queria fugir dali o mais rápido possível. Com as pernas entorpecidas e tentando não se deixar tomar pelo pânico, esforçou-se para a carregar o animal que ocultou com alguns feixes de vides de videira.
Já a caminho de regresso equacionou a forma mais expedita para dar continuidade ao processo em que se envolvera, antes que o Sol anunciasse um novo dia que lhe poderia trazer sérias consequências. 
Quando abria o portão da entrada da sua casa, foi surpreendido pelo Clemente que alertado pelo ruído do trator a horas tardias veio a correr saber do sucedido para tamanha demora e logo que viu o Alberto, aventou:
    Então compadre! Só agora? Olhe que eu já estava preocupado. Não me diga que aconteceu algum azar?
    Está tudo bem! Mas preciso da sua ajuda para descarregar a lenha! Entre e feche a portão! 
Depois do bicho esfolado, duas questões se colocaram aos dois homens: o chip tanto poderia estar na carne, como na pele. Para contornar esse obstáculo não havia tempo a perder. Em primeiro lugar, Alberto ordenou à esposa que preparasse uma caldeira para transformar de imediato a carne do cervídeo em chanfana, com a certeza de que caso o equipamento eletrónico estivesse alojado na carne não resistiria à temperatura elevada da cozedura. Depois pensou numa solução para se livrar da pele. Não poderia, de forma alguma, deixar pontas soltas, senão corria o risco de vir a ser descoberto. Para evitar que tal acontecesse, meteu a pele dentro de um saco, montou na moto e abalou a caminho do açude da barragem. Logo que ali chegou, ainda o dia não havia clareado, adicionou várias pedras ao conteúdo do saco e atirou-o para a água, no local onde a barragem tinha maior profundidade, convencido de que o chip não seria facilmente localizado.





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