Aquele inverno parecia não ter fim. Ao início da tarde, o vento rodara
novamente para Sudoeste soprando, ainda, com maior intensidade, fustigando a
vegetação e arrastando a folhagem, assolando toda a região Interior. As
nuvens baixas e carregadas moviam-se a grande velocidade ameaçando chuva
eminente sobre o pavimento molhado. A visibilidade tinha reduzido bruscamente e
Tiago, por precaução, ligou os faróis da viatura
para mais facilmente ser visto cumprindo, ao mesmo tempo, as regras legais para
a circulação automóvel. Em função do traçado e das condições climatéricas
adversas optou por velocidade moderada e condução defensiva.
Sentado a seu lado, Gabriel, que era o camarada que o acompanhava naquela
missão, seguia descontraidamente recostado no banco, não disfarçando um porte
sonolento que o ia mantendo indiferente ao tráfego e ao cenário invernoso que
teimava em os acompanhar em mais um dia de trabalho. Apesar de Gabriel ser
ligeiramente mais novo do que Tiago, a sua aparência também espelhava bem o desgaste
e a saturação, do convívio constante com incontáveis situações limite, ao longo
das etapas vividas.
Nesse dia, iam deixando para trás mais um período de trabalho fatigante recheado de episódios próprios da função policial que desempenhavam. Embora transportassem
na bagagem uma dose reforçada de tolerância, não era a suficiente para que
permitissem picardias de qualquer tipo. Aquele
turno tinha sido particularmente difícil, onde
não faltaram os habituais sobressaltos, originados por alguns prevaricadores
que, com o seu comportamento rebelde, lhes iam dificultando a tarefa. Situações que se não
fossem para levar a sério, em alguns casos, poderiam muito bem ser conotadas
como capítulos de uma novela burlesca.
Minutos mais tarde, receberam um alerta via rádio emitido por outros
camaradas de trabalho em serviço perto da fronteira, informando que um condutor
de uma viatura com matrícula francesa que, para
além de infringir as regras de circulação, ainda desobedecera ao sinal de
paragem. Uma infração que embora não ocorresse com muita frequência acontecia algumas
vezes. Em função disso, posicionaram-se em local e de forma a não lhe permitirem
outra proeza idêntica.
Depois de alguns minutos de espera, o veículo acabaria por ser intercetado,
acatando de imediato a ordem de paragem. Contudo, à medida que Tiago se ia
aproximando para a respetiva identificação, o motorista aventou de imediato em
francês:
– Senhor polícia, não me diga que já apanharam o gajo que me roubou os
documentos! Pois, eu bem dizia aqui à minha esposa que Portugal era um país
pequeno e os ladrões não tinham muito onde se esconder!
– O senhor condutor tem que ser mais específico! Não sei do que está a falar! Mas, antes de mais, faculte-me os
documentos! – disse Tiago em português, ciente de que se tratava de um cidadão
nacional.
– Je ne comprend pas, monsieur l’agent de police! – retorquiu o condutor,
dando ênfase à frase. Ao mesmo tempo, ainda com as mãos apoiadas no volante,
passou um olhar severo pela senhora que o acompanhava, como se a quisesse
impedir de se pronunciar. Seguidamente, trancou a porta e subiu o vidro da
janela de modo a deixar apenas uma pequena frincha.
Tiago receando estar a fazer uma avaliação incorreta relativamente à
nacionalidade do homem, repetiu a questão em francês momento em que o motorista
abriu ligeiramente a janela e respondeu:
– Fique sabendo que eu não sou nenhum ignorante! Falo português, francês e
até italiano! Atendendo a que o meu carro tem matrícula francesa você é que
tinha o dever de me abordar em francês. Em relação aos documentos,
infelizmente, não lhos posso mostrar. Mal cheguei a Portugal entrei num
restaurante para tomar o pequeno-almoço e roubaram-me a carteira. Tinha lá
todos os documentos, dinheiro e até uma caderneta do banco. Até parecia que o
larápio estava precisamente à minha espera para me roubar.
– Já apresentou queixa desse facto? – continuou Tiago.
– Sim, sim! Logo que reiniciei a viajem, apresentei queixa a uns colegas seus
que encontrei pelo caminho! A propósito disso, olhe, até comentei aqui com a
minha mulher, a forma correta e diferenciada com que me trataram.
– Muito bem!...
– Afinal qual é o motivo desta paragem? É só para chatear os emigrantes, ou
quê!? Não foi para isso que eu cá vim passar as férias do Carnaval! – desabafou
o homem misturando os idiomas como se tratasse de uma salada de frutas.
– Pretendo a sua identificação para proceder à fiscalização.
– Mais esta, e eu a pensar que...
– Como certamente se recordará, aconteceu… – Tiago detalhou as infrações que
o homem cometera.
Entretanto já familiarizados com o habitual procedimento insurgente de
alguns condutores, quando estes eram interpelados por motivo de infração,
Gabriel apressou-se a bloquear a área, com um veículo pesado, tentando
minimizar qualquer surpresa.
– Era só o que me faltava! Não queriam mais nada! Não pago, nem quero saber
disso para nada! – retorquiu o condutor, com voz irritada e gesticulando em
aparente perturbação.
– Pois! É precisamente nesse ponto que nós estamos em total desacordo! – disse
pacientemente Tiago.
Num gesto repentino de intimidação, o motorista fechou completamente os
vidros e ligou o motor em alta aceleração, como se aguardasse a largada numa
qualquer prova de competição automóvel. Enquanto acelerava, olhava
repetidamente para a frente e retaguarda, como se procurasse o espaço
suficiente para encetar uma fuga, simulando cilindrar quem o tentasse impedir.
Ao fim de alguns segundos, acabaria por concluir a sua impotência, mas
continuou fechado dentro do habitáculo, como se isso evitasse a sua
responsabilização.
– Nem hoje!... Nem hoje, me livro de inquietações! – desabafou Tiago para com
os seus botões, levando a mão ao boné, como se com esse gesto afastasse para
longe os momentos de stress que teimavam em não lhe dar folga. Fez uma pequena
pausa e deslocou-se ao encontro do camarada, dizendo em murmúrio:
– Aciona o reboque!
Dez
minutos mais tarde, a viatura foi içada para o pronto-socorro com a resistência
do condutor que, continuando hermeticamente fechado, tentava impedir a remoção
pela travagem. Mas, apesar da oposição, o veículo acabaria por seguir para o
parqueamento com os ocupantes a bordo…
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