sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

DESPEJO IMPREVISTO



Naquele sábado de janeiro, a noite caiu fria sobre a aldeia do Vale Cimeiro. À medida que a escuridão se abatia sobre a região toda a povoação ia mergulhando no silêncio, apenas, quebrado, de quando em vez, pelo bater de uma porta ou por palavras soltas de quem entrava ou saía de casa na rota do café e da taberna onde o movimento ao fim de semana parecia não ter parança. Era assim durante todo o ano e nem o rigor do inverno lhes alterava os hábitos.  
Era na taberna da Dona Júlia, junto à lareira alimentada com torgas de moita, que os viciados do jogo da sueca passavam o serão a embaralhar, a dar e a bater as cartas na mesa. A equipa que perdia cada série de quatro vasas pagava, logo a seguir, uma rodada de tinto. Por vezes, o calor do jogo, com a ajuda dos tintos, dava origem a discussões que, com a pronta intervenção da taberneira, eram rapidamente sanadas.
Entre os jogadores contava-se Joaquim da Pulga que era cliente habitual da casa, sempre que se encontrava por perto, mas naquela noite parecia bastante deprimido. O seu aspeto carrancudo contrastava, nitidamente, com a sua habitual boa disposição. Para além do desentendimento que tivera com a esposa e do qual lhe resultara um enorme hematoma sobre a vista direita, estava numa situação financeira muito embaraçosa. Talvez por isso se mantivesse encostado ao balcão sem manifestar vontade de jogar nem, tão pouco, de dialogar com os parceiros habituais. Basílio bem se esforçou para indagar o que lhe acontecera, a par de o tentar convencer a pegar no baralho, mas de nada lhe valeu. Joaquim fechara-se de tal modo ao diálogo que nem a ideia de manusear as cartas lhe trazia a fala de volta. 
Ninguém, dos presentes, fazia a mínima ideia das preocupações que lhe ocupavam a mente e que se relacionavam com a sua pretensão em ir a casa do Virgílio, para tentar receber as rendas que este lhe devia. Todavia, como ainda era cedo para a hora que o inquilino lhe marcara, pediu mais um tinto à taberneira para regar a garganta sequiosa e matar o tempo que lhe demorava a passar. Assim, enquanto os amigos jogavam em ambiente fraterno, foi bebendo copo atrás de copo, como se buscasse no vinho a coragem de que precisava para enfrentar as habilidades do homem a quem arrendara a casa. A certa altura, depois de olhar para o relógio colocado atrás do balcão, voltou-se para os amigos dizendo em voz audível para todos:
- Faltam cinco para as dez! Está na hora de ir ao encontro do caloteiro! Desta vez espero receber tudo o que ele me deve! Caso contrário não responderei por mim e esta noite ficará para a história como a noite da “vingança do senhorio enganado”.
- Eh pá! Finalmente acordaste! Até pensei que estivesses zangado com a malta! - gritou o Basílio com ar de espanto.
- Digamos que estou, apenas, ansioso para ir receber o meu dinheiro! 
- Há é isso! Então, não tenhas pressa, homem! Bebe mais um copito e manda vir uma rodada para nós para ver se a rapaziada aquece! – disse Basílio que, entretanto, impusera uma pausa no jogo.
- Hum!... Até parece que estás feito com o Virgílio para me tentares impedir de receber aquilo que é meu!
- Oh Joaquim!... Não te quero desanimar, mas, se for verdade o que se fala por aí, duvido que tenhas sorte! O gajo tem dívidas em todo o lado!
- Nunca acreditei na língua viperina deste povo que condena inocentes e iliba criminosos com a mesma facilidade de quem bebe um copo de tinto, mas no caso deste artista é capaz de ter algum fundamento. 
- Hum! Não me digas que foi ele que te surrou? – questionou Maltês, fazendo um esgar de intriga e continuou – tens a vista toda pisada! 
- Até parece que me conheces há dois dias! Coitado, aquele escanzelado era lá homem para mim? Isto é apenas fruto de uma queda, devido a uns tintos a mais! 
Logo a seguir, Joaquim da Pulga, com ar decidido, levou a mão ao copo, escorropichou o resto do vinho e visivelmente irritado desandou debaixo do olhar expetante dos amigos que só retomaram o jogo depois daquele cruzar a soleira da porta. 
Havia já quatro meses que Virgílio não lhe pagava a renda e o dinheiro fazia-lhe muita falta para pagar à Dona Júlia a quem, para além das bebidas, também devia as mercearias. 
Constava-se que o inquilino se endividara no jogo, à mistura com noitadas na cidade, convivendo com amantes de gostos requintados. A própria esposa, impotente para o fazer enveredar por outros caminhos, depois de muitos desentendimentos que terminavam quase sempre com agressões mútuas, deixara-o entregue ao seu devaneio e fora viver para casa dos pais. 
Quando Joaquim da Pulga deixou a taberna já levava um grão na asa, mas nada que lhe esquentasse as ideias, ao ponto de perder completamente as estribeiras ou até de se deixar manipular pelas habituais palavras mansas do Virgílio. Arrependido por ter alugado a casa a um um homem sem palavra, bateu ruidosamente à porta da casa de que era senhorio e ficou à espera de uma resposta que acabaria por não chegar. Repetiu o gesto vezes sem conta, indiferente à pacata vizinhança, até se convencer que o inquilino faltara mais uma vez ao que haviam combinado. 
Tratava-se de uma vivenda antiga constituída por rés-do-chão e primeiro andar. A frente dava para um pequeno pátio que, por sua vez, se confrontava com a via pública. Uma viela estreita onde não se cruzavam dois carros, mas que era repleta de prédios em ambos os lados da rua e habitados, maioritariamente, por gente ordeira e cumpridora dos seus deveres de cidadania. 
- Volto mais logo! Não penses que te escapas! – desabafou Joaquim da Pulga, em voz alta, como se pressentisse que o Virgílio o estava a ouvir e concluiu que aquele faltara mais uma vez a sua palavra.
Com o passar do tempo, a taberna fechou e os amigos do Joaquim mantiveram-se à porta do edifício na esperança de que o Joaquim trouxesse algum dinheiro fresco e lhes pagasse um copo no café. Não esperaram muito, ao fim de poucos minutos aquele regressou à presença deles e de imediato exclamou:
- Oh Basílio!... Tinhas razão, o aldrabão enganou-me mais uma vez!  
- Eu bem te dizia que ele não era de boas contas!
- Isso é o que estamos para ver! Vai pagar tudo com língua de palmo ou eu não me chame Joaquim!
- Queres um conselho? – intrometeu-se Maltês – Encosta-o à parede que é o que ele merece, caso contrário nunca mais vês um tostão. 
- Se ele se convenceu que está livre de mim, está muito enganado, daqui a pouco vai ter uma surpresa! 
- Agora, tem calma e vamos ao café tomar um copo para aquecer a garganta que estou cheio de frio. Como, certamente, não tens dinheiro paga aqui o Adriano que ainda agora lhe vi guardar uma nota de vinte. Infelizmente, hoje já ninguém confia nas pessoas sérias, até a teimosa da velha deixou de nos dar tolerância enquanto esperávamos por ti alegando que já tínhamos bebido demais, nem sequer nos quis aviar a rodada habitual de despedida! – lamentou o Basílio.
Assim, com aquela mágoa em mente, Joaquim da Pulga e os amigos entraram no tasco, ocuparam uma mesa e ali se mantiveram a beber até o estabelecimento fechar perto das duas horas da manhã.
Logo que abandonaram o café cada um seguiu para as suas residências. No entanto, Joaquim da Pulga, indiferente à geada que cobria de branco toda a aldeia, encaminhou-se para a casa de Virgílio mais determinado do que nunca. Logo que ali chegou, chamou-o, várias vezes, em voz alta. Chamamentos que acompanhava com batidas ruidosas na porta ao ponto de os vizinhos lhe apelarem contenção e respeito pelo seu sossego. Joaquim que, em situação normal, era incapaz de faltar ao respeito a alguém, agora, a todos respondia com a indiferença provocante de quem se estava nas tintas para tudo e a determinada altura, gritou:
- Estás a ouvir aldrabão, tens um minuto para abrir a porta senão vou eu aí conversar contigo!... Olha!... Oh caloteiro!... Não te volto a avisar!... 
- Oh seu borrachola! Tenha vergonha! Ainda não se apercebeu que o homem não está em casa? – gritou, de entre os descontentes, um vizinho mais afoito que assomou à janela do prédio que se situava mesmo em frente.
- Não reclamem!  A festa ainda nem começou!... Daqui a pouco já vão ter razões para isso!... Tenham calminha porque a noite vai ser muito longa!... – berrou Joaquim da Pulga de cabeça perdida.   
Perante o tom ameaçador que exibia, alguns vizinhos acomodaram-se no seu canto na expectativa do que iria acontecer. Outros riam-se daquele pobre diabo, encharcado em álcool e magoado pela falta de palavra do inquilino. Contudo, ninguém o tentou impedir de levar a cabo o ato tresloucado que as suas ameaças indiciavam.  
Como o Virgílio não deu sinal, Joaquim rebentou com a porta da entrada e invadiu a habitação pronto a descarregar a sua fúria em quem lhe fizesse frente. Depois de revistar o andar do rés-do-chão em busca do inquilino, subiu ao primeiro andar, abriu as janelas e começou a despejar, para o pátio, todo o recheio ali existente. Os estrondos sucediam-se a um ritmo constante e aterrador a que a noite se encarregava de dar maior destaque. Inteiros ou fracionados, todos os móveis, objetos e roupas tiveram o mesmo destino impiedoso até a casa ficar completamente vazia.
Uma hora depois, já cansado e saciado de toda aquela turbulência, abeirou-se da janela ainda ofegante, meteu a cabeça de fora e exclamou a plenos pulmões:
- Podem ficar tranquilos!... A primeira fase da operação já terminou! O rescaldo já não vai ser tão barulhento!... Ouviram todos, ou querem que vos faça um desenho!... – Fez uma pequena pausa para respirar e prosseguiu:
- Pronto, uma vez que ninguém tem dúvidas só me resta pedir desculpas pelo incómodo. Caso as queiram aceitar, claro!... Se não quiserem vão-se queixar ao sindicato!...  
Assim, Joaquim da Pulga baixou os estores, desceu a escada, encostou a porta e deteve-se então no pátio. Queria deixar tudo limpo e começou a transportar o que fora o recheio da casa para junto de um contentor do lixo...

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