sexta-feira, 11 de abril de 2014

DEPOIS DA SERVIDÃO




O Sargento Gervásio era um militar que, depois de mais de três décadas em que participara em muitas missões de alto risco, se encontrava na situação de reserva. Para além de outras, destacam-se duas mobilizações para a guerra colonial, uma para Angola outra para Moçambique. Nesses dois cenários integrara as mais variadas missões, mas sempre em locais onde a atividade da guerrilha era mais aguerrida 
Agora, estava refugiado na Serra num pequeno lugarejo situado próximo do rio Zêzere onde buscava o merecido sossego. Local onde esperava encontrar o aconchego que, por imperativo de missão, lhe fora negado ao longo da sua carreira de serviço onde, com resiliência, sempre evidenciara a sua abnegação estoica. 
Finalmente, aguardava o inevitável entardecer da vida longe das sombras desse passado que fora sempre impregnado dos mais variados sacrifícios, mas onde a estrelinha da sorte estivera do seu lado preservando, não só, a sua integridade física como até a de caráter. 
Sempre que recordava aqueles tempos tumultuosos, em que vivera sob um regime que rejubilava ao silenciar os mais fracos, ainda, era notório um pequeno rasgo de nostalgia pela forma como soube enfrentar todas as adversidades com que era confrontado, até mesmo em palcos de guerra. Da mesma forma, lamentava já não ter a idade e a vitalidade daquela época, mas fazia os possíveis para desenvolver uma atividade regular e ocupar o tempo disponível na lida campestre onde acompanhava o crescimento dos muitos produtos hortícolas que ele próprio ia semeando. Não queria ficar ocioso e aguardar o passar do tempo com a resignação pachorrenta de quem já não espera mais nada da vida. 
Agora, o Gervásio raramente se deslocava à cidade, mas quando tal acontecia era para participar em almoços de convívio na companhia de alguns camaradas do seu tempo que, após o afastamento profissional, comungavam, ainda, de elevado espírito de amizade e camaradagem. Não passava de um pretexto para se irem encontrando depois de uma geração inteira de trabalho impregnada de provações em que o relacionamento, entre eles, se fora tornando familiar. Todos esses encontros eram aproveitados para uma confraternização pura. Discutiam assuntos de interesse comum, partilhavam ideias e recordavam histórias, revivendo algumas etapas da caminhada dos sonhos desfeitos. Histórias verdadeiras, não só de momentos eternos e do sentimento do dever cumprido como também das dificuldades, de toda a ordem, que enfrentaram durante todo o percurso ativo. 
Durante os convívios, por vezes, surgiam birras entre alguns elementos do grupo a troco de uma simples teimosia. Todavia, o Gervásio, bom conhecedor da natureza humana, fruto também da sua experiência nas relações com o público, tratava logo de apaziguar os ânimos partindo da ideia de que algumas pessoas, a partir de certa idade, regridem em termos espirituais. Do mesmo modo, lamentava que a parte física não fizesse essa mesma trajetória recuando ao tempo da infância. Essa sim, seria uma mudança maravilhosa para toda a humanidade e que espantaria, até, os cientistas que há muito buscam uma fórmula para eternizar a juventude. 
É por demais evidente que o desgaste ao longo da vida vai tornando os homens mais frágeis e sensíveis, dando facilmente azo a melindres a pretexto das coisas mais insignificantes que poderemos imaginar. Em face disso, compete aos que ainda não atingiram essa fase decadente fazerem uma mediação tolerante e ponderada dos conflitos para que uma longa amizade não seja, subitamente, amputada devido a uma questão de menor importância.
Quando o Gervásio e os camaradas do seu tempo desempenhavam funções, todos os subalternos viviam um quotidiano de tal modo submisso que se tornaram mais solidários e leais, criando em torno desses valores muitas cumplicidades, mas norteando sempre o espírito de unidade que era uma das divisas da sua condição. Assim, viam nessa firme ligação um exercício de bravura e o melhor processo de irem superando as injustiças e as exigências desmedidas que surgiam a cada momento do seu quotidiano. Com o passar lento dos anos e a renovação de alguns quadros as mentalidades foram, felizmente, evoluindo para patamares de maior justiça. Contudo, o espírito de unidade reinante até então, nos escalões inferiores, foi-se mantendo, orgulhosamente, intacto na alma dos que iam restando.
Mais tarde, com a chegada dos mais novos, tudo se tornaria incomparavelmente diferente: por um lado, a liberdade deu origem a formas de trato muito mais humanas e civilizadas que, por si só, permitiram uma maior autonomia individual, a todos os níveis; por outro, a agitação quotidiana não concede, certamente, espaço para grandes amizades entre as pessoas para que se aglutinem em torno dos valores que, para as gerações anteriores, constituíam uma marca de referência.
Naquele dia, estavam reunidos em mais um convívio e a determinada altura, depois de a discussão ter versado vários assuntos, o Gervásio disse:
– Os temas de hoje conduziram-me a um passado com mais de quatro décadas ao encontro de algumas etapas que ainda povoam a minha memória, como foi o caso do cão que me acompanhou em algumas operações no mato, aquando do cumprimento da minha comissão em Angola. 
‘Era um pastor alemão – continuou ele, enquanto os restantes o escutavam, – lindo, pujante e corpulento, parecia um lobo. Também ele foi vítima daquela guerra estúpida que se fartou de molestar inocentes. Apesar de nunca ter sido treinado para isso, acompanhava-nos em muitas operações no mato e cooperava instintivamente na segurança das instalações de um pequeno destacamento perdido algures nas terras do fim do mundo, longe de tudo aquilo que, para nós, era minimamente elementar. Tratava-se de uma pequena subunidade que se ia articulando no terreno, conforme as necessidades de adaptação ao desenrolar da missão que lhe fora atribuída: garantir a segurança do pessoal e meios, empenhados na construção de uma estrada em zona de combate, mais precisamente, nas imediações do rio Sessa que se situa a leste do país. 
A função policial de que tínhamos sido incumbidos representava para nós um risco acrescido e para o qual não havíamos sido preparados. No entanto, para tentar minimizar as consequências que um ataque de surpresa poderia causar às nossas forças, deitávamos mão a tudo o que nos poderia dar alguma vantagem como fora o caso da adoção daquele animal que dava pelo nome de Nero. Só quem viveu aqueles dias atribulados poderá ter uma noção avalizada sobre o enorme sentimento de insegurança que sentíamos na selva. Era à noite que a nossa miserável fragilidade guerreira se tornava mais real e quase assumia laivos de crueldade. Ficávamos entregues a nós próprios no meio das trevas e de um abismo sem fim. Estávamos rodeados de múltiplos e indecifráveis ruídos, com o inimigo a rondar por perto e perfeitamente conhecedor do terreno e da nossa fragilidade de meios. Não passávamos de uma dúzia de gatos-pingados, sem comunicações e logo aí sem possibilidade de pedir a evacuação de um ferido ou até o apoio das forças colocadas em posições mais recuadas no terreno quando tal fosse necessário. Como se tudo isso não bastasse, só tínhamos permissão para fazer uso das armas depois de termos sido flagelados pelo fogo inimigo e nunca como forma de prevenir uma agressão como seria normal esperar numa qualquer frente de combate. Esta restrição à partida deixava-nos em desvantagem perante os rebeldes e logicamente aumentava as dificuldades de progressão e, em última instância, sem medidas políticas de permeio, contribuía de forma decisiva para eternizar o conflito. 
Enfim, com o passar dos dias, fomos convivendo de perto com a triste realidade de que não passávamos de peças de baixo valor sem possibilidade de opinar ou contestar ordens independentemente da sua legitimidade. Em resumo, éramos a peça mais barata de toda a máquina de guerra e incomparavelmente menos importante do que as armas e outros meios logísticos. 
Mas voltando ao cão, – prosseguiu o Gervásio, perante o ar atento dos companheiros, – nunca consegui entender a rapidez com que o animal se adaptou à família militar e às novas exigências, tornando-se, assim, num pisteiro de eleição que farejava o odor rebelde a quilómetros de distância. Qualidades que o tornaram num valoroso aliado das nossas forças. 
Certa madrugada, algures na selva, o Nero, integrado numa missão avançada, detetou a aproximação de um grupo inimigo que se preparava para atacar a nossa pequena guarnição assim que rompesse a aurora. Na realidade é nesse período de transição que o cansaço e a sonolência ficam mais evidentes tornando, assim, os homens mais vulneráveis. Mas voltando ao Nero, mal este se apercebeu de que os rebeldes se aproximavam e sem quebrar o silêncio, despertou a atenção da sentinela que, de imediato, alertou os restantes elementos para adotarem uma postura defensiva e assim forçarem a horda inimiga à debandada imediata.    
Tal como a maioria de nós, o Nero viveu dias atribulados longe de qualquer carinho e sujeito aos mais variados tormentos. O antigo dono era um colono embrutecido pela vida dura em terreno hostil. Estivera vários anos radicado num aldeamento no meio da selva, depois de se ter lançado na aventura africana, em busca de melhores condições de vida que não tinha na pátria mãe. Nesse tempo, para tentar fugir à concorrência comercial que alastrava um pouco por toda a colónia, acabara naquela terra situada a várias centenas de quilómetros longe do tecido citadino mais próximo. Ali, onde fora pioneiro na implantação de um comércio de produtos variados, foi estendendo a sua atividade à produção agrícola. Os primeiros anos foram, para ele, de franco progresso, mas com a chegada da guerrilha a sua vida tornara-se numa insegurança constante e em função disso, resolvera adotar um cão, ainda bebé, com a finalidade de o moldar aos seus caprichos na busca de alguma proteção. Assim, escolhera um Pastor Alemão apenas pelas caraterísticas da raça, tanto em robustez, com até em agressividade. Queria transformá-lo numa fera implacável como forma de preservar a sua segurança e proteger o seu estabelecimento onde vendia, algumas mercearias, roupas defeituosas e cortes de pano coloridos. 
Para o comerciante levar por diante os seus intentos, logo que o cachorro atingiu três meses de idade, procurou um indígena para que este lhe aplicasse, sistematicamente, alguns açoites. Não foi difícil encontrar um negro gentio que cumprisse à risca as suas ordens sem qualquer abalo de consciência. 
Mas, algum tempo depois, o comerciante rumou a outras paragens abandonando o animal à sua sorte que acabaria por se refugiar junto dos militares e em contrapartida nós passamos a contar com um colaborador fiel que sabíamos que nunca nos trairia.
Infelizmente, a partir do dia em que a tropa abandonou a sua posição no terreno, por força da transferência de poderes para a nova administração, muita gente foi deixada para trás ao livre arbítrio rebelde. Foram os grupos especiais que, combatiam ao nosso lado, irmanados dos nossos princípios e valores. Os estrangeiros que ficavam em sentido quando içávamos a nossa bandeira. Tudo isso, sem falar na população que colaborava connosco e estava aos poucos a aprender a nossa língua. Todos eles foram abandonados à sua sorte, sem qualquer preocupação, por parte dos políticos de então. O Nero também foi incluído nesse enorme grupo de dispensados que, certamente, não puderam contar com a tolerância dos novos dirigentes’. – concluiu o Gervásio.
Depois do Gervásio terminar a sua história, brindaram a mais um dia em que a sua sobrevivência se ia tornando, a cada momento, mais problemática…







sexta-feira, 21 de março de 2014

FUGINDO À INDIGÊNCIA






Cansado de um quotidiano de penúria, Joaquim Boavida resolveu dar novo rumo à sua vida. Apesar de trabalhar muitas horas por dia, quase de sol a sol, não ganhava o suficiente para sustentar a família que ia sobrevivendo no limiar da indigência.
Naquela época, o país estava mergulhado numa grande crise económica, (um pouco à semelhança do que se passa atualmente em que a ditadura dos mercados estabelece as suas regras e tudo gira à volta delas), e muita gente buscava na emigração, especialmente para França, a solução para a pobreza que grassava por quase toda a classe operária. Para isso, contatavam emigrantes já consolidados, reuniam o dinheiro exigido pelos passadores e partiam ilegalmente em busca de alguns francos que lhes mitigassem as carências.
Assim, Joaquim Boavida logo que recebeu uma resposta positiva de um amigo, emigrante em França, a quem solicitara que lhe arranjasse trabalho naquele país não pensou duas vezes: pediu dinheiro emprestado a um familiar, procurou um passador e na data acordada meteu-se a caminho.
Na madrugada da véspera de Natal de 1965, apanhou o comboio em Coimbra com destino a Vilar Formoso. Logo no início da viagem, receando vir a ser roubado, descalçou uma bota e acondicionou uma nota de mil escudos, entre a meia e o peito do pé. Uma reserva para fazer frente a qualquer emergência que pudesse surgir. Na bagagem, que se limitava a um pequeno saco de linhagem, levava, apenas, uma muda de roupa, por sinal, já muito ponteada pela sua esposa e alguns pedacitos de pão com sabor a conduto. Ainda se fazia acompanhar de um pequeno feixe de vides com a finalidade de não despertar a atenção da polícia política portuguesa, (PIDE), que à data controlava todos os movimentos dos cidadãos. Fora, assim, aconselhado pelo passador para dar a ideia de que ia trabalhar na vinha daquela região do país. 
Assim, em função do combinado, Joaquim Boavida abandonou o comboio no apeadeiro da Freineda, com o molho de vides debaixo do braço, à espera de um sinal que lhe desse alguma tranquilidade. Logo que se apeou, foi interpelado por um indivíduo que se pronunciava em castelhano e que de imediato o encaminhou para um barracão agrícola, onde já se encontravam outros sete candidatos a emigrantes, oriundos de várias regiões do país. Passaram ali a noite de coração apertado e rodeados de carências. Na madrugada seguinte, foram divididos em dois grupos. O grupo onde se integrava Joaquim Boavida foi o primeiro a sair. Orientado por uma mulher ainda jovem que conduzia um burro carregado com três molhos de vides, caminhou ao longo das propriedades em poisio, com o gelo a estalar debaixo dos pés até chegar a um abrigo improvisado junto à Ribeira de Tourões, já perto da fronteira onde ficaram à espera de ordens. Mais tarde, chegaria também ali o segundo grupo.
Ao início da noite, todos os elementos tiraram a roupa e fizeram a travessia da ribeira a vau, com água pela cintura, enfrentando a torrente e a temperatura gélida que ao crepúsculo ainda se tornara mais inclemente. Mas a vontade de vencer era grande e o frio cortante não constituiu obstáculo para lhes criar desmotivação. Logo que chegaram à outra margem foram conduzidos a outro esconderijo, um aqueduto que se situava perto da fronteira de Vilar Formoso, onde foram informados que a vigilância fronteiriça havia sido reforçada e como tal teriam que esperar o tempo que fosse necessário até aquela abrandar. Ao frio e mal alimentados, só ao início da noite seguinte, receberam uma refeição ligeira trazida por uma senhora idosa que lhes deu informações sobre a situação.
Finalmente, ao início da terceira noite, foram recolhidos pelo mesmo indivíduo que viram em Freineda e que conduzia um Citroen DS, vulgarmente conhecido como boca de sapo, de matrícula espanhola. Após uma rápida troca de palavras com aquele, ficaram a conhecer as regras a seguir durante a viagem em território espanhol. Joaquim Boavida e outro individuo, que eram os mais franzinos, foram encarcerados na bagageira e os restantes seis no habitáculo. 
Quando Joaquim Boavida entrou naquele espaço acanhado, sem ventilação e onde quase não se podia mexer, teve pensamentos de toda a espécie. Desde a ironia do seu apelido, passando pela possibilidade de via ser preso, até ao limite da sua resistência física, tudo lhe passou pela mente. Só ali, naquela clausura, mergulhado na escuridão e sujeito aos mais variados solavancos tomou verdadeira consciência da difícil aventura em que se metera. No entanto, sabia que não tinha alternativa. Não queria ser detido e estava totalmente dependente do passador, que apenas conhecera quando lhe entregara os treze mil e quinhentos escudos para o passar para França. Agora, desistir, para além de uma manifestação de fraqueza, seria alimentar um drama ainda maior. No país não tinha forma de ganhar o dinheiro para o poder restituir a quem lho emprestara. Por isso, não podia fracassar, teria de resistir até ao limite das suas forças sem esboçar protesto.
 Ao fim de quatro horas na mesma posição, mergulhado na escuridão, sentia-se tonto, já mal conseguia respirar e os membros já não reagiam aos seus impulsos cerebrais. Contudo, ia resistindo com a convicção de que a sua vida iria mudar para melhor. Quando lhe abriram a porta, estava paralisado e teve a nítida sensação de que acordara de um sonho de terror em que, por momentos, chegara a perder a consciência. Mas assim que respirou a brisa fria da noite conseguiu recuperar, momento em que foi informado que estava numa estação de serviço, perto de Burgos. Na continuação da viagem, foi substituído na bagageira por outro desgraçado, por sinal um pouco mais encorpado, que não fazia a mínima ideia da tortura que o esperava.
Mais tarde, a caminho dos Perineus, o motorista foi forçado a uma manobra de diversão para se furtar aos agentes da polícia espanhola que mandaram parar o veículo. Assim, depois de alguns quilómetros de uma correria desenfreada, por estradas secundárias, sinuosas e esburacadas, onde só um verdadeiro milagre evitou o acidente, os emigrantes foram deixados numa barraca abandonada, em plena floresta. Por seu turno, o motorista substituiu as chapas de matrícula do Citroen o mais rápido que lhe foi possível e logo a seguir desapareceu no meio do arvoredo deixando, apenas, a intenção de voltar logo que a situação o permitisse.
Ali, em território hostil, de barriga vazia e receando o pior, esperaram até ao início da noite. Momento em que foram surpreendidos por outro espanhol que, depois de entregar um pão a cada um, os encaminhou para um veículo pesado estacionado nas imediações. Assim que o ocuparam ficaram a saber que estava adaptado com uma divisória na caixa de carga. À retaguarda carregava legumes e na outra extremidade, junto à cabine, tinha uma caixa falsa para acomodar os emigrantes. O acesso era pela cabine, através de uma pequena abertura no banco do motorista, pela qual foram empurrados, um a um, como gado para abate. Assim, a situação de clausura repetia-se, agora, até final da viagem. Com uma agravante, o cheiro era insuportável.
No final do dia seguinte, chegaram aos arredores de Paris onde cada um ficou entregue a si próprio. Joaquim Boavida nem queria acreditar de que se livrara daquela viagem atribulada em que passara os dias mais amargurados da sua existência. Todavia, tinha um pressentimento de vitória. Estava feliz, porque acabara de chegar a um país onde lhe era possível sonhar com melhores dias. Com esse espírito em mente, apanhou um táxi a caminho de Maison Laffitte onde o esperava uma vida de muitos sacrifícios, mas também com algumas compensações.
Começou por tratar da sua legalização que lhe ficou em trezentos francos, adiantados pelo patrão que, desde logo, lhe passou a pagar quatro francos por cada hora de trabalho.
Ali, fugindo à indigência, encontrara a sua segunda pátria!    
 

sexta-feira, 14 de março de 2014

SONHO JUGULADO


Falésias que são um promontório,
Ponta de um continente em agonia.
Espelho de um europeísmo ilusório,
Vela moribunda, que já não alumia.

Com impudência chamaram-lhe União,
Ignorando a sua falta de homogeneidade.
E agora que têm pela frente o Rubicão,
Procuram alijar a sua responsabilidade.

Essas mentes que se julgam brilhantes,
Apontam regras que se dizem necessárias.
Entre elas a de se tornarem assaltantes,
Decididos a pilhar até as contas bancárias.

E que não existam quaisquer ilusões:
Eles introduzir-se-ão no nosso lar,
Para nos levar os derradeiros tostões,
E tudo o que estivar à mão de semear.

São homens que mostram pouca valia,
Sempre numa atitude altaneira e patética.
Apajeados por uma medonha burocracia,
Que vê gorduras numa União esquelética.

Parece um estranho mundo de idiotas,
Cujas decisões só servem para inquietar,
Facilitando a vida de abutres e agiotas,
Que com avidez tudo procuram sugar.

Talvez fosse melhor para este vetusto país,
Desligar-se desta situação que é decadente,
Como se abandonasse uma velha meretriz,
Que, já sem atrativos se tornasse exigente.

André Sargaço

segunda-feira, 3 de março de 2014

O ÉPAGNEUL NA SERRA AGRESTE





Avizinhava-se a nova temporada de caça que eu aguardava com inegável ansiedade, não só, pelo prazer das deambulações pelo monte, mas também, para ver em ação o instinto natural do Simba face às espécies cinegéticas. Com várias ideias a povoarem os meus pensamentos e, quiçá, o meu imaginário, logo que me surgiu uma oportunidade, corri para a serra para que o Épagneul tomasse contacto com a aridez dos montes. 
Naquela fase do ano em que os novos bandos de perdizes, ainda, não atingiram a plena maturidade, movimentam-se pelas courelas de restolho sem o receio que costumam manifestar assim que os primeiros tiros ecoam pelos outeiros. Nesse período, apesar do seu sedentarismo, ficam mais desconfiadas, mudam algumas rotinas e até de habitats. Essas alterações estão diretamente relacionadas com a chegada do outono e das primeiras chuvas, que dão origem a novas pastagens e bebedouros em territórios mais elevados. São esses locais que as aves passam a ocupar e que lhes fornecem espaços menos sombrios, com maior facilidade de movimentos e logo uma maior alternativa de defesa, face aos diferentes predadores. Teoricamente, a perdiz faz os seus voos em triângulo, de outeiro para outeiro, embora na prática tudo isso dependa das características do terreno e da sua necessidade de fuga. 
Logo que me instalei na aldeia serrana, região onde habitualmente desenvolvia a prática venatória, o Simba resolveu dar nas vistas sem que eu fizesse a mínima ideia do que ele preparava nos bastidores do seu intelecto canino. Assim, pressentindo uma capoeira por perto, acomodou-se traiçoeiramente no pátio à espera de uma distração minha e da dona Alice, a proprietária do galinheiro. Quando a oportunidade surgiu, saltou o muro e invadiu a capoeira. À medida que ia apanhando as aves, fazia o itinerário inverso e levava-as para casa. Cena que foi repetindo até o galinheiro ficar vazio. 
Quando me apercebi do alarido invulgar que chegava da rua, corri à janela para me inteirar do que acontecera e qual não foi o meu espanto quando vi a dona Alice, num pranto desesperado, apregoando aos quatro ventos que o meu cão lhe matara as galinhas.
Receando o pior, corri para o pátio onde o cenário não poderia parecer mais desconcertante para não dizer assustador. Para além do cacarejo em uníssono que, por si só, gerava um enorme alvoroço as penas voavam por todo o lado criando uma espécie de cortina que impedia uma visão nítida sobre a área onde se desenrolava o confronto. Assim que me aproximei do confronto vi que algumas franganitas cambaleavam. Outras, um pouco aturdidas, tentavam desesperadamente saltar o muro sendo de imediato aplacadas pelo Simba. Claro que com a minha presença a situação depressa acalmou. No entanto, para a integridade física das aves, já era demasiado tarde.   
No final, as oito galinhas estavam vivas, mas a maioria aparentava ter vivido momentos bastante conturbados, a avaliar pelas escoriações de toda a ordem, indiciando uma convalescença prolongada. 
Para o instinto do Épagneul a caçada fora uma extraordinária façanha, mas para mim tornara-se num enorme pesadelo, não só pelo dano causado como, acima de tudo, pelo facto de assistir ao desespero da dona Alice. 
A pobre senhora, que se via assim privada das suas galinhas de estimação, estava inconsolável e nem a minha pronta intervenção, assumindo a responsabilidade pelo sucedido, foi suficiente para lhe acalmar o ânimo. Depois, ainda insatisfeita, prosseguiu com a sua lamúria pela aldeia, anunciando o que acontecera aos seus galináceos. Impotente para a demover a não fazer mais alarido, tive de esperar que esta ficasse vencida pelo cansaço para depois podermos acertar a valor da indemnização. Contudo, o cachorro acabaria por ficar nas bocas do mundo e pelas piores razões.
Na madrugada seguinte, depois de uma noite em que o sono só muito a custo me veio visitar, decidi-me por um passeio pedestre, entre dois montes, para matar saudades dos locais onde, na infância, convivi de perto com as coisas simples da vida, a par da natureza pura e agreste: tanto nos campos, como nos riachos. 
Após o café da manhã, ataviei-me com calçado e roupas apropriadas para calcorrear os trilhos pedregosos que faziam a ligação terrestre entre a aldeia e os outeiros mais isolados que a circundavam. Não passavam de sulcos estreitos no terreno xistoso, parcialmente, ocultos pela vegetação selvagem. Assim, segurei no Simba pela trela, como se fosse a caminho de um campo de treino que, por sinal, ali não existia e abri o portão de acesso à via pública. Logo que cheguei ao exterior deparei-me com um nevoeiro cerrado salpicado de cacimbo que deixava as múltiplas gotículas suspensas nos arbustos. Perante estas condições do tempo retraí-me um pouco, mas o animal estava ansioso. Eu precisava de ultrapassar o que acontecera na véspera e também não queria deixar passar a oportunidade de contemplar a beleza da serra rude de que os meus olhos andavam gulosos. E na verdade, sempre que percorria aqueles montes sentia a tranquilidade das gentes que aprenderam a viver rodeadas das limitações próprias daquela natureza agreste. Assim, imbuído de um espírito libertino, fiz-me ao caminho como se procurasse expurgar a alma, fugindo às preocupações, aos vícios citadinos e às amarguras da vida.
No momento em que o relógio da torre da igreja badalava as oito horas entrei na rua principal. Mal ali cheguei, fui interpelado pelo amigo Gervásio que, depois de sentidas gargalhadas relacionadas com o relato do assalto que o meu cão fizera à capoeira da vizinha Alice, me aconselhou a não me deslocar ao monte antes do sol enxugar as plantas. Para além da molha certa, a humidade iria, certamente, prejudicar o faro do cachorro. Devo confessar que perante o conselho daquele homem experiente e companheiro de algumas jornadas da vida, ainda vacilei, mas como a oportunidade de ali voltar, a curto prazo, era muito escassa, acabaria por levar a minha intenção por diante.  
Depois de trocar algumas graçolas com o Gervásio, que me redobraram o ânimo, deixei o cantinho da aldeia e demandei serra dentro desbravando a natureza rude em busca de sossego. Enveredei por um carreiro de cabras, contornando troncos de oliveiras centenárias, quase despidas de ramagem que, já em fase de morte anunciada, disputavam, desesperadamente, o espaço com arbustos selvagens. Durante as primeiras centenas de metros fui acompanhado pelo piar ainda envergonhado dos pardais que me chegava dos beirais da velha escola primária, situada nas proximidades e, fechada há muito tempo por falta de alunos. 
Com a neblina, o teto estava baixo e, a visibilidade não ia além de dez metros, mas, para mim, isso não constituía qualquer impedimento. Conhecia bem aqueles caminhos e ainda algumas das boas gentes que, às vezes, os utilizavam. Era o caso da senhora Joaquina, uma aldeã com quem me viria a cruzar uma centena de metros mais adiante que, apesar da idade avançada, continuava a amanhar uma pequena courela de onde, em algumas colheitas, nem sequer retirava os espécimes destinados à semente. Não era caso único. O minifúndio, por toda a região, era de baixa produtividade e escondia sacrifícios impensáveis para quem não convivesse de perto com essa realidade. Como se isso não bastasse, as doenças e os predadores, javalis e os veados, se encarregavam de danificar as culturas. Alguns resistentes, já no outono da vida, ao verem o produto do seu trabalho completamente destruído e sem qualquer tipo de indemnização, tomados pelo desânimo, deixavam as terras em pousio.
Naquele dia, a dona Joaquina transportava à cabeça uma cesta de verga, com alguns produtos hortícolas, que os braços frágeis e as mãos calejadas tentavam amparar com notada dificuldade. O pescoço, pressionado pelo peso excessivo, parecia afundar-se-lhe ainda mais no tronco já mirrado por longa servidão. As pernas, quiçá, arqueadas pelo esforço de muitos carregos, oscilavam e anunciavam desequilíbrio a cada passada. Contudo, assim que nos encontrámos no trajeto, a senhora parou para me cumprimentar e conversar sem dar mostras de pressa ou desalento, como se esperasse que o nosso diálogo lhe aliviasse as agruras. Antes de se despedir, também ela lamentou o que o meu cão fizera às galinhas da vizinha Alice, que eram, segundo dizia, as melhores poedeiras da aldeia, mas, ainda assim, concluiu o diálogo fazendo rasgados elogios à beleza do Simba que ali via pela primeira vez.
Perante as afirmações da dona Joaquina fiquei com a sensação de que não fora, suficientemente, generoso com a senhora Alice e o que lhe pagara, pelas lesões dos galináceos, ficara muito abaixo do seu valor estimativo. Porém, logo que regressasse à aldeia iria remediar a situação para que não sobrassem quaisquer ressentimentos. 
Embora soubesse que na aridez daqueles montes não existia um campo de treino, nos termos regulamentares, soltei o Simba que, nos instantes iniciais, me pareceu um pouco estonteado. Corria e saltava com tal alegria que aparentava querer beber de uma só vez toda aquela liberdade que, só os montes agrestes podem proporcionar e que, até então, ainda não havia experimentado. Tudo para ele era novidade. Qualquer pássaro, inseto ou lagartixa, por mais insignificante que fosse, lhe despertava a atenção, mas aos poucos foi acalmando e depressa enveredou pelos seus instintos naturais de caçador. Assim, começava por farejar todos os odores, com uma elegância discreta e persistente, sem, no entanto, se afastar de mim mais do que meia dúzia de metros. 
Mais adiante, quando me abeirava de um vale, sem arredar pé do carreiro que contornava os incontáveis penhascos, fui surpreendido por um habitante de uma povoação vizinha que se deslocava na minha direção. Era o Manuel da Quinta, uma criatura com quem eu já me tinha cruzado, algumas vezes, mas nunca tinha chegado à fala, para além da singular saudação. 
Tratava-se de um sexagenário, escanzelado e rude, que via em cada semelhante um potencial inimigo. Todo o seu historial de vida, cego de entendimento, assentava na insociabilidade beligerante e na violação constante das leis. Caçava e pescava o ano inteiro, indiferente ao período de defeso das espécies, sem qualquer abalo de consciência. 
Nesse dia, o homem caminhava em passo rasgado e com um barrete, esverdeado, enfiado até às orelhas. Vestia uma espécie de gabardina, matizada de castanho e verde-escuro, que lhe cobria o corpo até às galochas de cano alto. Logo que encarou comigo, estacou bruscamente e, ficou pasmado de olhar esgazeado tentando recuperar fôlego, como se tivesse sido atingido por uma violenta detonação. Depois, para dissimular o seu espanto pela surpresa avançou, alguns metros, na minha direção dando a ideia de que me iria barrar o caminho. Então, logo que me apercebi da sua intenção parei na expetativa do resultado. Porém, à medida que se aproximava de mim, reparei que debaixo do impermeável que envergava se notava o contorno de uma espingarda. Arma que transportava à ilharga e tentava dissimular a todo o custo obliquando propositadamente o tronco. Logo a seguir, parou e estendeu o braço para me cumprimentar, como o faria a um amigo, sem, no entanto, conseguir disfarçar alguma atrapalhação e até contrariedade que aquele encontro inesperado lhe causara. Tudo isso perante o olhar atento do Simba que, especado, observava todos os movimentos do desconhecido sem lhe demonstrar qualquer hostilidade.
    Que faz um cavalheiro da cidade a passear um rafeiro aqui por estas bandas? – interrogou Manuel da Quinta, em tom vincadamente irónico que acompanhava com um sorriso trocista.
    A saborear o ar puro da serra! – respondi com frontalidade, mas não resisti a uma provocação:
    E o senhor? O que faz por aqui, com todo este nevoeiro e com tanta pressa?
 Manuel da Quinta franziu o sobrolho, olhou-me inquiridor, fazendo um compasso de espera, como se estudasse uma resposta, enquanto deixava cair sobre o rosto uma máscara de amargura indiciando que algo de trágico lhe havia acontecido e disse:
    Olhe, para lhe ser franco, vou ali ao outro lado da serra procurar um podengo que me desapareceu! – e continuou – um animal que era um encanto, habituado ao bom trato, inteligente, meigo, bom caçador e amigo do dono. Só queria que você o visse! Tinha a pelagem tão luzidia que era um regalo. Bem, para lhe ser franco, desconfio que me o roubaram, mas se descubro quem foi o larápio, pode você ter a certeza que, ele vai ter de se haver comigo! Na realidade, estamos cercados e nem aqui na pacatez da serra podemos andar tranquilos. Não acha? 
    Pois!... Infelizmente a insegurança chega a todo lado. – disse eu, em jeito de resposta.
    Bem!... Já trocámos alguns pontos de vista e está na hora de ir andando. Vou ver se encontro o diabo do cachorro que já deve andar cheio de fome! 
    Faz muito bem! No entanto, se ainda tiver tempo, gostaria de lhe fazer uma pergunta.
    Quando estou perante alguém que considero amigo nunca tenho pressa. Faça as perguntas que bem entender!
    Olhe, gostava que me dissesse se vai à procura do pobre do animal para o abater?! – aventei com ar risonho e indiferente à crença de que falava para um homem de menor caráter.
    Francamente! Nunca pensei que, vossemecê, fosse capaz de me questionar sobre uma coisa dessas! Eu sou lá homem capaz de fazer mal a alguém!... E muito menos aos meus cães que são do melhor que há!
    Então, se não é para matar o bicho, para que precisa da espingarda que aí leva atendendo a que estamos no período de defeso da caça e que você ainda não descobriu o tal ladrão? – rematei.
    Cale-se lá, homem! Não sabe o que está a dizer! – retorquiu o Manuel, de olhos esbugalhados, virando-me as costas e retomando a marcha num sussurro indecifrável. Percorreu mais uma dúzia de passos, parou, voltou-se novamente para mim e exclamou com impertinência: 
    Só me faltava mais essa! Nunca imaginei que alguém fosse capaz de me falar dessa maneira. Tem sorte em estar a dialogar com um pacifista, senão… 
    Não foi minha intenção ofendê-lo! – disse eu, tentando suavizar o discurso, enquanto ele se diluía no nevoeiro. 
Logo que se afastou, reiniciei o passeio ao longo do valeiro – atento aos movimentos do Simba e na esperança de ver saltar as perdizes – sorvendo o silêncio daquele lugar original e onde as marcas do passado, ainda, estavam bem visíveis. Era só abrir os olhos e contemplar as, inúmeras, edificações em pedras nuas de xisto, como que esculpidas na paisagem pelos outeiros em redor. Todas encerram, naturalmente, muitas histórias de vida: alegrias e tristezas, esperanças e angústias, perdidas para sempre nas brumas do tempo com os seus protagonistas. 
Casebres e mais casebres que, para além de terem servido de habitação às populações locais, foram simultaneamente utilizados como abrigos dos animais domésticos, adegas e celeiros dos parcos haveres que se iam arrancando à terra madrasta. Paredões e mais paredões sustendo os socalcos aráveis ou apenas servindo de suporte a uma oliveira ou a outra, qualquer, árvore de fruto. Lá mais ao fundo, junto ao riacho, repousavam os escombros do velho moinho de moer o pão depois de séculos, de trabalho, ao serviço da comunidade local. O telhado cedera às infiltrações de água e as mós, quiçá para que fim, rumaram a outras paragens. 
Foram gerações de trabalho árduo e de incontáveis sacrifícios para erguer, pedra a pedra, uma obra gigantesca, executada de forma engenhosa com ferramentas rudimentares e, porventura, idealizada pelos deuses. Por ironia da vida e obedecendo à marcha imparável do tempo aguardava, agora, servir de combustível aos sucessivos incêndios que vão devastando a natureza de forma irreversível, criando, ao mesmo tempo, as condições para a erosão dos solos. 
Enquanto por ali deambulava, entre flores de carquejas e de urzes a murchar, tentando observar todos os mimetismos do perdigueiro, o nevoeiro foi-se dissipando sem que eu, quase, desse por isso. Assim, logo que atingi uma planura, senti-me envolvido pelo sol retemperador que alegrava e aquecia todo aquele universo serrano, a perder de vista, de onde se poderiam recolher imagens de uma beleza invulgar e guardar para a posteridade. A menos de dez passos à minha frente, um coelho correu veloz a caminho da lura procurando escapar aos dentes do Épagneul que, um pouco surpreendido por aquele ser estranho, quase não reagiu à sua fuga. 
Mais adiante, não resisti ao convite de um regato de água que gorgolejava barroco abaixo, por entre rochas e arbustos e, desprovido de preconceitos, debrucei-me sobre uma pequena cascata para refrescar a garganta sequiosa. Porém, ainda não a tinha saboreado quando ouvi o som insólito de dois tiros que pareciam ter tido origem no cume da serra e que ecoavam, pavorosamente, em ecos sucessivos ao redor daqueles montes risonhos. 
Surpreendido pelos disparos, ergui-me apressado e por pouco não fui atingido por uma perdiz que descia a colina em fuga vertiginosa, enquanto os chumbos fustigavam a ramagem plantada junto ao regato. Quando a vi surgir em voo picado mal tive tempo para desviar a cabeça da trajetória da ave que, em poucos segundos, dobrou a encosta e desapareceu ao fundo do barroco. Sem perder tempo, numa reação determinada, abri a boca e bradei a plenos pulmões: 
    Cuidado com os tiros! Aqui em baixo anda gente!... Que diabo! Será que já nem aqui há sossego? 
Logo que os silvos e o brado se desvaneceram todo aquele imenso vale ficou envolto num pesado silêncio. Apenas eram audíveis os movimentos estonteados do Simba numa tentativa inútil para detetar o que se havia passado. Finalmente, volvidos alguns instantes, regressaram os cânticos da passarada e os montes voltaram à sua pureza natural.
Decorridos poucos segundos, avistei o Manuel da Quinta a esquivar-se por entre medronheiros a caminho de um antigo palheiro, edificado em pedra, com a fachada principal coberta de hera que lhe dava uma camuflagem natural. 
Aquela era a base logística do seu quotidiano. Um eremitério onde dificilmente poderia vir a ser testemunhado no que fazia diariamente: tanto na atividade do campo, como até nos seus trabalhos clandestinos. Era ali que guardava não só a ferramentaria destinada ao labor agrícola e também grande parte do equipamento de apoio ao exercício da caça e pesca. 
Contava o meu amigo Gervásio que, certo dia, numa espera à caça, ainda antes de ambos terem sido chamados para o serviço militar, o vira abater uma perdiz a mais de trinta passos de distância com uma simples carabina de pressão de ar. Acertara-lhe na cabeça e o disparo fora desferido com tal precisão que a pobre da ave se limitara a tombar para o lado contrário sem esboçar o mínimo sinal de dor! Da mesma forma, quando via os coelhos a entrar nos buracos, armadilhava as saídas com redes de emalhar e socorria-se do fumigador de enxofre para os obrigar a abandonar a toca e ao fim de poucos segundos os bichos ficavam embolsados na rede. Também na pesca o vira mergulhar ao fundo dos poços para vasculhar as tocas, uma a uma, até o seu fôlego se esgotar. Numa certa ocasião, vira-o ainda recorrer a métodos mais radicais para obter rapidamente maiores quantidades de peixe usando embude. Para isso, pisava muito bem as raízes dessas plantas, amassava-as com terra e lançava o preparado à água. A partir daí, a captura tornava-se mais fácil e rápida e ao fim de poucos minutos apanhava o peixe que ia surgindo à tona em penosa agonia. 
Logo que despertei de todas aquelas recordações, rumei à aldeia, guiado pelo som nostálgico de uma velha taramela que, devido à sua utilização prolongada, há muito que deixara de intimidar a passarada. Segui por um trilho secular, agora, só esporadicamente utilizado por alguns caçadores e veículos de todo o terreno durante a época oficial de caça. A desertificação permitira o crescimento descontrolado do matagal que, aos poucos, ia escondendo as marcas de um passado histórico escrito por um povo esquecido, amargurado e humilde que, em lento sofrimento, ia sucumbindo à sua má sorte geográfica. Ainda assim, aquela antiga via serviu-me de atalho para antecipar o regresso a casa que o peso nas pernas e a barriga a dar horas começavam a exigir. Logo que entrei no lugar fiquei com a convicção de que tinha passado a manhã numa inquietude tranquila, fugindo da urbe assustadora e, convivendo tanto quanto possível com a natureza agreste, quase na sua pureza original. Apenas um senão, de facto, aquele treino a raiar o clandestino não fora de todo proveitoso para o cachorro que não vira, de perto, qualquer perdiz o que seria muito importante para a sua formação de caçador. Essa experiência ficaria reservada para a época cinegética. Tempo em que haveria, certamente, oportunidade de mostrar o seu talento face aos tiros, às espécies e à aridez dos montes, dado que era frequente ouvir falar da fragilidade física daquela raça em terrenos hostis.
Quando regressava ao meu refúgio acidental fui intercetado pelo Gervásio que, como habitualmente, me convidou para o almoço o que aceitei de bom grado. 

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

SIMBA - O ÉPAGNEUL ABANDONADO






Para tentar fugir à intempérie, estuguei o passo, rua fora, entregue às minhas cogitações e sem dar atenção ao que se desenrolava à minha volta. Contudo, a certa altura, olhei casualmente para trás e, então, reparei que estava a ser seguido, a poucos metros, por um cachorrito ainda jovem que, desde logo, despertou a minha curiosidade. Com a graciosidade própria da idade, o animal corria, saltitava e farejava, indiferente ao bulício que nos envolvia e sem perder o meu rasto. Embora eu nunca tivesse tido um cão, achei graça ao seu estilo vivaço e brincalhão, mas continuei apressadamente o meu caminho receando que a chuva me apanhasse no trajeto. Porém, depois de percorrer uma centena de metros, repeti o movimento para o observar e para surpresa minha, constatei que o bicho continuava a seguir-me apesar de cruzarmos com alguns transeuntes que se deslocavam em sentido oposto ao nosso. Perante isso e atendendo à sua idade juvenil, deduzi que me confundira com o seu dono e resolvi esclarecer aquela confusão.
Não se tratava de um rafeiro qualquer era um Épagneul-breton, matizado de branco e castanho, orelha caída, cauda normal, porte de cerca de dois meses de idade e aparentemente mal alimentado. O meu conhecimento em relação a canídeos resumia-se às jornadas cinegéticas onde era frequente cruzar com caçadores que se faziam acompanhar por animais daquela raça.
Perante o quadro que se me deparava e desconhecendo o que acontecera ao cachorrito, fiz, então, várias tentativas para o intimidar, ao longo do percurso, para que se afastasse, mas a sua atitude não poderia ter sido mais surpreendente: sentava-se e movia alternadamente a cabeça para um lado e para o outro, como se procurasse a melhor maneira de me escutar, mas não ligava ao que eu dizia, nem se afastava. Contudo, mal lhe virava as costas retomava a marcha atrás de mim no mesmo estilo alegre e decidido.
Enquanto me dedicava ao Épagneul, o dia fechou-se rapidamente à claridade e uma enorme chuvada abateu-se, repentinamente, sobre a região. A água era tanta que, cada um de nós, procurou refugiar-se o melhor que pode. Assim, corri para uma paragem de autocarro que se localizava no outro lado da rua, onde partilhei o abrigo e troquei banalidades, sobre a intempérie, com outros cidadãos também a contas com o mau tempo. Com a agitação do momento, deixei de ver o cão que provavelmente se teria refugiado debaixo de algum veículo estacionado por perto. Ao fim de alguns minutos, o tempo melhorou e todos seguimos o nosso caminho. Arranquei em passo rasgado em direção a casa que distava dali menos de quinhentos metros sem, no entanto, me lembrar mais do animal.
Na manhã seguinte, quando cheguei à rua deparei-me com o cachorrito deitado no passeio à porta de uma mercearia. Assim que me viu, ensaiou alguns passitos na minha direção exteriorizando o seu contentamento num dócil e apelativo abano de cauda.
Embora, desde o início, tivesse simpatizado com aquele bicho franzino e indefeso, naquele momento, fiquei um pouco indeciso quanto à melhor forma de resolver a situação. Contudo uma certeza invadiu de imediato o meu consciente: o Épagneul devia estar com fome e precisava de ser alimentado. Quanto ao resto, haveria, certamente, tempo para decidir.
Nunca tinha pensado em adotar um cão, desde logo, por o espaço exíguo de um pequeno apartamento que habitava anteriormente não me deixar grande alternativa. Depois, queria evitar um sem fim de burocracias que vão desde o licenciamento até às vacinas, passando pelos chips e seguros. Tudo isso, sem esquecer, naturalmente, os preços praticados pelas clínicas veterinárias que, logo à partida, desencorajam quem pretende ter um animal de estimação. Agora, residia num bairro dos subúrbios, ordenado por vivendas de âmbito familiar, habitado maioritariamente por gente ordeira e trabalhadora, onde raramente surgiam alterações na civilidade. Razão para que também não tivesse tido necessidade de um cão de guarda. Por último, contava abandonar o desporto cinegético para me livrar das infindáveis exigências que, por seu lado, ano após ano, vão reservando aquela paixão primitiva às elites privilegiadas.
Os motivos que, até àquela data, adiaram a decisão, não me deixavam agora, ali, indiferente ao olhar ingénuo e apelativo daquele cachorro que teimava em me seguir. Não sabia a origem do cão, nem conhecia os seus tiques de personalidade, mas acabei por lhe dar abrigo sem equacionar os contratempos que daí poderiam resultar.
Noutras jornadas, ouvira comentar que o Épagneul-breton para além de possuir um faro apuradíssimo é polivalente, tanto a parar como a cobrar qualquer tipo de caça menor. Ainda assim, aquela raça tem uma aptidão especial para a caça de pena. A par destes excelentes predicados, é inteligente, infatigável, dócil, fácil de treinar e é, ainda, dotado de uma admirável fidelidade ao dono. Apenas um senão, é uma raça muito vulnerável às enfermidades e porventura muito mais frágil do que as raças híbridas. Razão que à partida desmotiva muitos donos e até criadores.
Logo que regressei a casa, no final do dia, a minha esposa sugeriu o nome de Simba para o cachorro, com o qual concordei. Assim, depois de lhe dar banho, instalei-o sem sequer conhecer os progenitores, nem tão pouco lhe fazer um pequeno teste de personalidade.
A acomodação do Simba à sua nova casa não podia ter sido melhor: depois de bem alimentado, enroscou-se no ninho e em pouco tempo adormeceu. Contudo, a adaptação iria ser bastante problemática. Logo na segunda noite começaram as reivindicações. Como não queria ficar sozinho desatou a ganir com tal intensidade que parecia querer pôr em alvoroço toda a vizinhança. Porém, logo que algum de nós se aproximava, calava-se de imediato, numa espécie de jogo psicológico para nos convencer a tirá-lo da solidão.
Para além da perturbação inicial, aquele acolhimento viria também a condicionar muita coisa no nosso quotidiano futuro. Desde logo, perdemos alguma liberdade e como se isto não bastasse, ainda ficámos com a casa virada do avesso. Para além de defecar e urinar por todo o lado, escavava o jardim e arrancava plantas com uma persistência interminável. Escolhia para brincar precisamente tudo o que tinha utilidade para nós. Para além disto, sempre que lhe era barrado qualquer acesso, reivindicava com intransigência o seu direito à destruição, traduzido num protesto de latidos ingénuos de ameaça. O resultado, está claro, era um nunca acabar de coisas destruídas. Mas pouco podíamos fazer para o evitar a partir do momento em que decidimos adotá-lo.
À medida que os dias se iam sucedendo, o cachorrito, sem nunca abdicar da sua personalidade, foi-se adaptando às regras e ao seu espaço: escolheu um local para fazer as suas necessidades fisiológicas e deixou de nos transtornar o sono.
Entretanto, já a pensar na nova temporada de caça, resolvi pedir informações a caçadores experimentados com perdigueiros, sobre o melhor método de o preparar para a prática cinegética e ainda me documentei com manuais de treino para o tentar ensinar. Apesar de todo o meu empenho, os primeiros resultados não foram encorajadores. Mas, a partir do momento em que começou a saber distinguir uma simples brincadeira de um treino de obediência básica, que surgiu por volta dos seis meses de idade, tudo começou aos poucos a modificar-se.
Para atingir bons resultados, tive a generosa colaboração de um amigo que um dia resolveu fazer-me uma visita. Logo que se encontrou com o bicho aplicou-lhe a trela e começou por lhe fazer alguns testes para lhe estudar o temperamento, em termos de obediência, timidez e agressividade. Depois prosseguiu com alguns exercícios, tais como sentar, deitar e levantar, partindo sempre da ideia de que, cada um deveria ser de curta duração para não provocar saturação no animal. No final, deu-me algumas dicas sobre a melhor forma de continuar o treino. Onde salientava que todo o cachorro deve ser acarinhado e compensado sempre que os exercícios corram bem.    
Por volta de um ano de idade, passou, de um dia para o outro, a evidenciar alguma agressividade. Começou por atacar as pessoas estranhas que se deslocassem lá a casa, expondo assim os seus instintos ancestrais. Os condutores de veículos de duas rodas tornaram-se nos seus alvos preferenciais. Penso que a sua aversão estaria relacionada com o uso do capacete de proteção por parte daqueles. Numa certa ocasião, o carteiro depois de desmontar do ciclomotor foi entregar o correio, mas como fazia uso do capacete não perdeu pela demora. O cachorro aproximou-se, sorrateiramente, rasgou-lhe as calças e deixou-lhe os dentes marcados numa perna. Também uma vendedeira, que carregava à cabeça os seus produtos agrícolas, ficou imóvel até à chegada da minha esposa, enquanto o cachorro, em estilo intimidativo, descrevia círculos contínuos à sua volta forçando-a a imobilizar-se, sem, no entanto, a chegar a molestar. Comportamento que nos obrigou a tomar medidas preventivas para acautelar outros incidentes.
Numa tarde de verão, resolvi levar o Simba ao rio, para que fizesse algum exercício físico, numa fase do ano em que o tempo convida muita gente para as áreas fluviais. Escolhi propositadamente uma zona que, embora espaçosa e de fácil acesso, era pouco frequentada por banhistas, logo ideal para que o cão se movimentasse sem lhes causar incómodo.
Ainda em casa, prendi-o pela trela para durante a deslocação o defender de alguns condutores apressados que habitualmente conduziam naquela artéria que era a única que dava acesso ao nosso destino. Depois, seguimos pela berma, ao longo de um quilómetro que era a distância que nos separava daquele curso de água.
Era a primeira vez que o animal tomava contacto com aquele local, mas assim que avistou a água ficou de tal modo excitado que salivava abundantemente e não parava de me puxar. Entrámos pela margem direita e logo que chegámos ao areal tirei-lhe a trela para que se movimentasse livremente. Assim que o soltei, entrou água dentro com tal vivacidade que parecia nada o poder parar. Corria, nadava e rebolava na areia, com grande euforia.
Decorridos os instantes iniciais, durante o qual libertou muitas energias, veio ao meu encontro para me desafiar a imitá-lo. Simulava atacar-me e depois afastava-se veloz, mas logo a seguir repetia o movimento provocatório. Tudo isso revestido de uma alegria contagiante. Não resisti. Acabei por me associar à brincadeira e, durante perto de uma hora, diverti-me como não imaginara.
A certa altura, na margem contrária à que nos encontrávamos, surgiu um casal, de um escalão etário a rondar os quarenta anos que se fazia acompanhar por um caniche peludo e gordo que, à distância a que me encontrava, se assemelhava a um ouriço-cacheiro, em ponto grande. Tudo decorria normalmente, até então, mas assim que o pequenote avistou o Épagneul correu desafiante ao seu encontro, ameaçando travar-se de razões com ele, que por sua vez o olhou com curiosidade, mas não lhe dispensou a importância que aquele julgara merecer. Entretanto a senhora, de ar altivo, fingindo tentar conter a suposta ameaça, exclamou:
    Lion, vien ici! Vien ici, mon chéri!
Apesar do chamamento, a pequena fera prosseguiu numa correria desenfreada e investiu areal dentro até entrar na água e perder o pé. Aí as coisas complicaram-se: devido ao seu porte pesado começou, aos poucos, a afundar-se e a ser levado pelo fraco caudal, ao ponto de só ficar com o focinhito à vista. Por mais que se esforçasse não conseguia flutuar e sair daquela situação embaraçosa.
    Vien ici, mon petit! – continuava ela, sem qualquer êxito e sem se aproximar da corrente, mas exibindo um francês todo repenicado. Por sua vez, o homem, em estilo desportivo, deambulava serenamente pelo areal, entregue ao prazer de um cigarro, sem dar importância ao cachorro nem ao que a senhora dizia. Perante o quadro que se apresentava teria de ser eu a socorrer o caniche. Então, sem esperar qualquer êxito, disse:
    Simba! Vai buscar o refilão antes que ele se afogue!
Ele olhou para mim, com ar intrigado, como se quisesse certificar de que eu falava a sério para então agir.
    Vai buscar o peludo! – insisti – que ele é frágil e já mal consegue respirar.
De imediato, o cachorro desatou a correr e depois a nadar no encalce do caniche que, entretanto, já se afastara três dezenas de metros. Logo que o alcançou, abocou-o pelo pescoço e arrastou-o até à areia seca, na margem de onde aquele viera. Depois, receando que o rufia ainda não estivesse suficiente longe do perigo, abocou-o novamente e transportou-o até o poisar junto à madame. Quando viu que me deslocava para ver de perto o que estava a acontecer, deixou a vítima e caminhou vaidosamente ao meu encontro como se esperasse uma recompensa pelo que fizera.
Foi bonito de se ver: não só a façanha do Simba, como a cara de espanto da senhora que ficara tão surpreendida quanto eu. Também o caniche que apesar de ofegante deixava sair uma expressão cabisbaixa parecendo estar rendido à valentia daquele que antes tomara como seu inimigo. Devo confessar que nunca imaginei assistir a uma cena tão genuinamente altruísta, envolvendo o reino animal, o que poderia ser um excelente exemplo para gente, com quem nos cruzamos na rua e que perante uma situação idêntica seria incapaz de dar alguns segundos do seu tempo, para auxiliar o seu semelhante. Fiquei maravilhado com o desenrolar daquela ação digna de ser filmada para que a pudesse rever.
Depois de uma breve conversa com a madame, esta juntou-se ao companheiro que, entretanto, se aproximara de nós e partiram com a mesma ligeireza descontraída com que haviam chegado.
Assim que ficámos a sós, o Simba ficou mais calmo: parecia cansado e as minhas pernas também já acusavam fadiga provocada não só pela falta de treino como também pela areia que tornou aquele exercício muito mais desgastante. Foi uma fuga ao quotidiano em que usufrui da generosa companhia de um amigo. Corri, pulei e brinquei, como um adolescente.
 
 

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

LUA SEDUTORA




Ainda não eram cinco horas da manhã quando João Nicolau despertou à claridade que lhe entrava pela janela do quarto. Saltou da cama, dirigiu-se  à janela para olhar o céu e verificou que a única nuvem visível deixara a lua a descoberto que, assim liberta, inundava de luz todo o lugar de Vale da Ponte. 
Finalmente, depois de algumas semanas tristonhas com chuva frequente, aquela madrugada de março chegara risonha como que anunciando a primavera. Animado pela chegada do bom tempo, Nicolau decidiu partir de seguida para a cafetaria que possuía no outro extremo do lugar. Embora o horário de abertura fosse só às oito horas, antes disso, tinha que se ocupar das tarefas de manutenção e limpeza do todo o espaço comercial.
Nicolau tinha a fama de mulherengo. Uma espécie de diploma que conquistara no Algarve, aquando ali arranjara trabalho no ramo hoteleiro, onde convivera de perto com turistas, na sua maioria nórdicas. Mais tarde, depois de casar com a Josefina foi perdendo esse estilo galã e leviano que lhe dera a fama, mas a esposa continuava desconfiada. Agora, aos quarenta anos de idade, estava estabelecido na terra onde nascera e só pensava em rentabilizar ao máximo o seu estabelecimento comercial. 
Naquela manhã, antes de sair de casa, foi sussurrar ao ouvido da esposa que ainda dormitava: 
–  Podes dormir mais um pouco! Eu vou preparar a esplanada para o dia solarengo que se avizinha. Tenho cá um pressentimento que o negócio vai melhorar. 
–   Deus te oiça, que a vida está difícil! – disse Josefina, que entretanto despertara.
–    De qualquer modo, não precisas de lá aparecer antes das onze horas que eu vou orientando o serviço. 
–   Até parece que me queres ver longe! Ou será que vais ao encontro de alguma apaixonada? 
–  Francamente!... Quero que aproveites a manhã para descansar! – disse Nicolau. 
–    Hum!... Não estou habituada a esses cuidados! Vai tranquilo que eu não te vou incomodar!
–   Como sabes tenho de carregar os frigoríficos, depurar a máquina do café, varrer a esplanada e preparar a montra… Não quero que os clientes reclamem! Ainda não me esqueci da multa que apanhámos por causa do alfacinha. Aquele empertigado que cá veio passar as férias de verão e que por um motivo fútil exigiu o livro de reclamações onde escreveu aquilo que lhe apeteceu. Uma brincadeira que não nos ficou nada barata! – justificou-se Nicolau.
–    Como é que eu posso esquecer de uma coisa dessas? Esse vaidoso que não me apareça mais à frente, senão… De qualquer forma ainda não percebi o motivo da tua pressa! – disse ela.
–    Não sabes que tenho muito trabalho a fazer!... 
–    Ou será que tens lá alguma à tua espera? – teimou Josefina.
–    Para mim és a única mulher e a mais bonita do mundo!
–    Hum!...
Depois de dirigir o galanteio à esposa, Nicolau meteu-se ao caminho decidido a dar início às tarefas a que se propusera. Contudo, logo que saiu de casa, Josefina seguiu-lhe os passos tentando descobrir se o que ele dissera correspondia à verdade.  
A desconfiança dela começara a avolumar-se no dia em que a sua comadre lhe viera contar que Nicolau passara uma manhã inteira a conversar com uma rapariga estrangeira que dias antes ali tinha estado a pedir emprego. Agora, até as vizinhas da Josefina falavam da forma descarada como a rapariga se sentava no café mostrando as pernas de forma exagerada. 
Perante tal falatório, Josefina decidira que logo a oportunidade surgisse iria pôr um fim àquela pouca-vergonha. Foi com essa ideia em mente que meteu os pés ao caminho confiante de que iria apanhar o marido em flagrante. 
Assim, obedecendo à sua intuição, logo que se aproximou do rio, viu o marido especado em cima da ponte, de olhar tão concentrado, como se aguardasse por um sinal vindo da parte do casario que se situava a montante do rio. Para não se denunciar, escudou-se atrás de um tronco de uma Mongólia até ele dobrar a esquina ao fundo da rua. Depois, tentou seguir-lhe a peugada à distância. No entanto, mal ele chegou ao largo que tinha como pano de fundo a sua cafetaria, perdeu-lhe o rasto.  
Para Josefina só restavam duas opções: regressar a casa na ignorância do destino do marido, ou esperar que ele voltasse ao local de trabalho para o questionar com a pertinência que a situação exigia. Então, acabaria por optar pela segunda, mantendo-se de tocaia a um canto afastado. Como ele tardava, tomou a iniciativa de abrir a porta à cafetaria indiferente às perguntas que daí iriam, naturalmente, resultar.

Quando João Nicolau abandonou a viela onde residia e entrou na rua principal, já clareava o dia, mas não se vislumbrava vivalma ao longo da artéria que se prolongava, em linha reta, por mais de duzentos metros. Embora soprasse uma ligeira brisa de leste, que trazia consigo alguma humidade, a temperatura era agradável. Nicolau já não se recordava de ter saído de casa tão cedo. Assim, atravessar o lugar àquela hora da manhã, sorvendo as fragrâncias e os silêncios matinais, não deixava de ser uma deleitosa experiência que tencionava repetir. Entretanto, quando atravessava o rio, olhou casualmente para o largo da fonte, local de paragem das carreiras de transportes públicos e reparou que o seu amigo Horácio se apressava a entrar para um autocarro expresso com destino à capital. Sem saber muito bem porquê, logo que o veículo arrancou, Nicolau parou e deteve-se por instantes a olhar o forte caudal que corria sob a ponte fruto da chuva dos dias anteriores. De repente, veio-lhe à memória o que Francisca lhe dissera na véspera:
–    Amanhã, o Horácio vai a Lisboa. Fico sozinha o dia todo!
Na altura, Nicolau não dera a devida atenção ao que Francisca lhe dizia. 
Agora, aquela conversa já fazia sentido. O terreno estava livre pois, vira o Horácio a embarcar no autocarro.
–   Não, da última vez que estive com ela prometi a mim próprio que não voltaria a acontecer. Além disso, tenho muito trabalho para fazer e na ruela onde ela mora há beatas muito bisbilhoteiras. – pensava ele, como a querer convencer-se do contrário, e continuou – mas não deixa de ser penoso recusar uma oferta generosa daquela mulher bonita e muito carente que, certamente, não me dará outra oportunidade. 
Naquele momento, reconhecia um significado tão real nas palavras dela que não as conseguia afugentar da mente. Nem mesmo a amizade que o ligava a Horácio constituía qualquer entrave pois, nunca tivera preconceitos dessa natureza.
O seu único receio assentava, sobretudo, na exposição aos olhos da vizinhança, especialmente, quando se tratava de mulheres comprometidas como era o caso de Francisca. 
O sol estava quase a nascer e Nicolau tinha que tomar uma decisão antes que surgisse algum transeunte e lhe complicasse as coisas. De repente, como que iluminado por uma ideia genial, retomou a marcha e foi ao encontro dela. 
Depois de deixar a rua principal, percorreu os cerca de cinquenta metros de acesso ao beco com a máxima precaução. Logo que se enquadrou com a janela do edifício que a Francisca habitava, abrigou-se e fez-se anunciar atirando um pequeno grão de areia de encontro ao vidro, tentando, assim, não atrair atenções indesejadas. Como se já o aguardasse, ao fim de poucos segundos, ela abriu-lhe a porta e ele entrou em silêncio.
O tempo foi passando sem que os dois amantes dessem por isso. Uma hora mais tarde, o Quelho dos Gaios, como era conhecido, o beco onde Francisca morava, tornou-se barulhento criando, assim, enormes preocupações a Nicolau. 
–   Está na hora de ir abrir o café! – sussurrou  Nicolau, ao ouvir o ambiente ruidoso que os envolvia.
–   Ainda é cedo! – disse ela, puxando-o para si.
Nesse momento bateram à porta. Batimento que gelou de imediato os corações ainda afogueados dos dois amantes. Nicolau ficou de tal modo perturbado que saltou da cama e agarrou a roupa com determinação, acabando por vestir as calças do avesso. 
–    Quem é? – questionou Francisca, um pouco estonteada, enquanto tentava apanhar o roupão. – Quem é? – repetiu no mesmo tom atabalhoado. Como não obteve resposta, foi espreitar à janela com o coração acelerado. Deparou-se com a dona Miquelina, a sua sogra, que de imediato disparou:
–    Caramba, até parece que estás surda! São lá horas para estar na cama! 
–    Estou com dores de cabeça! – respondeu Francisca.
–    Trata de abrir a porta! Quero falar contigo! 
Ao ouvir a voz impertinente da Miquelina, Nicolau ficou ainda mais inquieto. Não pensou duas vezes. Com a ajuda da Francisca saltou por uma janela que dava para as traseiras do prédio e aí se manteve até tomar consciência de que o seu caminho estava desimpedido.

Entretanto, na cafetaria, um dos primeiros fregueses foi o Saraiva, um negociante de madeiras, que passava por ali com alguma frequência. Depois de ter pedido um café, questionou: 
–    Então, o amigo Nicolau ficou a dormir? 
–    Perdeu-se pelo caminho! – respondeu ela, lacónica.
–    Talvez a senhora me saiba informar se ele já vendeu os eucaliptos?
–    Não sei não!
–    Qual será a melhor hora para falar com ele?
–    Isso também eu queria saber! 
–    Foi às compras?
–  As compras devem ter sido outras. Mas quando ele chegar vai ter que me explicar tudo direitinho… – resmungou Josefina, num estilo descortês e carrancudo.
–   Não há problema! – respondeu ele, poisando uma moeda em cima do balcão para pagar a despesa e acrescentando: 
–    Não se rale! Eu passo cá mais tarde!
–    Faça como entender!
Assim, Saraiva, que ocupou grande parte do dia a tratar dos seus negócios, a meio da tarde, voltou ao café para falar com Nicolau sobre os eucaliptos que aquele lhe quisera vender na semana anterior. Passou pela esplanada e atravessou a sala sem ver vivalma. Quando se abeirou do bar apercebeu-se, então, de uma silhueta masculina sentada atrás do balcão. Tinha a cabeça curvada sobre os joelhos numa pose angustiada.
–   Com que então hoje resolveu fazer gazeta? – exclamou Saraiva em forma de saudação. 
Nesse momento, João Nicolau levantou-se com notada dificuldade. Tinha o rosto parcialmente desfigurado por vários traumatismos e uma vista afetada por um enorme hematoma.
–    Afinal que trabalho foi esse? – questionou de imediato Saraiva.
–   Nem queira saber, há dias que não devíamos sair à rua. – respondeu Nicolau, abatido e cabisbaixo.
–    Não me diga que isso foi obra de algum marido ciumento? 
–   Antes fosse, que era sinal de que tinha tido algum proveito! Sabe que gerir um negócio destes não é tarefa fácil. Entra um cliente e paga um copo, a seguir eu pago outro e no final do dia as coisas complicam-se. Assim, ontem à noite, quando regressava a casa, com um grãozinho na asa, dei uma queda que me deixou neste estado.
–    Já foi ao oftalmologista? 
–    Ainda não, amigo Saraiva.
–   A sua vista está muito feia! Vá ao hospital antes que as coisas piorem! Com os olhos não se deve facilitar!
–   É isso mesmo que você acha? – perguntou Nicolau, num estilo acabrunhado, bem longe do seu porte galã que lhe dera fama.
–    Acho que deve ir ao médico quanto mais depressa melhor!
–    Se eu pudesse conduzir até já tinha ido!
–    Feche a porta e venha comigo! Eu vou para Coimbra e levo-o à urgência! 
 –  Nicolau!... Tu não vais a lado nenhum!... – exclamou Josefina que surgiu repentinamente na sala sem que eles dessem por isso, num tom de causar calafrios a um coração empedernido que calou os lamentos do Nicolau. 
–   Francamente, você já reparou bem no estado em que o seu marido tem a vista? – advertiu Saraiva.
–   Sabe o que é que eu acho? É que ele ainda levou poucas! Mas não perde pela demora! 
–    Oh!... Oh!... Isso é lá coisa que se faça, dona Josefina! 
–    Ele que fique bem caladinho, para não levar mais! 
–    Amigo Nicolau e quanto aos eucaliptos?
–    Hoje não estou em condições para falar de negócios.  
–    Então! Você quer boleia ou não? – insistiu Saraiva.
–    Eh!... Eh!... Deixe lá! Acho que não vale a pena, isto passa com o tempo! – rematou o pobre Nicolau.