Ainda não eram cinco horas da manhã quando João Nicolau despertou à claridade que lhe entrava pela janela do
quarto. Saltou da cama, dirigiu-se à janela para olhar o céu e verificou que a única nuvem visível deixara a lua a descoberto que, assim liberta, inundava de luz todo o lugar de
Vale da Ponte.
Finalmente, depois de algumas
semanas tristonhas com chuva frequente, aquela madrugada de março chegara
risonha como que anunciando a primavera. Animado pela chegada do bom tempo, Nicolau decidiu partir de
seguida para a cafetaria que possuía no outro extremo do lugar. Embora o
horário de abertura fosse só às oito horas, antes disso, tinha que se ocupar
das tarefas de manutenção e limpeza do todo o espaço comercial.
Nicolau tinha a fama de mulherengo.
Uma espécie de diploma que conquistara no Algarve, aquando ali arranjara
trabalho no ramo hoteleiro, onde convivera de perto com turistas, na sua maioria nórdicas. Mais tarde,
depois de casar com a Josefina foi perdendo esse estilo galã e leviano que lhe
dera a fama, mas a esposa continuava desconfiada. Agora, aos quarenta anos de
idade, estava estabelecido na terra onde nascera e só pensava em rentabilizar
ao máximo o seu estabelecimento comercial.
Naquela manhã, antes de sair de
casa, foi sussurrar ao ouvido da esposa que ainda dormitava:
– Podes dormir
mais um pouco! Eu vou preparar a esplanada para o dia solarengo que se
avizinha. Tenho cá um pressentimento que o negócio vai melhorar.
– Deus te oiça,
que a vida está difícil! – disse Josefina, que entretanto despertara.
– De qualquer
modo, não precisas de lá aparecer antes das onze horas que eu vou orientando o
serviço.
– Até parece que
me queres ver longe! Ou será que vais ao encontro de alguma apaixonada?
– Francamente!...
Quero que aproveites a manhã para descansar! – disse Nicolau.
– Hum!... Não
estou habituada a esses cuidados! Vai tranquilo que eu não te vou incomodar!
– Como sabes tenho de carregar os frigoríficos, depurar a máquina do café, varrer a
esplanada e preparar a montra… Não quero que os clientes reclamem! Ainda não me
esqueci da multa que apanhámos por causa do alfacinha. Aquele empertigado que
cá veio passar as férias de verão e que por um motivo fútil exigiu o livro de
reclamações onde escreveu aquilo que lhe apeteceu. Uma brincadeira que não nos
ficou nada barata! – justificou-se Nicolau.
– Como é que eu
posso esquecer de uma coisa dessas? Esse vaidoso que não me apareça mais à
frente, senão… De qualquer forma ainda não percebi o motivo da tua pressa! –
disse ela.
– Não sabes que
tenho muito trabalho a fazer!...
– Ou será que tens
lá alguma à tua espera? – teimou Josefina.
– Para mim és a única mulher e a mais bonita do mundo!
– Hum!...
Depois de dirigir o galanteio à
esposa, Nicolau meteu-se ao caminho decidido a dar início às tarefas a que se
propusera. Contudo, logo que saiu de casa, Josefina seguiu-lhe os passos
tentando descobrir se o que ele dissera correspondia à verdade.
A desconfiança dela começara a
avolumar-se no dia em que a sua comadre lhe viera contar que Nicolau passara uma
manhã inteira a conversar com uma rapariga estrangeira que dias antes ali
tinha estado a pedir emprego. Agora, até as vizinhas da Josefina falavam da
forma descarada como a rapariga se sentava no café mostrando as pernas de
forma exagerada.
Perante tal falatório, Josefina
decidira que logo a oportunidade surgisse iria pôr um fim àquela pouca-vergonha. Foi com essa ideia em mente que meteu
os pés ao caminho confiante de que iria apanhar o marido em flagrante.
Assim, obedecendo à sua intuição,
logo que se aproximou do rio, viu o marido especado em cima da ponte, de olhar
tão concentrado, como se aguardasse por um sinal vindo da parte do casario que se situava a
montante do rio. Para não se denunciar, escudou-se atrás de um tronco de uma
Mongólia até ele dobrar a esquina ao fundo da rua. Depois, tentou seguir-lhe a
peugada à distância. No entanto, mal ele chegou ao largo que tinha como pano de
fundo a sua cafetaria, perdeu-lhe o rasto.
Para Josefina só restavam duas
opções: regressar a casa na ignorância do destino do marido, ou esperar que ele
voltasse ao local de trabalho para o questionar com a pertinência que a
situação exigia. Então, acabaria por optar pela segunda, mantendo-se de tocaia a
um canto afastado. Como ele tardava, tomou a iniciativa de abrir a porta à cafetaria
indiferente às perguntas que daí iriam, naturalmente, resultar.
Quando João Nicolau abandonou a
viela onde residia e entrou na rua principal, já clareava o dia, mas não se
vislumbrava vivalma ao longo da artéria que se prolongava, em linha reta, por mais
de duzentos metros. Embora soprasse uma ligeira brisa de leste, que trazia
consigo alguma humidade, a temperatura era agradável. Nicolau já não se
recordava de ter saído de casa tão cedo. Assim, atravessar o lugar àquela hora
da manhã, sorvendo as fragrâncias e os silêncios matinais, não deixava de ser
uma deleitosa experiência que tencionava repetir. Entretanto, quando
atravessava o rio, olhou casualmente para o largo da fonte, local de paragem
das carreiras de transportes públicos e reparou que o seu amigo Horácio se
apressava a entrar para um autocarro expresso com destino à capital. Sem saber
muito bem porquê, logo que o veículo arrancou, Nicolau parou e deteve-se por
instantes a olhar o forte caudal que corria sob a ponte fruto da chuva dos dias
anteriores. De repente, veio-lhe à memória o que Francisca lhe dissera na
véspera:
– Amanhã, o Horácio vai a Lisboa. Fico sozinha o dia todo!
Na altura, Nicolau não dera a devida
atenção ao que Francisca lhe dizia.
Agora, aquela conversa já fazia
sentido. O terreno estava livre pois, vira o Horácio a embarcar no autocarro.
– Não, da última
vez que estive com ela prometi a mim próprio que não voltaria a acontecer. Além
disso, tenho muito trabalho para fazer e na ruela onde ela mora há beatas muito
bisbilhoteiras. – pensava ele, como a querer convencer-se do contrário, e
continuou – mas não deixa de ser penoso recusar uma oferta generosa daquela
mulher bonita e muito carente que, certamente, não me dará outra oportunidade.
Naquele momento, reconhecia um significado
tão real nas palavras dela que não as conseguia afugentar da mente. Nem mesmo a
amizade que o ligava a Horácio constituía qualquer entrave pois, nunca tivera
preconceitos dessa natureza.
O seu único receio assentava,
sobretudo, na exposição aos olhos da vizinhança, especialmente, quando se
tratava de mulheres comprometidas como era o caso de Francisca.
O sol estava quase a nascer e
Nicolau tinha que tomar uma decisão antes que surgisse algum transeunte e lhe
complicasse as coisas. De repente, como que iluminado por uma ideia genial,
retomou a marcha e foi ao encontro dela.
Depois de deixar a rua principal,
percorreu os cerca de cinquenta metros de acesso ao beco com a máxima precaução. Logo que se
enquadrou com a janela do edifício que a Francisca habitava, abrigou-se e
fez-se anunciar atirando um pequeno grão de areia de encontro ao vidro,
tentando, assim, não atrair atenções indesejadas. Como se já o aguardasse, ao
fim de poucos segundos, ela abriu-lhe a porta e ele entrou em silêncio.
O tempo foi passando sem que os dois
amantes dessem por isso. Uma hora mais tarde, o Quelho dos Gaios, como era
conhecido, o beco onde Francisca morava, tornou-se barulhento criando, assim,
enormes preocupações a Nicolau.
– Está na hora de ir
abrir o café! – sussurrou Nicolau, ao ouvir o ambiente ruidoso que os
envolvia.
– Ainda é cedo! – disse
ela, puxando-o para si.
Nesse momento bateram à porta.
Batimento que gelou de imediato os corações ainda afogueados dos dois amantes.
Nicolau ficou de tal modo perturbado que saltou da cama e agarrou a roupa com
determinação, acabando por vestir as calças do avesso.
– Quem é? –
questionou Francisca, um pouco estonteada, enquanto tentava apanhar o roupão. –
Quem é? – repetiu no mesmo tom atabalhoado. Como não obteve resposta, foi espreitar
à janela com o coração acelerado. Deparou-se com a dona Miquelina, a sua sogra,
que de imediato disparou:
– Caramba, até
parece que estás surda! São lá horas para estar na cama!
– Estou com dores
de cabeça! – respondeu Francisca.
– Trata de abrir a
porta! Quero falar contigo!
Ao ouvir a voz impertinente da
Miquelina, Nicolau ficou ainda mais inquieto. Não pensou duas vezes. Com a
ajuda da Francisca saltou por uma janela que dava para as traseiras do prédio e
aí se manteve até tomar consciência de que o seu caminho estava desimpedido.
Entretanto, na cafetaria, um dos
primeiros fregueses foi o Saraiva, um negociante de madeiras, que passava por
ali com alguma frequência. Depois de ter pedido um café, questionou:
– Então, o amigo
Nicolau ficou a dormir?
– Perdeu-se pelo
caminho! – respondeu ela, lacónica.
– Talvez a senhora
me saiba informar se ele já vendeu os eucaliptos?
– Não sei não!
– Qual será a
melhor hora para falar com ele?
– Isso também eu
queria saber!
– Foi às compras?
– As compras devem
ter sido outras. Mas quando ele chegar vai ter que me explicar tudo
direitinho… – resmungou Josefina, num estilo descortês e carrancudo.
– Não há problema!
– respondeu ele, poisando uma moeda em cima do balcão para pagar a despesa e
acrescentando:
– Não se rale! Eu
passo cá mais tarde!
– Faça como
entender!
Assim, Saraiva, que ocupou grande
parte do dia a tratar dos seus negócios, a meio da tarde, voltou ao café para
falar com Nicolau sobre os eucaliptos que aquele lhe quisera vender na semana
anterior. Passou pela esplanada e atravessou a sala sem ver vivalma. Quando se
abeirou do bar apercebeu-se, então, de uma silhueta masculina sentada atrás do
balcão. Tinha a cabeça curvada sobre os joelhos numa pose angustiada.
– Com que então
hoje resolveu fazer gazeta? – exclamou Saraiva em forma de saudação.
Nesse momento, João Nicolau
levantou-se com notada dificuldade. Tinha o rosto parcialmente desfigurado por
vários traumatismos e uma vista afetada por um enorme hematoma.
– Afinal que
trabalho foi esse? – questionou de imediato Saraiva.
– Nem queira
saber, há dias que não devíamos sair à rua. – respondeu Nicolau, abatido e
cabisbaixo.
– Não me diga que
isso foi obra de algum marido ciumento?
– Antes fosse, que
era sinal de que tinha tido algum proveito! Sabe que gerir um negócio destes
não é tarefa fácil. Entra um cliente e paga um copo, a seguir eu pago outro e
no final do dia as coisas complicam-se. Assim, ontem à noite, quando regressava
a casa, com um grãozinho na asa, dei uma queda que me deixou neste estado.
– Já foi ao
oftalmologista?
– Ainda não, amigo
Saraiva.
– A sua vista está
muito feia! Vá ao hospital antes que as coisas piorem! Com os olhos não se deve
facilitar!
– É isso mesmo que
você acha? – perguntou Nicolau, num estilo acabrunhado, bem longe do seu porte
galã que lhe dera fama.
– Acho que deve ir
ao médico quanto mais depressa melhor!
– Se eu pudesse
conduzir até já tinha ido!
– Feche a porta e
venha comigo! Eu vou para Coimbra e levo-o à urgência!
– Nicolau!... Tu
não vais a lado nenhum!... – exclamou Josefina que surgiu repentinamente na
sala sem que eles dessem por isso, num tom de causar calafrios a um coração
empedernido que calou os lamentos do Nicolau.
– Francamente,
você já reparou bem no estado em que o seu marido tem a vista? – advertiu
Saraiva.
– Sabe o que é que
eu acho? É que ele ainda levou poucas! Mas não perde pela demora!
– Oh!... Oh!...
Isso é lá coisa que se faça, dona Josefina!
– Ele que fique
bem caladinho, para não levar mais!
– Amigo
Nicolau e quanto aos eucaliptos?
– Hoje não estou
em condições para falar de negócios.
– Então! Você quer
boleia ou não? – insistiu Saraiva.
– Eh!... Eh!... Deixe lá! Acho
que não vale a pena, isto passa com o tempo! – rematou o pobre Nicolau.
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