Para tentar fugir à intempérie, estuguei o passo, rua fora,
entregue às minhas cogitações e sem dar atenção ao que se desenrolava à minha
volta. Contudo, a certa altura, olhei casualmente para trás e, então, reparei
que estava a ser seguido, a poucos metros, por um cachorrito ainda jovem que,
desde logo, despertou a minha curiosidade. Com a graciosidade própria da idade,
o animal corria, saltitava e farejava, indiferente ao bulício que nos envolvia
e sem perder o meu rasto. Embora eu nunca tivesse tido um cão, achei graça ao
seu estilo vivaço e brincalhão, mas continuei apressadamente o meu caminho
receando que a chuva me apanhasse no trajeto. Porém, depois de percorrer uma
centena de metros, repeti o movimento para o observar e para surpresa minha,
constatei que o bicho continuava a seguir-me apesar de cruzarmos com alguns
transeuntes que se deslocavam em sentido oposto ao nosso. Perante isso e
atendendo à sua idade juvenil, deduzi que me confundira com o seu dono e
resolvi esclarecer aquela confusão.
Não se tratava de um rafeiro qualquer era um Épagneul-breton,
matizado de branco e castanho, orelha caída, cauda normal, porte de cerca de
dois meses de idade e aparentemente mal alimentado. O meu conhecimento em
relação a canídeos resumia-se às jornadas cinegéticas onde era frequente
cruzar com caçadores que se faziam acompanhar por animais daquela raça.
Perante o quadro que se me deparava e desconhecendo o que
acontecera ao cachorrito, fiz, então, várias tentativas para o intimidar, ao
longo do percurso, para que se afastasse, mas a sua atitude não poderia ter
sido mais surpreendente: sentava-se e movia alternadamente a cabeça para um lado
e para o outro, como se procurasse a melhor maneira de me escutar, mas não
ligava ao que eu dizia, nem se afastava. Contudo, mal lhe virava as costas retomava
a marcha atrás de mim no mesmo estilo alegre e decidido.
Enquanto me dedicava ao Épagneul, o dia fechou-se rapidamente
à claridade e uma enorme chuvada abateu-se, repentinamente, sobre a região. A
água era tanta que, cada um de nós, procurou refugiar-se o melhor que pode.
Assim, corri para uma paragem de autocarro que se localizava no outro lado da
rua, onde partilhei o abrigo e troquei banalidades, sobre a intempérie, com
outros cidadãos também a contas com o mau tempo. Com a agitação do momento,
deixei de ver o cão que provavelmente se teria refugiado debaixo de algum
veículo estacionado por perto. Ao fim de alguns minutos, o tempo melhorou e todos
seguimos o nosso caminho. Arranquei em passo rasgado em direção a casa que
distava dali menos de quinhentos metros sem, no entanto, me lembrar mais do
animal.
Na manhã seguinte, quando cheguei à rua deparei-me com o
cachorrito deitado no passeio à porta de uma mercearia. Assim que me viu,
ensaiou alguns passitos na minha direção exteriorizando o seu contentamento num
dócil e apelativo abano de cauda.
Embora, desde o início, tivesse simpatizado com aquele bicho
franzino e indefeso, naquele momento, fiquei um pouco indeciso quanto à melhor
forma de resolver a situação. Contudo uma certeza invadiu de imediato o meu
consciente: o Épagneul devia estar com fome e precisava de ser alimentado.
Quanto ao resto, haveria, certamente, tempo para decidir.
Nunca tinha pensado em adotar um cão, desde logo, por o espaço
exíguo de um pequeno apartamento que habitava anteriormente não me deixar
grande alternativa. Depois, queria evitar um sem fim de burocracias que vão
desde o licenciamento até às vacinas, passando pelos chips e seguros. Tudo
isso, sem esquecer, naturalmente, os preços praticados pelas clínicas
veterinárias que, logo à partida, desencorajam quem pretende ter um animal de
estimação. Agora, residia num bairro dos subúrbios, ordenado por vivendas de
âmbito familiar, habitado maioritariamente por gente ordeira e trabalhadora,
onde raramente surgiam alterações na civilidade. Razão para que também não
tivesse tido necessidade de um cão de guarda. Por último, contava abandonar o desporto
cinegético para me livrar das infindáveis exigências que, por seu lado, ano
após ano, vão reservando aquela paixão primitiva às elites privilegiadas.
Os motivos que, até àquela data, adiaram a decisão, não me
deixavam agora, ali, indiferente ao olhar ingénuo e apelativo daquele cachorro
que teimava em me seguir. Não sabia a origem do cão, nem conhecia os seus
tiques de personalidade, mas acabei por lhe dar abrigo sem equacionar os
contratempos que daí poderiam resultar.
Noutras jornadas, ouvira comentar que o Épagneul-breton para
além de possuir um faro apuradíssimo é polivalente,
tanto a parar como a cobrar qualquer tipo de caça menor. Ainda assim, aquela raça
tem uma aptidão especial para a caça de pena. A par destes excelentes
predicados, é inteligente, infatigável, dócil, fácil de treinar e é, ainda,
dotado de uma admirável fidelidade ao dono. Apenas um senão, é uma raça muito
vulnerável às enfermidades e porventura muito mais frágil do que as raças híbridas. Razão que à partida desmotiva muitos donos
e até criadores.
Logo que regressei a casa, no final do dia, a minha esposa
sugeriu o nome de Simba para o cachorro, com o qual concordei. Assim, depois de
lhe dar banho, instalei-o sem sequer conhecer os progenitores, nem tão pouco
lhe fazer um pequeno teste de personalidade.
A acomodação do Simba à sua nova casa não podia ter sido
melhor: depois de bem alimentado, enroscou-se no ninho e em pouco tempo
adormeceu. Contudo, a adaptação iria ser bastante problemática. Logo na segunda noite começaram as reivindicações. Como não
queria ficar sozinho desatou a ganir com tal intensidade que parecia querer pôr
em alvoroço toda a vizinhança. Porém, logo que algum de nós se aproximava,
calava-se de imediato, numa espécie de jogo psicológico para nos convencer a
tirá-lo da solidão.
Para além da perturbação inicial, aquele acolhimento viria
também a condicionar muita coisa no nosso quotidiano futuro. Desde logo,
perdemos alguma liberdade e como se isto não bastasse, ainda ficámos com a casa
virada do avesso. Para além de defecar e urinar por todo o lado, escavava o
jardim e arrancava plantas com uma persistência interminável. Escolhia para
brincar precisamente tudo o que tinha utilidade para nós. Para além disto,
sempre que lhe era barrado qualquer acesso, reivindicava com intransigência o
seu direito à destruição, traduzido num protesto de latidos ingénuos de ameaça.
O resultado, está claro, era um nunca acabar de coisas destruídas. Mas pouco
podíamos fazer para o evitar a partir do momento em que decidimos adotá-lo.
À medida que os dias se iam sucedendo, o cachorrito, sem nunca
abdicar da sua personalidade, foi-se adaptando às regras e ao seu espaço:
escolheu um local para fazer as suas necessidades fisiológicas e deixou de nos
transtornar o sono.
Entretanto, já a pensar na nova temporada de caça, resolvi
pedir informações a caçadores experimentados com perdigueiros, sobre o melhor
método de o preparar para a prática cinegética e ainda me documentei com
manuais de treino para o tentar ensinar. Apesar de todo o meu empenho, os
primeiros resultados não foram encorajadores. Mas, a partir do momento em que
começou a saber distinguir uma simples brincadeira de um treino de obediência
básica, que surgiu por volta dos seis meses de idade, tudo começou aos poucos a
modificar-se.
Para atingir bons resultados, tive a generosa colaboração de
um amigo que um dia resolveu fazer-me uma visita. Logo que se encontrou com o
bicho aplicou-lhe a trela e começou por lhe fazer alguns testes para lhe
estudar o temperamento, em termos de obediência, timidez e agressividade.
Depois prosseguiu com alguns exercícios, tais como sentar, deitar e levantar,
partindo sempre da ideia de que, cada um deveria ser de curta duração para não
provocar saturação no animal. No final, deu-me algumas dicas sobre a melhor forma
de continuar o treino. Onde salientava que todo o cachorro deve ser acarinhado
e compensado sempre que os exercícios corram bem.
Por volta de um ano de idade, passou, de um dia para o outro,
a evidenciar alguma agressividade. Começou por atacar as pessoas estranhas que
se deslocassem lá a casa, expondo assim os seus instintos ancestrais. Os
condutores de veículos de duas rodas tornaram-se nos seus alvos preferenciais.
Penso que a sua aversão estaria relacionada com o uso
do capacete de proteção por parte daqueles. Numa certa ocasião, o carteiro
depois de desmontar do ciclomotor foi entregar o correio, mas como fazia uso do
capacete não perdeu pela demora. O cachorro aproximou-se, sorrateiramente,
rasgou-lhe as calças e deixou-lhe os dentes marcados numa perna. Também uma
vendedeira, que carregava à cabeça os seus produtos agrícolas, ficou imóvel até
à chegada da minha esposa, enquanto o cachorro, em estilo intimidativo,
descrevia círculos contínuos à sua volta forçando-a a imobilizar-se, sem, no
entanto, a chegar a molestar. Comportamento que nos obrigou a tomar medidas
preventivas para acautelar outros incidentes.
Numa tarde de verão, resolvi levar o Simba ao rio, para que
fizesse algum exercício físico, numa fase do ano em que o tempo convida muita
gente para as áreas fluviais. Escolhi propositadamente uma zona que, embora
espaçosa e de fácil acesso, era pouco frequentada por banhistas, logo ideal
para que o cão se movimentasse sem lhes causar incómodo.
Ainda em casa, prendi-o pela trela para durante a deslocação o
defender de alguns condutores apressados que habitualmente conduziam naquela
artéria que era a única que dava acesso ao nosso destino. Depois, seguimos
pela berma, ao longo de um quilómetro que era a distância que nos separava
daquele curso de água.
Era a primeira vez que o animal tomava contacto com aquele
local, mas assim que avistou a água ficou de tal modo excitado que salivava
abundantemente e não parava de me puxar. Entrámos pela margem direita e logo
que chegámos ao areal tirei-lhe a trela para que se movimentasse livremente.
Assim que o soltei, entrou água dentro com tal vivacidade que parecia nada o
poder parar. Corria, nadava e rebolava na areia, com grande euforia.
Decorridos os instantes iniciais, durante o qual libertou
muitas energias, veio ao meu encontro para me desafiar a imitá-lo. Simulava
atacar-me e depois afastava-se veloz, mas logo a seguir repetia o movimento
provocatório. Tudo isso revestido de uma alegria contagiante. Não resisti.
Acabei por me associar à brincadeira e, durante perto de uma hora, diverti-me
como não imaginara.
A certa altura, na margem contrária à que nos encontrávamos,
surgiu um casal, de um escalão etário a rondar os quarenta anos que se fazia
acompanhar por um caniche peludo e gordo que, à distância a que me encontrava,
se assemelhava a um ouriço-cacheiro, em ponto grande. Tudo decorria
normalmente, até então, mas assim que o pequenote avistou o Épagneul correu
desafiante ao seu encontro, ameaçando travar-se de razões com ele, que por sua
vez o olhou com curiosidade, mas não lhe dispensou a importância que aquele
julgara merecer. Entretanto a senhora, de ar altivo, fingindo tentar conter a
suposta ameaça, exclamou:
–
Lion, vien ici! Vien ici, mon chéri!
Apesar do chamamento, a pequena fera prosseguiu numa correria
desenfreada e investiu areal dentro até entrar na água e perder o pé. Aí as
coisas complicaram-se: devido ao seu porte pesado começou, aos poucos, a
afundar-se e a ser levado pelo fraco caudal, ao ponto de só ficar com o
focinhito à vista. Por mais que se esforçasse não conseguia flutuar e sair daquela
situação embaraçosa.
–
Vien
ici, mon petit! – continuava ela, sem qualquer êxito e sem se aproximar da
corrente, mas exibindo um francês todo repenicado. Por sua vez, o homem, em
estilo desportivo, deambulava serenamente pelo areal, entregue ao prazer de um
cigarro, sem dar importância ao cachorro nem ao que a senhora dizia. Perante o
quadro que se apresentava teria de ser eu a socorrer o caniche. Então, sem
esperar qualquer êxito, disse:
–
Simba!
Vai buscar o refilão antes que ele se afogue!
Ele olhou para mim, com ar intrigado, como se quisesse certificar
de que eu falava a sério para então agir.
–
Vai
buscar o peludo! – insisti – que ele é frágil e já mal consegue respirar.
De imediato, o cachorro desatou a correr e depois a nadar no
encalce do caniche que, entretanto, já se afastara três dezenas de metros. Logo
que o alcançou, abocou-o pelo pescoço e arrastou-o até à areia seca, na margem
de onde aquele viera. Depois, receando que o rufia ainda não estivesse
suficiente longe do perigo, abocou-o novamente e transportou-o até o poisar
junto à madame. Quando viu que me deslocava para ver de perto o que estava a
acontecer, deixou a vítima e caminhou vaidosamente ao meu encontro como se
esperasse uma recompensa pelo que fizera.
Foi bonito de se ver: não só a façanha do Simba, como a cara
de espanto da senhora que ficara tão surpreendida quanto eu. Também o caniche que
apesar de ofegante deixava sair uma expressão cabisbaixa parecendo estar
rendido à valentia daquele que antes tomara como seu inimigo. Devo confessar
que nunca imaginei assistir a uma cena tão genuinamente altruísta, envolvendo o
reino animal, o que poderia ser um excelente exemplo para gente, com quem nos
cruzamos na rua e que perante uma situação idêntica seria incapaz de dar alguns
segundos do seu tempo, para auxiliar o seu semelhante. Fiquei maravilhado com o
desenrolar daquela ação digna de ser filmada para que a pudesse rever.
Depois de uma breve conversa com a madame, esta juntou-se ao
companheiro que, entretanto, se aproximara de nós e partiram com a mesma
ligeireza descontraída com que haviam chegado.
Assim que ficámos a sós, o Simba ficou mais calmo: parecia
cansado e as minhas pernas também já acusavam fadiga provocada não só pela
falta de treino como também pela areia que tornou aquele exercício muito mais
desgastante. Foi uma fuga ao quotidiano em que usufrui da generosa companhia de
um amigo. Corri, pulei e brinquei, como um adolescente.
Sem comentários:
Enviar um comentário