sexta-feira, 21 de março de 2014

FUGINDO À INDIGÊNCIA






Cansado de um quotidiano de penúria, Joaquim Boavida resolveu dar novo rumo à sua vida. Apesar de trabalhar muitas horas por dia, quase de sol a sol, não ganhava o suficiente para sustentar a família que ia sobrevivendo no limiar da indigência.
Naquela época, o país estava mergulhado numa grande crise económica, (um pouco à semelhança do que se passa atualmente em que a ditadura dos mercados estabelece as suas regras e tudo gira à volta delas), e muita gente buscava na emigração, especialmente para França, a solução para a pobreza que grassava por quase toda a classe operária. Para isso, contatavam emigrantes já consolidados, reuniam o dinheiro exigido pelos passadores e partiam ilegalmente em busca de alguns francos que lhes mitigassem as carências.
Assim, Joaquim Boavida logo que recebeu uma resposta positiva de um amigo, emigrante em França, a quem solicitara que lhe arranjasse trabalho naquele país não pensou duas vezes: pediu dinheiro emprestado a um familiar, procurou um passador e na data acordada meteu-se a caminho.
Na madrugada da véspera de Natal de 1965, apanhou o comboio em Coimbra com destino a Vilar Formoso. Logo no início da viagem, receando vir a ser roubado, descalçou uma bota e acondicionou uma nota de mil escudos, entre a meia e o peito do pé. Uma reserva para fazer frente a qualquer emergência que pudesse surgir. Na bagagem, que se limitava a um pequeno saco de linhagem, levava, apenas, uma muda de roupa, por sinal, já muito ponteada pela sua esposa e alguns pedacitos de pão com sabor a conduto. Ainda se fazia acompanhar de um pequeno feixe de vides com a finalidade de não despertar a atenção da polícia política portuguesa, (PIDE), que à data controlava todos os movimentos dos cidadãos. Fora, assim, aconselhado pelo passador para dar a ideia de que ia trabalhar na vinha daquela região do país. 
Assim, em função do combinado, Joaquim Boavida abandonou o comboio no apeadeiro da Freineda, com o molho de vides debaixo do braço, à espera de um sinal que lhe desse alguma tranquilidade. Logo que se apeou, foi interpelado por um indivíduo que se pronunciava em castelhano e que de imediato o encaminhou para um barracão agrícola, onde já se encontravam outros sete candidatos a emigrantes, oriundos de várias regiões do país. Passaram ali a noite de coração apertado e rodeados de carências. Na madrugada seguinte, foram divididos em dois grupos. O grupo onde se integrava Joaquim Boavida foi o primeiro a sair. Orientado por uma mulher ainda jovem que conduzia um burro carregado com três molhos de vides, caminhou ao longo das propriedades em poisio, com o gelo a estalar debaixo dos pés até chegar a um abrigo improvisado junto à Ribeira de Tourões, já perto da fronteira onde ficaram à espera de ordens. Mais tarde, chegaria também ali o segundo grupo.
Ao início da noite, todos os elementos tiraram a roupa e fizeram a travessia da ribeira a vau, com água pela cintura, enfrentando a torrente e a temperatura gélida que ao crepúsculo ainda se tornara mais inclemente. Mas a vontade de vencer era grande e o frio cortante não constituiu obstáculo para lhes criar desmotivação. Logo que chegaram à outra margem foram conduzidos a outro esconderijo, um aqueduto que se situava perto da fronteira de Vilar Formoso, onde foram informados que a vigilância fronteiriça havia sido reforçada e como tal teriam que esperar o tempo que fosse necessário até aquela abrandar. Ao frio e mal alimentados, só ao início da noite seguinte, receberam uma refeição ligeira trazida por uma senhora idosa que lhes deu informações sobre a situação.
Finalmente, ao início da terceira noite, foram recolhidos pelo mesmo indivíduo que viram em Freineda e que conduzia um Citroen DS, vulgarmente conhecido como boca de sapo, de matrícula espanhola. Após uma rápida troca de palavras com aquele, ficaram a conhecer as regras a seguir durante a viagem em território espanhol. Joaquim Boavida e outro individuo, que eram os mais franzinos, foram encarcerados na bagageira e os restantes seis no habitáculo. 
Quando Joaquim Boavida entrou naquele espaço acanhado, sem ventilação e onde quase não se podia mexer, teve pensamentos de toda a espécie. Desde a ironia do seu apelido, passando pela possibilidade de via ser preso, até ao limite da sua resistência física, tudo lhe passou pela mente. Só ali, naquela clausura, mergulhado na escuridão e sujeito aos mais variados solavancos tomou verdadeira consciência da difícil aventura em que se metera. No entanto, sabia que não tinha alternativa. Não queria ser detido e estava totalmente dependente do passador, que apenas conhecera quando lhe entregara os treze mil e quinhentos escudos para o passar para França. Agora, desistir, para além de uma manifestação de fraqueza, seria alimentar um drama ainda maior. No país não tinha forma de ganhar o dinheiro para o poder restituir a quem lho emprestara. Por isso, não podia fracassar, teria de resistir até ao limite das suas forças sem esboçar protesto.
 Ao fim de quatro horas na mesma posição, mergulhado na escuridão, sentia-se tonto, já mal conseguia respirar e os membros já não reagiam aos seus impulsos cerebrais. Contudo, ia resistindo com a convicção de que a sua vida iria mudar para melhor. Quando lhe abriram a porta, estava paralisado e teve a nítida sensação de que acordara de um sonho de terror em que, por momentos, chegara a perder a consciência. Mas assim que respirou a brisa fria da noite conseguiu recuperar, momento em que foi informado que estava numa estação de serviço, perto de Burgos. Na continuação da viagem, foi substituído na bagageira por outro desgraçado, por sinal um pouco mais encorpado, que não fazia a mínima ideia da tortura que o esperava.
Mais tarde, a caminho dos Perineus, o motorista foi forçado a uma manobra de diversão para se furtar aos agentes da polícia espanhola que mandaram parar o veículo. Assim, depois de alguns quilómetros de uma correria desenfreada, por estradas secundárias, sinuosas e esburacadas, onde só um verdadeiro milagre evitou o acidente, os emigrantes foram deixados numa barraca abandonada, em plena floresta. Por seu turno, o motorista substituiu as chapas de matrícula do Citroen o mais rápido que lhe foi possível e logo a seguir desapareceu no meio do arvoredo deixando, apenas, a intenção de voltar logo que a situação o permitisse.
Ali, em território hostil, de barriga vazia e receando o pior, esperaram até ao início da noite. Momento em que foram surpreendidos por outro espanhol que, depois de entregar um pão a cada um, os encaminhou para um veículo pesado estacionado nas imediações. Assim que o ocuparam ficaram a saber que estava adaptado com uma divisória na caixa de carga. À retaguarda carregava legumes e na outra extremidade, junto à cabine, tinha uma caixa falsa para acomodar os emigrantes. O acesso era pela cabine, através de uma pequena abertura no banco do motorista, pela qual foram empurrados, um a um, como gado para abate. Assim, a situação de clausura repetia-se, agora, até final da viagem. Com uma agravante, o cheiro era insuportável.
No final do dia seguinte, chegaram aos arredores de Paris onde cada um ficou entregue a si próprio. Joaquim Boavida nem queria acreditar de que se livrara daquela viagem atribulada em que passara os dias mais amargurados da sua existência. Todavia, tinha um pressentimento de vitória. Estava feliz, porque acabara de chegar a um país onde lhe era possível sonhar com melhores dias. Com esse espírito em mente, apanhou um táxi a caminho de Maison Laffitte onde o esperava uma vida de muitos sacrifícios, mas também com algumas compensações.
Começou por tratar da sua legalização que lhe ficou em trezentos francos, adiantados pelo patrão que, desde logo, lhe passou a pagar quatro francos por cada hora de trabalho.
Ali, fugindo à indigência, encontrara a sua segunda pátria!    
 

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