O Sargento Gervásio era um militar que,
depois de mais de três décadas em que participara em muitas missões de alto
risco, se encontrava na situação de reserva. Para além de outras, destacam-se duas
mobilizações para a guerra colonial, uma para Angola outra para Moçambique. Nesses
dois cenários integrara as mais variadas missões, mas sempre em locais onde a atividade
da guerrilha era mais aguerrida
Agora, estava refugiado na Serra num pequeno lugarejo situado próximo do rio Zêzere onde buscava o merecido
sossego. Local onde esperava encontrar o aconchego que, por imperativo de
missão, lhe fora negado ao longo da sua carreira de serviço onde, com
resiliência, sempre evidenciara a sua abnegação estoica.
Finalmente, aguardava o inevitável
entardecer da vida longe das sombras desse passado que fora sempre impregnado
dos mais variados sacrifícios, mas onde a estrelinha da sorte estivera do seu
lado preservando, não só, a sua integridade física como até a de caráter.
Sempre que recordava aqueles tempos
tumultuosos, em que vivera sob um regime que rejubilava ao silenciar os mais
fracos, ainda, era notório um pequeno rasgo de nostalgia pela forma como soube
enfrentar todas as adversidades com que era confrontado, até mesmo em palcos de
guerra. Da mesma forma, lamentava já não ter a idade e a vitalidade daquela
época, mas fazia os possíveis para desenvolver uma atividade regular e ocupar o
tempo disponível na lida campestre onde acompanhava o crescimento dos muitos
produtos hortícolas que ele próprio ia semeando. Não queria ficar ocioso e
aguardar o passar do tempo com a resignação pachorrenta de quem já não espera
mais nada da vida.
Agora, o Gervásio raramente se
deslocava à cidade, mas quando tal acontecia era para participar em almoços de
convívio na companhia de alguns camaradas do seu tempo que, após o afastamento
profissional, comungavam, ainda, de elevado espírito de amizade e camaradagem.
Não passava de um pretexto para se irem encontrando depois de uma geração
inteira de trabalho impregnada de provações em que o relacionamento, entre
eles, se fora tornando familiar. Todos esses encontros eram aproveitados para
uma confraternização pura. Discutiam assuntos de interesse comum, partilhavam
ideias e recordavam histórias, revivendo algumas etapas da caminhada dos sonhos
desfeitos. Histórias verdadeiras, não só de momentos eternos e do sentimento do
dever cumprido como também das dificuldades, de toda a ordem, que enfrentaram
durante todo o percurso ativo.
Durante os convívios, por vezes,
surgiam birras entre alguns elementos do grupo a troco de uma simples teimosia.
Todavia, o Gervásio, bom conhecedor da natureza humana, fruto também da sua experiência nas relações com o público, tratava logo de apaziguar os ânimos partindo da ideia de que algumas pessoas, a partir de certa idade, regridem em
termos espirituais. Do mesmo modo, lamentava que a parte física não fizesse
essa mesma trajetória recuando ao tempo da infância. Essa sim, seria uma
mudança maravilhosa para toda a humanidade e que espantaria, até, os cientistas
que há muito buscam uma fórmula para eternizar a juventude.
É por demais evidente que o desgaste
ao longo da vida vai tornando os homens mais frágeis e sensíveis, dando
facilmente azo a melindres a pretexto das coisas mais insignificantes que
poderemos imaginar. Em face disso, compete aos que ainda não atingiram essa
fase decadente fazerem uma mediação tolerante e ponderada dos conflitos para
que uma longa amizade não seja, subitamente, amputada devido a uma questão de
menor importância.
Quando o Gervásio e os camaradas do
seu tempo desempenhavam funções, todos os subalternos viviam um quotidiano de
tal modo submisso que se tornaram mais solidários e leais, criando em torno
desses valores muitas cumplicidades, mas norteando sempre o espírito de unidade
que era uma das divisas da sua condição. Assim, viam nessa firme ligação um
exercício de bravura e o melhor processo de irem superando as injustiças e as
exigências desmedidas que surgiam a cada momento do seu quotidiano. Com o
passar lento dos anos e a renovação de alguns quadros as mentalidades foram,
felizmente, evoluindo para patamares de maior justiça. Contudo, o espírito de
unidade reinante até então, nos escalões inferiores, foi-se mantendo,
orgulhosamente, intacto na alma dos que iam restando.
Mais tarde, com a chegada dos mais
novos, tudo se tornaria incomparavelmente diferente: por um lado, a liberdade
deu origem a formas de trato muito mais humanas e civilizadas que, por si só,
permitiram uma maior autonomia individual, a todos os níveis; por outro, a
agitação quotidiana não concede, certamente, espaço para grandes amizades entre
as pessoas para que se aglutinem em torno dos valores que, para as gerações anteriores,
constituíam uma marca de referência.
Naquele dia, estavam reunidos em
mais um convívio e a determinada altura, depois de a discussão ter versado
vários assuntos, o Gervásio disse:
– Os temas de hoje conduziram-me a
um passado com mais de quatro décadas ao encontro de algumas etapas que ainda
povoam a minha memória, como foi o caso do cão que me acompanhou em algumas
operações no mato, aquando do cumprimento da minha comissão em Angola.
‘Era um pastor alemão – continuou
ele, enquanto os restantes o escutavam, – lindo, pujante e corpulento, parecia
um lobo. Também ele foi vítima daquela guerra estúpida que se fartou de
molestar inocentes. Apesar de nunca ter sido treinado para isso,
acompanhava-nos em muitas operações no mato e cooperava instintivamente na
segurança das instalações de um pequeno destacamento perdido algures nas terras
do fim do mundo, longe de tudo aquilo que, para nós, era minimamente elementar.
Tratava-se de uma pequena subunidade que se ia articulando no terreno, conforme
as necessidades de adaptação ao desenrolar da missão que lhe fora atribuída:
garantir a segurança do pessoal e meios, empenhados na construção de uma
estrada em zona de combate, mais precisamente, nas imediações do rio Sessa que
se situa a leste do país.
A função policial de que tínhamos
sido incumbidos representava para nós um risco acrescido e para o qual não
havíamos sido preparados. No entanto, para tentar minimizar as consequências
que um ataque de surpresa poderia causar às nossas forças, deitávamos mão a
tudo o que nos poderia dar alguma vantagem como fora o caso da adoção daquele
animal que dava pelo nome de Nero. Só quem viveu aqueles dias atribulados
poderá ter uma noção avalizada sobre o enorme sentimento de insegurança que
sentíamos na selva. Era à noite que a nossa miserável fragilidade guerreira se
tornava mais real e quase assumia laivos de crueldade. Ficávamos entregues a
nós próprios no meio das trevas e de um abismo sem fim. Estávamos rodeados de
múltiplos e indecifráveis ruídos, com o inimigo a rondar por perto e
perfeitamente conhecedor do terreno e da nossa fragilidade de meios. Não
passávamos de uma dúzia de gatos-pingados, sem comunicações e logo aí sem
possibilidade de pedir a evacuação de um ferido ou até o apoio das forças
colocadas em posições mais recuadas no terreno quando tal fosse necessário.
Como se tudo isso não bastasse, só tínhamos permissão para fazer uso das armas
depois de termos sido flagelados pelo fogo inimigo e nunca como forma de
prevenir uma agressão como seria normal esperar numa qualquer
frente de combate. Esta restrição à partida deixava-nos em desvantagem perante
os rebeldes e logicamente aumentava as dificuldades de progressão e, em última
instância, sem medidas políticas de permeio, contribuía de forma decisiva para
eternizar o conflito.
Enfim, com o passar dos dias,
fomos convivendo de perto com a triste realidade de que não passávamos de peças
de baixo valor sem possibilidade de opinar ou contestar ordens independentemente da sua legitimidade. Em resumo, éramos a peça mais barata de
toda a máquina de guerra e incomparavelmente menos importante do que as armas e
outros meios logísticos.
Mas voltando ao cão, – prosseguiu o
Gervásio, perante o ar atento dos companheiros, – nunca consegui entender a
rapidez com que o animal se adaptou à família militar e às novas exigências,
tornando-se, assim, num pisteiro de eleição que farejava o odor rebelde a
quilómetros de distância. Qualidades que o tornaram num valoroso aliado das
nossas forças.
Certa madrugada, algures na selva, o
Nero, integrado numa missão avançada, detetou a aproximação de um grupo inimigo
que se preparava para atacar a nossa pequena guarnição assim que rompesse a
aurora. Na realidade é nesse período de transição que o cansaço e a sonolência
ficam mais evidentes tornando, assim, os homens mais vulneráveis. Mas voltando
ao Nero, mal este se apercebeu de que os rebeldes se aproximavam e sem quebrar
o silêncio, despertou a atenção da sentinela que, de imediato, alertou os
restantes elementos para adotarem uma postura defensiva e assim forçarem a
horda inimiga à debandada imediata.
Tal como a maioria de nós, o Nero
viveu dias atribulados longe de qualquer carinho e sujeito aos mais variados
tormentos. O antigo dono era um colono embrutecido pela vida dura em terreno
hostil. Estivera vários anos radicado num aldeamento no meio da selva, depois
de se ter lançado na aventura africana, em busca de melhores condições de vida
que não tinha na pátria mãe. Nesse tempo, para tentar fugir à concorrência
comercial que alastrava um pouco por toda a colónia, acabara naquela terra
situada a várias centenas de quilómetros longe do tecido citadino mais próximo.
Ali, onde fora pioneiro na implantação de um comércio de produtos variados, foi
estendendo a sua atividade à produção agrícola. Os primeiros anos foram, para
ele, de franco progresso, mas com a chegada da guerrilha a sua vida tornara-se
numa insegurança constante e em função disso, resolvera adotar um cão, ainda
bebé, com a finalidade de o moldar aos seus caprichos na busca de alguma
proteção. Assim, escolhera um Pastor Alemão apenas pelas caraterísticas da
raça, tanto em robustez, com até em agressividade. Queria transformá-lo numa
fera implacável como forma de preservar a sua segurança e proteger o seu
estabelecimento onde vendia, algumas mercearias, roupas defeituosas e cortes
de pano coloridos.
Para o comerciante levar por diante
os seus intentos, logo que o cachorro atingiu três meses de idade, procurou um
indígena para que este lhe aplicasse, sistematicamente, alguns açoites. Não foi
difícil encontrar um negro gentio que cumprisse à risca as suas ordens sem
qualquer abalo de consciência.
Mas, algum tempo depois, o comerciante rumou a
outras paragens abandonando o animal à sua sorte que acabaria por se refugiar
junto dos militares e em contrapartida nós passamos a contar com um
colaborador fiel que sabíamos que nunca nos trairia.
Infelizmente, a partir do dia em que
a tropa abandonou a sua posição no terreno, por força da transferência de
poderes para a nova administração, muita gente foi deixada para trás ao livre
arbítrio rebelde. Foram os grupos especiais que, combatiam ao nosso lado,
irmanados dos nossos princípios e valores. Os estrangeiros que ficavam em
sentido quando içávamos a nossa bandeira. Tudo isso, sem falar na população que
colaborava connosco e estava aos poucos a aprender a nossa língua. Todos eles
foram abandonados à sua sorte, sem qualquer preocupação, por parte dos
políticos de então. O Nero também foi incluído nesse enorme grupo de
dispensados que, certamente, não puderam contar com a tolerância dos novos
dirigentes’. – concluiu o Gervásio.
Depois do Gervásio terminar a sua história, brindaram
a mais um dia em que a sua sobrevivência se ia tornando, a cada momento, mais
problemática…
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