Naquele dia, por volta das onze horas, os quatro fiscais fronteiriços faziam-se
transportar num volkswagen “carocha”, conduzido por Jean Pierre, o mais novo da
equipa. Como todos os veículos daquela marca e modelo tinha o habitáculo
bastante acanhado e a bagageira que se localizava à frente, também era pouco
espaçosa. O que, para além do desconforto dos ocupantes, também dificultava a
arrumação das bagagens.
Os primeiros quilómetros do percurso decorreram com bastante
lentidão, mas logo que deixaram o perímetro urbano a velocidade aumentou para
não chegarem atrasados ao local de serviço (rendição). Em função disso, mal o velocímetro
atingiu cento e dez quilómetros hora a bagageira abriu-se, de supetão, de
encontro ao tejadilho. Para além da violência do impacto, ficou a impedir toda
a visibilidade para a frente. Embora não tivesse partido o para-brisas, não foi
fácil, ao condutor, controlar o veículo na sua faixa de rodagem e evitar um
possível acidente de consequências imprevisíveis. Mas, ainda assim, com a
deslocação do ar, tudo o que ia no porta-bagagem, onde se incluíam os almoços
dos agentes, voou para a retaguarda a tal velocidade que acabaria espalhado pela
via e parcialmente destruído.
Quando o carro finalmente se imobilizou, os homens
entreolharam-se como se procurassem uma resposta para o que acontecera. Porta
mal fechada? Deficiência do material? Mas, antes de equacionar respostas procuraram de imediato minimizar os efeitos do incidente. Começaram por desimpedir
a via e regularizar o tráfego. Logo que a situação se normalizou, acondicionaram
o que ainda era recuperável. Por fim, detiveram-se na porta da bagageira,
desamolgando e forçando a estrutura, para que as dobradiças cedessem e a
chaparia se aproximasse da forma original. Não obstante, o aspeto amarrotado da
viatura e os sorrisos divertidos de alguns curiosos, que, entretanto, surgiram
no local, retomaram a marcha com cuidados redobrados para que o incidente não
se repetisse.
Ao fim de uma hora de marcha, a equipa chegou finalmente ao
posto fronteiriço do porto de Le Perthus pronta a desempenhar a sua função.
–
Já
chegámos! Agora, como vamos resolver o problema? – questionou Jean Pierre,
com a ansiedade desalentada de quem nunca se vira numa situação idêntica. Sabia
que, para além das avarias perfeitamente justificáveis, qualquer dano era em
primeiro lugar da sua responsabilidade.
–
Tenha
calma! Tudo se vai resolver! – respondeu o Chefe Henri, aparentemente
descontraído, mas a pensar numa forma de arranjar uma solução. Era um
cinquentão de sólida formação moral, ponderado e dotado de grande espírito de
camaradagem. Todavia, a sua longa carreira ensinara-o a ser cauteloso nas
decisões. Assim, depois de uma ligeira pausa, prosseguiu:
–
O
que me preocupa agora é a falta do almoço! Era uma Quiche Lorraine, que devia
estar uma delícia! Mas infelizmente tudo se perdeu. – deixou sair uma sentida
gargalhada, como se tivesse achado graça ao que dissera e prosseguiu em tom
vincadamente irónico:
–
Enfim!...
Sobrou um pedacito de pão! A não ser que alguém se lembre de mim e vá ao
restaurante buscar o almoço. – aí, os três subordinados entreolharam-se na
expetativa de qual deveria tomar a iniciativa.
–
Calma,
calma, como posso ter calma?!... Já esqueceu que hoje é sábado e as oficinas
estão fechadas. – insistiu Jean Pierre com o mesmo ar desalentado.
–
Como
ninguém tem nada para dividir comigo, nem para si próprio, tratem de ir buscar
o almoço! Penso que hoje ninguém vai ser exigente com a ementa. Para mim basta
uma costeleta de novilho! – rematou o Chefe Henri, com ar trocista de quem não
esperava ser levado a sério e acrescentou:
–
Ah!...
Não esqueçam que à refeição gosto de um tinto encorpado.
Sem ripostar e visivelmente contrariado, Jean Pierre partiu em
busca de uma solução. Enquanto se afastava, o Chefe Henri, de olho pregado no
veículo, não resistiu a um gracejo:
– Pobre
carro! Até parece que participou numa batalha!... – De seguida, atravessou a
rua, sob a sombra densa de frondosos plátanos, em direção a uma casa
pré-fabricada que ficava isolada do resto do casario. Ali, bateu levemente a
uma janela que dava para um pequeno jardim, onde lírios e malmequeres se
misturavam com arbustos selvagens, na esperança de ajuda.
Longe iam os tempos em que o velho Antoine se dedicava à pesca
do marisco, na costa africana. Agora, já quase não saía de casa, a saúde débil
e os seus setenta anos de idade já não lhe permitiam entrar nessas aventuras.
Na verdade, ia sobrevivendo com uma magra pensão que mal lhe dava para a
alimentação e remédios. Para esse rol de dificuldades, muito teria contribuído o
naufrágio da sua pequena embarcação, que ocorrera num dia de faina, junto da
costa marroquina. A indemnização, que recebeu do seguro, não chegou para os
prejuízos e o velho Antoine não voltaria a recuperar a estabilidade económica.
Agora, o Chefe Henri esperou dois minutos, mas como não obteve
resposta repetiu o chamamento, com mais vigor. Passados poucos segundos, a
esposa do antigo pescador espreitou pelo postigo da cozinha tentando
descortinar quem batia. Assim que o reconheceu, abriu a porta suavemente e
disse em surdina:
–
O
Antoine ainda está a dormir!
–
Não
faz mal, volto mais tarde!
– Não é
preciso!... – bradou Antoine, em voz rouca, no seu porte alto e escanzelado,
estendendo o braço tisnado sobre o ombro da mulher, dizendo:
–
Está
bom, amigo Henri?
–
Felizmente
estou bem! E o amigo Antoine, como tem passado?
–
À
medida que me vou aproximando do ocaso da vida, em cada dia que passa, o abismo
de incertezas é maior. Cafum, cafum, cafum…
– Amigo
Antoine, então, ainda não foi ao médico, como lhe recomendei da última vez que
o vi!?
– Estou
farto de correr para lá! Não faz ideia do dinheiro que já gastei! De médico
para médico e até agora os remédios não me têm servido para nada. Estou
desconfiado que é a mesma moléstia que vitimou o meu parente Lourent!
–
Amigo
Antoine, isso é lá coisa que se diga? Você nunca teve o vício do tabaco!
–
Pois
não!
– Bom!...
Antes de me alongar mais, lamento tê-lo acordado tão cedo, mas durante a nossa
viagem aconteceu o seguinte:…
– Deixe-se
de desculpas… homem…, – disse depois de se ter inteirado da situação – nós não
nos conhecemos há dois dias! Eu até lhe agradeço ter-me acordado. Quando durmo
demais acordo mal-humorado. – estendeu o braço na direção da parede e disse:
– Pegue
já na chave do meu carro para aquilo que for necessário. O resto também se vai
resolver... Cafum, cafum… Vou falar com o técnico e daqui a pouco já lhe digo
mais alguma coisa! – disse o Antoine.
Enquanto esperavam pelo resultado das diligências de Antoine,
as mentes dos quatro fiscais afundavam-se num mar de congeminações que só
poderiam terminar com a reparação do volkswagen.
Não esperaram muito tempo! Ao fim de vinte minutos, chegou
junto deles o bate-chapas que esperavam, precisamente, no momento o Chefe Henri
e os subordinados devoravam dois franguitos de aviário que o Jean Pierre
trouxera. Embora ainda lhes sobrasse apetite e a travessa já estivesse quase
vazia, estenderam o convite ao homem que aceitou, sem hesitar, a pretexto de
fortalecer o estômago para um gole de vinho.
Depois de se inteirar da dimensão dos danos na viatura, o
bate-chapas disse:
–
Podem
ficar tranquilos! Antes da meia-noite fica pronto.
Entretanto, a circulação na fronteira foi-se processando sem
problemas de maior. Contudo, a meio da tarde, os agentes foram surpreendidos
por um veículo vindo do lado espanhol que se aproximava em marcha rápida,
debitando do escape muitos decibéis, ampliados pelo som de duas colunas que
despejavam música rock. Era um jovem francês, com ar estonteado, que, ao
aproximar-se do controlo, resolveu atuar em antecipação, estacionando em plena
faixa de rodagem. Logo a seguir, saiu a correr em direção ao posto, mas
tropeçou no lancil e acabou estatelado no passeio. Apesar disso, levantou-se
com a mesma genica com que iniciara a deslocação e irrompeu bruscamente porta
dentro, exclamando:
– Estou
com pressa para chegar a casa e não tenho nada a declarar! posso seguir?
Sentado à secretária, O Chefe Henri levantou a cabeça
franzindo a testa e olhou-o como se lhe pesquisasse a alma, mas continuou a ler
o processo que tinha à sua frente fingindo que aquela conversa não lhe dizia
respeito. Uma das suas virtudes era a tolerância, mas não pactuava minimamente
com qualquer forma de irreverência. No entanto, a experiência ensinara-o que
neste tipo de situações devia encarar os problemas com frieza, ser comedido nas
palavras e ponderado na atuação. Por isso, falava apenas o essencial e
disse:
–
Aguarde
um momento que o agente Augustin já vai tratar do seu caso!
– Afinal,
o que é que têm contra mim? Não vê que estou com muita pressa! – atirou o
forasteiro, de modo arrogante.
– Mostre-me
os documentos para tratarmos do assunto! – disse calmamente
Augustin.
–
Aguarde
um instante, enquanto os vou buscar ao carro! – deu meia volta e saiu
apressado. Enquanto o condutor se afastava, o Chefe Henri, adivinhando sarilho,
fez uma ligeira pausa no que estava a fazer, baixou lentamente a persiana como
se quisesse preservar a privacidade e, olhou apreensivo na direção a Augustin
que, entretanto, se posicionara de forma a vigiar todos os movimentos do
forasteiro. Depois, sabendo da imprevisibilidade humana, ficou atento a tudo o
que pudesse surgir do exterior. Volvidos alguns segundos, o homem regressou com
os documentos na mão e exteriorizando um sorriso provocador que, por si só, não
indiciava um desfecho pacífico.
–
Estão
aqui, mas são meus! – exclamou.
– Faculte-me
os documentos que tenho outros assuntos para tratar! – disse Augustin
calmamente.
– Francamente,
ainda não viu que eu não os vou entregar! – respondeu de imediato o condutor.
Como o Chefe previra, estava a chegar o momento de intervir. Não podia deixar
prolongar mais aquela linguagem de desafio sob pena de perder o controlo da
situação. Assim, num gesto enérgico e sem esboçar comentários, levantou-se,
afastou a cadeira para longe e avançou decidido para o forasteiro. Pegou-lhe
pela gola do casaco e levantou-o meio metro acima do solo, dizendo em tom
inalterado:
–
Faça
o favor de entregar os documentos ao meu colega!
O forasteiro, que não esperava uma reação tão inesperada,
esboçou um ar de espanto pela surpresa, esticou o braço trémulo e entregou de
imediato os documentos a Augustin.
–
Muito
bem! Pode ter a certeza que escolheu o local e as pessoas erradas, para
extravasar as suas frustrações! – disse o Chefe Henri, no momento em que o
colocava no chão.
–
Peço
desculpa, que eu não estava em mim!
–
Então,
vamos ver se nos entendemos de uma vez por todas! Não tem o direito de
descarregar a sua má disposição sobre estas almas pacíficas e cansadas de
aturar gente mal formada como o senhor! – rematou o Chefe. O condutor, que
ouviu sem tirar os olhos dos agentes, fez um trejeito de concórdia, com a
cabeça e murmurou:
–
Têm
toda a razão! A vida não me tem andado a correr bem. Por isso, peço desculpa
pelo que aconteceu.
Logo que foi submetido ao controlo normativo, seguiu viagem no
mesmo estilo estonteado. Os agentes lá continuaram na sua função, aturando
indisposições e iludindo o cansaço.
Com o passar lento das horas, o crepúsculo caiu quente sobre
aquele vale fronteiriço. Entretanto, uma aura suave, soprando de Sul, trazia
consigo nuvens densas de mosquitos, famintos, que transformavam aquele local
num calvário permanente. O Chefe Henri, desfrutando de um cigarro confortador,
ia afugentando, por sufoco, os insetos que empastelavam o espaço reduzido da
sala.
Mais tarde, pelas vinte e três horas, o “carocha”, dava
entrada nas instalações e com ele chegava também a tranquilidade dos homens. O
retorno da viatura pusera fim a várias horas de expetativa impaciente, tendo
sempre presente que de um momento para o outro poderiam surgir complicações de
vária ordem. Mas desta vez tudo decorreu sem imprevistos!
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