quarta-feira, 14 de maio de 2014

PASSEIO CINEGÉTICO À PAMP. DA SERRA



Na véspera da primeira caçada à perdiz, em que pude participar naquele ano, comecei por preparar o veículo que habitualmente levava à caça e a organizar todo o equipamento sem esquecer a infinidade de documentos exigidos para a prática cinegética. De seguida, tratei de confecionar o farnel que, nas atuais circunstâncias, é o maior elo de ligação entre os grupos de caçadores e, talvez, o elemento mais importante de toda a jornada.
A noite foi longa. Quase não dormi. O meu cachorro, de raça épagneul, de nome Simba, ficou em desassossego o tempo todo como se me quisesse lembrar, a cada instante, que se aproximava a hora de partirmos. Instinto que era notado, apenas, nos bons caçadores já acostumados às lides cinegéticas.
A ansiedade habitual da caça à perdiz tinha, para mim, desta vez, uma maior expetativa que esperava não viesse a sair gorada, para não continuar a depender inteiramente dos cães de que os meus companheiros de jornada se faziam acompanhar. É lógico que não esperava que o cão, logo na primeira caçada, detetasse um bando a cem metros de distância, ou que se amarrasse até eu me aproximar e depois as levantasse uma a uma, para logo a seguir as ir cobrar, como noutras épocas o vira fazer a bons perdigueiros. Esperava sim que, para além do faro apurado, se entregasse à busca com espírito de caçador.
Por volta das cinco horas, daquele domingo de novembro, depois de ter arrumado todo o material, abri a porta do atrelado e o épagneul acomodou-se no lugar que melhor lhe convinha, atendendo a que, naquele momento, não tinha que partilhá-lo com outro. Apesar disso, estava visivelmente ansioso e atento a tudo o que eu fazia como se desde logo adivinhasse o nosso destino. Logo a seguir deixámos a Lousã e partimos ao encontro do José Luís e do João Antunes, dois velhos amigos que me aguardavam alguns quilómetros mais à frente, para seguirmos juntos, na mesma viatura, a caminho da “nossa coutada”. Um local onde contávamos com a companhia do Gervásio e esperávamos encontrar perdizes bravias e ainda, passar o dia em puro convívio com a natureza. Claro que, nos tempos que corriam, caçar aves inteiramente selvagens era um luxo de que poucos caçadores se podiam gabar, mas elas, por ali, ainda iam aparecendo.
A madrugada estava fria e a escuridão era total. Mas, como se me quisesse certificar das condições meteorológicas, logo que deixei o perímetro urbano, olhei ao longe a linha do horizonte onde apenas se notavam os contornos das serranias que contrastavam nitidamente com o céu estrelado. Essa visão inundou-me de ansiedade e quase me levou a aumentar a velocidade para tentar chegar mais depressa ao destino. Minutos mais tarde, recolhi os dois companheiros de jornada que me esperavam na berma da estrada, com os animais à trela e reclamando do frio que, entretanto, resolvera chegar antes de tempo, como se nos quisesse fazer uma desagradável surpresa. Aliás, já vinha sendo habitual. Com o início das jornadas de caça chegava também a intempérie para nos dificultar a movimentação no terreno.
Na continuação do nosso passeio cinegético, deixámos para trás as preocupações quotidianas e corremos, como adolescentes, em busca de um dia de recreio calcorreando os montes serranos. Mas à medida que nos íamos embrenhando para o interior, o frio ditava as suas leis e acentuavam-se as nossas preocupações em termos de segurança rodoviária. Nas zonas mais baixas, os arbustos brilhavam com gelo aos feixes luminosos dos faróis do veículo que, em marcha cuidadosa, ia circulando pela estrada muito sinuosa e repleta de perigos.
Um pouco mais à frente, quando circulávamos na EN 2, junto ao café restaurante do Esporão, encerrado àquela hora, deparámo-nos com uma raposa que passava revista minuciosa à esplanada do estabelecimento. Ao ver o animal a movimentar-se, descontraidamente, à luz dos candeeiros de iluminação pública, parámos em posição frontal ao parque de estacionamento com a finalidade de apreciar o seu comportamento face à nossa presença e à sua condição selvagem. A surpresa não poderia ter sido maior: numa pose elegante de onde sobressaía a sua pelagem volumosa, olhou-nos com indiferença e, sem perder tempo, aproximou-se do contentor do lixo, tombou-o e começou, aos poucos, a examinar o seu conteúdo em busca de algum esqueleto de frango ou outro petisco qualquer. Tudo isso numa agilidade surpreendente. Era como se estivesse no seu habitat natural sem companhia hostil por perto. É claro que a raposa ao ver o Luís a abandonar a viatura e a encaminhar-se na sua direção, para a impedir que espalhasse os detritos, interrompeu a operação e afastou-se uma vintena de metros deixando, desde logo, a ideia que assim que lhe virássemos as costas voltaria para continuar em busca de presa fácil.
Evidentemente que, para nós, nada disso foi novidade. Pois, à medida que a desertificação se vai acentuando, as terras de semeadura vão ficando em pousio e como tal, já nada têm para oferecer às diversas espécies cinegéticas com habitat na região. Por sua vez, aos predadores daquelas, não resta outra alternativa que não seja mitigarem as suas carências junto do pouco que vai restando nos povoados onde na falta de capoeiras se entregam a remexer os depósitos de lixo.
Depois de assistirmos à ousadia do bicho, continuámos o nosso itinerário lamentando o abandono do interior e a escassez da caça que afeta não só caçadores como também os predadores que se alimentam dela.
Logo a seguir, quando nos aproximávamos da curva das Quelhas, fomos surpreendidos por um veado que, em marcha rotineira, atravessava a estrada rumo ao cimo da encosta.
A visão do animal viria a suscitar algumas considerações sobre a proliferação da espécie pelas florestas da região centro, após o final do século XX. Abundância que dera origem à cobiça desmedida de caçadores furtivos.
Ao chegarmos ao alto da serra, mais concretamente às Cabeçadas, local onde era costume fazermos uma escala, parámos para um café retemperador. Ali, era o local habitual de reencontro com os caçadores oriundos de localidades limítrofes, irmanados do mesmo objetivo, que convergiam para a mesma zona cinegética da Pampilhosa da Serra. Uma paragem que, com o passar dos anos, para além de rotineira se foi tornando quase obrigatória. Não só pela falta de alternativa, mas também pela amizade que, entretanto, fomos cimentando com o proprietário do estabelecimento. 
Por vezes, era ali, saboreando o “mata-bicho” e na cavaqueira com os amigos que obtínhamos informações sobre a localização de alguns bandos de perdizes. Também se definiam estratégias relativamente aos locais que iríamos calcorrear, para nos distribuirmos ordeiramente pela Serra, de forma a evitar desentendimentos e até o fogo cruzado, que poderia resultar de uma prática menos cautelosa. Até o taberneiro, profundo conhecedor da região serrana, tinha sempre notícias sobre os locais onde vira as tão desejadas aves.
Noutras épocas de caça, fora também ali, naquela espécie de fronteira entre o litoral temperado e a serra agreste, que encontrámos abrigo, sempre que nos confrontávamos com condições climatéricas limites: nevoeiro, chuva intensa, ou queda de neve, desde que a intempérie nos impossibilitasse a continuação da viagem.
Naquela manhã, assim que chegámos em frente ao café, "Toca do Judeu" fomos confrontados com a falta de espaço para estacionar. O pequeno parque, junto ao edifício, estava repleto de viaturas. Em função disso, procuramos um lugar mais afastado com a ideia de que algo de anormal acontecera. Assim que abandonámos o veículo demos conta de uma sonoridade desabitual para o local e hora. Quando entrámos no estabelecimento, – que mais se assemelhava a uma taberna de meados do século XX que estava implantado junto à estrada nacional e era o único nas redondezas que abria diariamente às cinco da manhã – deparámo-nos com uma multidão de perto de duas dezenas de indivíduos que se apinhavam ruidosamente em redor do balcão. As suas idades deviam variar entre os dezoito e os trinta anos. Um escalão etário em que o espírito aventureiro ainda povoa muitos momentos do seu universo de vida independentemente das dificuldades que se lhe deparem. Pelo ar cansado que evidenciavam concluímos que nem sequer se haviam deitado naquela noite. A euforia era tão grande que nem deram pela nossa chegada. Só quando João Antunes forçou a passagem até ao balcão é que despertou a atenção daqueles. Todos queriam ser atendidos ao mesmo tempo. Soubemos logo a seguir que, apesar da hora e do frio que se fazia sentir, iam a caminho da barragem do Cabril onde contavam integrar um qualquer convívio de pesca desportiva organizado pela empresa onde laboravam.
Alguns conheciam aquele tasco desde o tempo em que o Rally de Portugal tinha grande projeção a nível internacional e incluía classificativas nas estradas secundárias daquela área. Troços onde alguns dos presentes assistiram a etapas emocionantes que, para além de verdadeiras lições de destreza e perícia automóvel, contagiavam o espírito dos jovens amantes daquele desporto motorizado.
Assim, com essa recordação em pano de fundo, quando saíram da discoteca na cidade, resolveram antecipar a partida para demandarem ao alto da serra onde esperavam aguardar pela restante comitiva. Ali tinham um café aberto para tomarem o que lhes apetecesse serviço que, até na cidade, àquela hora, seria difícil de encontrar.  
O velho comerciante não obstante estar habituado a um ambiente sossegado e pachorrento – pois, desde o tempo do Rally que não tinha memória, àquela hora, que o seu estabelecimento tivesse sido invadido por fregueses tão exigentes – andava numa roda-viva para impedir a balbúrdia e satisfazer a sequiosa e barulhenta clientela. A sua azáfama era tão grande que nem sequer tinha tempo para cumprimentar os caçadores à medida que estes iam entrando. Homens a quem, em dias de movimento normal, tratava pelo nome, conversava e até, de vez em quando, como quem sela uma amizade, oferecia uma bebida com a justificação de que era o melhor remédio para afugentar o frio que, na época da caça, não dava tréguas àquelas paragens.
Enquanto nos íamos esgueirando por entre aquela horda amistosa em busca de um aconchego para o estômago vazio, um moço mais afoito, com ar estonteado, barba por fazer e gaforina que lhe escondia totalmente as orelhas, – por entre tragos de cerveja – abeirou-se de nós e resolveu dirigir-se diretamente ao Luís, de uma forma insolente, quase provocatória. Aquele, embora sendo um homem temperado por alguma inflexibilidade no confronto com a irreverência, naquela situação, teve o bom senso de aceitar o desafio com tolerância, respondendo às questões com a delicadeza que o momento requeria. Forçando um sorriso, foi colaborando, pacientemente, com os jovens como se comungasse do mesmo espírito eufórico do bando, não só em relação aos concursos de pesca, como também no tocante a excessos e façanhas próprias da juventude que, qualquer de nós, com maior ou menor intensidade, já há muito vivera.
Mais tarde, aquando do regresso à viatura, viria a reconhecer que fizera um esforço gigantesco para não reagir como a situação o justificava, mas atendendo a que o jovem indiciava ter bebido em excesso, fora preferível não lhe agitar a vasilha para não turvar mais a bebida.
Por sua vez, João Antunes, ao seu estilo extrovertido, diluiu-se na multidão não só disparando frases divertidas sobre pescarias, como também elogiando a coragem dos jovens face ao frio e à aridez da serra. Também nós, a partir do momento em que nos mostrámos cooperantes, fomos rodeados por outros forasteiros que, para além de nos oferecerem bebidas, aproveitavam a nossa presença para levantar questões sobre alguns aspetos da prática cinegética, apenas por mera curiosidade. No final, quando João pediu a conta a nossa despesa já estava paga.
Depois de um café quente e de respondermos a algumas questões sem qualquer rigor técnico, deixámos o aconchego daquele abrigo e partimos ao encontro da serra nua, onde nos esperava, naturalmente, a hostilidade própria de uma serra agreste e tempo inclemente. Desde logo um frio glaciar trazido pelos ventos de nordeste, a juntar à aridez do terreno.
Quando nos encaminhávamos para o veículo, ainda envoltos na penumbra que agora se misturava com uma leve neblina que teimava em não deixar clarear a manhã, José Luís que, entretanto, se adiantara para fugir à confusão que parecia estar para durar, disse:
  Ouvi um tiro!
  Um tiro? – questionei.
  É verdade! Tudo me leva a acreditar que tivesse partido do lado dos penedos de Góis!
 Começaram cedo! – afirmei, com a ideia de que ainda não era possível avistar uma peça de caça a cinco metros de distância.
  Caçadores de estrada. – disse José Luís.
– Pobres coelhos, assim que saem da toca, começam logo a levar porrada! – disse eu.
– Nós vamos andando com calma que o tempo está feio e não somos responsáveis por essa guerra! – resmungou João Antunes, sem dar mais atenção aquilo que, apesar de marginal, era prática corrente principalmente nas imediações dos povoados.
 Na continuação da viagem, dobrámos a Portela do Vento onde àquela hora, no mesmo sentido, era habitual assistirmos a uma mudança brusca na visibilidade, como se entrássemos noutra galáxia. No entanto, naquela madrugada, rumámos a nascente a caminho da Barragem de Santa Luzia sem que tal tivesse acontecido. Em contrapartida, depois de termos percorrido cerca de um quilómetro, fomos envolvidos por nevoeiro denso que não fora o veículo estar equipado com faróis apropriados a esse fim e as linhas brancas que delimitavam as faixas de rodagem estarem bem visíveis e teria sido quase impossível continuar a viagem.
Apesar das dificuldades, lá fomos progredindo estrada fora em marcha de caracol, tentando tanto quanto possível chegar ao destino sem incidentes, pois, nenhum de nós queria virar as costas à adversidade, mas reconhecíamos que aquela etapa estava a tornar-se particularmente difícil. Mas nada que já não nos tivesse acontecido noutras jornadas.
A determinada altura do nosso percurso, já perto da lomba de Fajão, fomos surpreendidos por uma raríssima visão, há alguns anos a esta parte, na região. Tratava-se de uma lebre, em carne e osso, que ziguezagueava veloz pela via à nossa frente. Embora não estivesse a ser pressionada por mim, depois de ter percorrido duas dezenas de metros e como se quisesse furtar-se ao nosso veículo, a lebre subiu a barreira que se elevava íngreme a mais de dois metros de altura. A sua velocidade era tal que ao aproximar-se do topo esbarrou numa rocha mais saliente e rebolou sucessivamente até se estatelar na valeta. Repentinamente, levantou-se estonteada e esgueirou-se na direção oposta sem que algo de mais grave lhe tivesse acontecido. Foi um episódio que nos divertiu, originando mesmo sonoras gargalhadas em todos os presentes e que alterou, naturalmente, o rumo da nossa conversa.
Finalmente, por volta das sete da manhã, encontrámo-nos com Gervásio que nos aguardava no entroncamento do Vidual, já próximo da "nossa coutada".
Embora a idade de Gervásio já lhe impusesse algumas restrições físicas aquele, ainda, gostava de calcorrear os montes e desfrutar dos momentos que a caça tem de melhor: exercício físico, ar puro e convívio com a natureza e amigos. Na companhia de seu perdigueiro Braco e em marcha mais pausada, trilhava quase sempre os terrenos mais acessíveis, numa espécie de reserva para as dobras, sem nunca esboçar queixume.
 Minutos mais tarde, chegámos ao local que pretendíamos bater na caçada, precisamente o mesmo monte que havíamos calcorreado na época anterior, situado no cume da serra, nas imediações da Malhada do Rei.
Nessa ocasião, encontrámos uma serra rude, mas acolhedora, com uma panorâmica a perder de vista, onde as casas da aldeia situada ao fundo da ravina pareciam reduzidas a vulgares mosquitos. Era o Olimpo mitológico que gerava um sentimento de liberdade infinita e ao mesmo tempo uma maravilhosa terapia para o corpo e para a mente, mas onde à mercê da intempérie vive um Deus enfurecido. Nada que nos intimidasse em demasia, habituados à má sorte e a sacrifícios de toda a ordem, em algumas etapas da vida.
Para além do Braco do Gervásio, o Luís e o João faziam-se acompanhar de dois Pointers que, não obstante, algumas vezes, caçarem demasiado afastados dos donos, tinham um faro apurado e paravam-se muito bem. No entanto, quando caçavam próximos tornavam-se demasiado egoístas. Enquanto um se amarrava o outro procurava antecipar-se, acabando na maioria das vezes por espantar a caça antes que algum de nós tivesse possibilidade de se aproximar. De facto, contrariamente aos cães podengos que se adaptam perfeitamente a caçar em matilha, os perdigueiros são muitos individualistas e por isso devem, tanto quanto possível, trabalhar isolados.  
Enquanto aguardávamos a melhoria das condições climatéricas, fomos controlando a ansiedade entregues a pensamentos que se esgotavam no cenário que nos envolvia. Todavia, ao fim de meia hora, o tempo resolveu dar uma ajuda: o nevoeiro começou aos poucos a dissipar-se e os raios solares fizeram a sua aparição. Porém, ao sairmos da viatura, deparámos com uma brisa gélida de nordeste que, para além de nos resfriar o corpo e fustigar o rosto, também nos dificultava a respiração.
Assim que a visibilidade nos permitiu, formámos uma linha de quatro e iniciámos o movimento que se alongou pela grandiosidade daqueles montes, enfrentando com naturalidade não só o tempo agreste, como também a rudeza da serra. Ora subíamos as encostas íngremes que nos tornavam a respiração ofegante, ora contornávamos urzes e carquejas que, expostas ao cieiro prolongado, se assemelhavam a arame farpado. Ou ainda, descíamos pelos barrocos pedregosos e escorregadios, onde buscávamos as nascentes para saciar a sede, nossa e dos animais. Sempre que o terreno nos permitia, caminhávamos em sentido oposto ao vento para que o ruído que provocávamos não nos denunciasse às presas que buscávamos.
Naquele dia, iniciámos a jornada de caça numa encosta virada a nascente, refúgio habitual das perdizes em manhãs de geada. Para se defenderem do frio cortante das noites longas do Inverno, que se acentua com maior intensidade nas áreas mais baixas, sobem ao cume das serras, onde esperam pelo aconchego do sol.
Para tentar superar a inexperiência do Simba, ocupei uma posição entre o João e o Luís, distando destes cerca de oitenta passos. O Gervásio posicionou-se na orla mais baixa, onde o terreno e a vegetação proporcionavam um andamento mais cómodo, aproveitando, ao mesmo tempo, um carreiro que circundava grande parte da cordilheira e que deixava a nu a altura dos arbustos que o limitavam.
À medida que avançávamos monte dentro, o meu cachorro lá ia deambulando a poucos metros à minha frente, farejando e serpenteando o terreno com notada ingenuidade, mas sempre desperto para tudo o que lhe era estranho. Apesar de ser a sua primeira caçada, buscando perdizes bravias, movimentava-se com desembaraço e sem perder contacto comigo. De vez em quando, levantava o nariz e captava os odores, filtrando as informações trazidas pelo vento, com uma sensibilidade que fazia lembrar um veterano já familiarizado com a prática cinegética.
A certa altura, o João que ia na extremidade mais alta e mais avançada, posição que ocupava na maioria das jornadas, gesticulou em silêncio, alertando-nos para a proximidade das aves. O seu velho Pointer estava amarrado, algumas dezenas de metros à sua frente. Perante a situação, ficámos na expectativa do levanto. Logo que aquele se aproximou, as perdizes saltaram e João disparou dois tiros frenéticos, quase em simultâneo. Uma prática pouco habitual naquele caçador que, normalmente fazia uma ligeira pausa entre eles, como se analisasse o resultado, mas que desta vez tivera êxito. Uma ave perdeu o contacto com o bando e planou cerca de cento e cinquenta metros, até se despenhar ao fundo de uma ravina, a mais de cinquenta passos à minha direita. As outras nove equiparavam-se a jatos supersónicos numa tentativa desesperada para fugirem a um míssil furtivo. Seguiram velozes em voo rasante encosta abaixo, longe de alcance útil para mais disparos de qualquer de nós. Ainda a perdiz que fora atingida não tinha chegado ao chão já o Simba corria ao seu encontro como se procurasse ser o primeiro a apanhar a ave. Lance que me deixou numa enorme expetativa do resultado da sua intervenção sabendo à partida que corria o risco de ficar envergonhado perante os companheiros. Tudo dependia, naturalmente, do destino que o cachorro desse à perdiz até porque iria ser pressionado pelos outros perdigueiros. Contudo, não tardaria a saber o resultado. Decorridos poucos segundos, do fundo de um valeiro com vegetação mais densa, ouvi a voz do Luís que me chegava abafada:
  Simba dá cá a perdiz! Simba dá cá a perdiz!
No mesmo instante, reparei que o animal estava parado ao cimo de uma ribanceira tentando localizar a minha posição. Então gritei:
  Simba!... Estou aqui!
De imediato, o cachorro, com a perdiz na boca e acossado pelo Pointer, arrancou encosta acima ao meu encontro e veio entregar-ma, com uma tal delicadeza que outro mais experiente não teria feito melhor.
Como não poderia deixar de ser, nesse momento, fiquei um pouco embriagado pela forma natural, eu diria que quase mágica, como o épagneul se comportou e abracei-o com enorme satisfação. Acho que até o beijei e atendendo à situação, penso que qualquer verdadeiro caçador o faria.
Minutos mais tarde, quando eu passava por uma zona mais baixa e sombria, tentando a custo desenvencilhar-me dos arbustos que se entrelaçavam de uma forma quase impenetrável, fui surpreendido pelo salto de uma galinhola sem que o cão se tivesse apercebido da sua presença. O levanto foi tão inesperado que não me permitiu qualquer reação atempada.
As galinholas são tímidas e quase inodoras, razão suficiente para não serem facilmente detetadas pelos perdigueiros. Além disso, fazem a sua viagem migratória até ao nosso clima durante as noites de outono e abrigam-se normalmente nos bosques sombrios, onde dificilmente são incomodadas.    
Mais adiante, o Simba amarrou-se junto a um medronheiro que, embora já tivesse o chão coberto de frutos, parecia um excelente esconderijo para as perdizes. O cachorro estava completamente imobilizado: cabeça levantada em frente, pescoço esticado, pata dianteira fletida no ar. Contudo, quando me aproximava pronto para a ação, fui surpreendido pelo levanto de um pisco – uma pequena ave de bico dentado que, apesar de selvagem, se movimenta na proximidade do homem – que poisou logo a seguir, a pouco mais de três metros à minha frente. É claro que, perante isso, me larguei a rir. Quando esperava a descolagem suficientemente rápida e estridente de perdizes bravias saiu-me uma criatura minúscula, simpática e frágil, que pouco faltou para poisar no cano da minha espingarda.
A meio da manhã, já o cachorro se movimentava com visível dificuldade. Não me podia esquecer que era o primeiro dia que ele enfrentava a dureza daquela serra agreste e como tal não podia ignorar as suas queixas sob pena de o animal ficar muito tempo inativo. Mediante isso, observei que tinha várias feridas nas almofadas das patas dianteiras. Então, subi ao viso e atalhei por uma antiga estrada carreteira, agora transformada em coutada para alguns caçadores que fazem das viaturas todo-o-terreno o seu batedor de caça. Porém, a determinada altura, ainda nessa via, o épagneul avançou alguns metros com o nariz no ar e logo a seguir amarrou-se. Ainda a pensar no que ele fizera anteriormente, fiquei um pouco indeciso, mas assim que me aproximei fui surpreendido pelo salto de cinco perdizes. Aquele foi o primeiro teste do exame que o viria a conotar como um perdigueiro excelente.
Entretanto, à medida que se aproximava a hora do almoço, o ar puro da serra reforçava o apetite em cada um de nós. Até o Gervásio que, em dias de caça, dava maior prioridade à contenda do que propriamente à refeição, não parava de lembrar aos companheiros que a sua barriga estava a reclamar uma pausa.
Assim, movidos pelo mesmo objetivo, seguimos para o local habitual, que se situava perto da saída do túnel que liga a Malhada do Rei à barragem do Alto Ceira. Um local que se destinava ao convívio das boas gentes locais e a quem o procurava, dentro dos princípios básicos do civismo e do respeito pelo património coletivo. Para além dos sanitários, estava ainda equipado com uma churrasqueira e várias mesas em madeira, dispostas pelo recinto alcatroado, para que os utilizadores se sentissem confortáveis. Também não será demais salientar a forma cuidada como a maioria dos utilizadores preservava aquele espaço. 
Quando chegámos ao local onde tomávamos a refeição deparámo-nos, como habitualmente, com outros caçadores e entre os quais estava o Ti Germano que era um homem aprimorado pelo tempo e pelo seu percurso de vida, tanto culturalmente como na personalidade. Era também o caçador mais idoso dos que habitualmente calcorreavam aquelas serranias. Agora, como o peso dos anos ia vincando as suas marcas, raramente se aventurava pelos terrenos mais áridos, refugiava-se em áreas abertas de fácil acesso, para não correr riscos que lhe poderiam ser fatais. Apenas ia respondendo ao apelo da alma mais pelo convívio salutar que ainda era notado entre muitos caçadores, do que pela busca das peças de caça que só muito esporadicamente abatia. Embora ainda tivesse um espírito jovial, já não tinha a robustez física de outros tempos para enfrentar a dureza daqueles montes, onde passara as melhores e piores etapas da sua vida de caçador. Melhores porque, para além do convívio e das excelentes caçadas, conhecera de perto o viver daquelas gentes trabalhadoras e humildes com quem criara amizades como não imaginara; Piores porque, fora também naquelas serranias que passara momentos dramáticos aquando se vira a braços com uma queda que o conduziria ao hospital. Fora também naquela região que manchara o seu cadastro de caçador, pela simples razão de se ter esquecido dos documentos da caça. Para os apresentar à fiscalização, deslocou-se à residência o mais depressa que lhe foi possível, mas nem assim se livrou de uma pesada punição que lhe viria a causar muitas dores de cabeça. Apesar das contrariedades que ali vivera, amava aqueles montes como se de um autóctone se tratasse.
Agora, ali, sob os carvalhos gigantescos que uma brisa de norte ia ajudando a despir de folhagem e ao som que chegava da ribeira contígua, onde a corrente de água deslizava de pedra em pedra num murmúrio ininterrupto, confraternizávamos em desassossego tranquilo. Enquanto íamos degustando o repasto, os cachorros, de barriga vazia, recuperavam do esforço despendido, sem o mínimo sinal de protesto. Porém, a cada momento lançavam, sobre os convivas, um olhar piedoso, na esperança de que, como era costume, no final alguma coisa lhes coubesse.  
Entretanto, o Ti Germano foi atingido suavemente na face por uma folha que se desprendera de um ramo e por via disso pareceu despertar dos pensamentos negativos que lhe ocupavam a mente. Começou por encher os copos expostos sobre a mesa, levou um à boca e bebeu uma golada. Depois, fez uma pequena pausa como se lhe tomasse o paladar e exclamou:
– Podem beber sem preocupações que este é o puro néctar da uva! E sem esperar resposta, prosseguiu:
– Enquanto o nosso amigo João Antunes acaba de assar as castanhas, vou contar o episódio do meu acidente de caça que ocorreu aqui ao cimo da serra, já lá vão quase trinta anos:
 ‘Naquele dia, – começou ele, – por impossibilidade dos meus habituais companheiros de jornada, embarquei sozinho, imbuído do mesmo entusiasmo, com destino aqui aos nossos montes serranos. Não obstante a minha mulher insistir para que eu não saísse de casa sozinho, acabaria por levar a minha vontade por diante apenas na companhia do Boby, o meu velho perdigueiro. Digo velho porque à data já contava perto de dez anos, mas continuava a ter um vício e uma agilidade admiráveis. Não sei se algum de vocês ainda se lembra dele?
  Perfeitamente! – atalhou o Gervásio.
Pois, – continuou o Ti Germano, – era um híbrido que resultara do cruzamento entre o Perdigueiro Português e o Pointer! Mistura que à primeira vista pode parecer um pouco estranha, mas nem por isso deixou de ter as caraterísticas que se exigem a um animal caçador à pena. Antes pelo contrário, tenho a impressão que os itens comuns à genética original das duas raças se tornaram ainda mais aprimorados: tanto no porte, como no faro apurado, no comportamento dócil, na robustez e até na fidelidade ao dono. Aquilo era o que se poderia chamar um cão de eleição.
É claro que se eu adivinhasse o que me estava reservado, podem ter a certeza de que nem sequer punha um pé fora de casa, naquela manhã, por sinal, bastante carrancuda: com vento forte, frio e a ameaçar chuva. De resto, todos nós que vivemos intensamente a época venatória, temos um pouco a convicção de que a natureza reserva sempre o mau tempo para os dias de caça. De qualquer forma, ainda bem que não temos o dom de adivinho senão a vida perderia, certamente, todo o seu verdadeiro sentido. Mas voltando àquela malfadada caçada, durante a viagem tudo decorreu normalmente, contudo, assim que ocupei a minha posição no terreno surgiram os primeiros pingos de chuva, fria como gelo e que foi um excelente aviso em relação ao agasalho apropriado à situação. Ora, como o bom tempo se espera no monte, avancei serra dentro sem preocupações de maior, para além dos cuidados a que a vegetação densa obriga.
Uma hora depois e após calcorrear muito terreno, continuava sem ter visto qualquer peça de caça, mas isso não era motivo para desânimo pois, tinha sempre presente que de um momento para o outro a sorte poderia mudar. E assim aconteceu. Logo que atingi o dorso do monte, o meu Boby amarrou-se junto a uma moiteira. Estava tão solene que nem a pelagem lhe bulia. Perante isso, adiantei-me ao cão e assim que as perdizes saltaram, deitei uma abaixo. Mas devido à minha precipitação para observar o destino do resto do bando, nem sequer tive tempo para ver onde aquela caíra, deixando essa tarefa ao cuidado do cachorro que a cobrar era infalível. Então, para tentar concretizar os meus intentos corri a dobrar o morro sem levar em conta as condições do piso rochoso, coberto de musgo, que o tornava ainda mais escorregadio e paguei bem caro pela imprudência. Assim, tropecei numa rocha escarpada e quando me tentava apoiar na laje que estava à minha frente, deslizei rochedo abaixo acabando estatelado no fundo de um barranco. As consequências só não foram dramáticas porque alguma santa me amparou no momento do trambolhão, mas, ainda assim, tive múltiplas escoriações e fraturei a perna direita.
Quando tomei consciência do que me acontecera, tive a perceção de que já tinha a minha conta. As dores eram insuportáveis e mal me conseguia movimentar. Como se isto não bastasse, também não havia ninguém por perto que me pudesse auxiliar. Nesse momento, presenciei aquilo que nunca imaginara. O meu cão quando se apercebeu do que me tinha acontecido, começou a ganir à minha volta numa aflição de meter dó e logo a seguir desatou a correr desaparecendo do meu horizonte visual, sem sequer me deixar um adeus. Abalou precisamente no instante em que eu mais precisava de ajuda. Ainda o chamei várias vezes, para que não me abandonasse, mas ele não me deu ouvidos, seguindo o que o seu instinto lhe ditara.
Incapaz de caminhar, arrastei-me alguns metros apoiado na espingarda, numa tentativa desesperada para tentar chegar à estrada, mas os obstáculos eram muitos: desde logo o terreno acidentado, seguido da distância e da vegetação densa, impregnado de pedras e troncos que eram verdadeiros obstáculos até para uma pessoa sem dificuldades físicas, quanto mais para mim atendendo à minha incapacidade. É claro que, ao fim de meia centena de metros a lutar contra tanta adversidade, acabaria por perder os sentidos. Quando recuperei, interroguei-me sobre o que me poderia acontecer se, entretanto, não fosse socorrido. 
Naquele tempo não existiam telemóveis. Encontrava-me no cimo da serra, num ermo que não conduzia a lado nenhum e onde dificilmente passava alguém: nem habitantes das redondezas, nem pastores, nem mesmo outros caçadores que só esporadicamente se faziam àquela colina, talvez receando a dureza do terreno. Sem me deixar resignar pela má sorte pensei, então, no carro. Sim, o carro via-se de longe e poderia ser a minha última esperança, logo que dessem pela minha falta. Contudo, ali estava exposto ao frio e à chuva, onde certamente não resistiria o tempo suficiente até tal acontecer. Pensava eu naquele momento de aflição.
Enquanto permaneci naquele fim de mundo, envolto em dor e angústia, fui assaltado por mil pensamentos sobre o que é na realidade a essência da vida e como de um momento para o outro, o curso real da nossa existência se pode alterar, de uma forma abrupta, para sempre. Sonhos e projetos de toda a ordem que podem terminar a qualquer instante sem que para isso tenhamos sequer direito a um pré-aviso de advertência, para logo a seguir mergulharmos num esquecimento sem fim. Na realidade, só valorizamos a saúde e a vida quando tomamos consciência que estamos em risco de as perder. Como se estes dois vetores não fossem nucleares e ao mesmo tempo o bem mais precioso de que qualquer um de nós pode possuir.
Ao fim de perto de uma hora, que me pareceu uma eternidade, qual não é o meu espanto quando fui surpreendido pelo regresso do meu cão. Atrás dele vinha o Gilberto, um amigo de longa data. Ao longe até me parecia uma visão fantástica e só à medida que se foram aproximando é que acreditei que, de facto, era real. Então, eu que já tinha perdido a esperança de ser encontrado com vida, quando os vi, fiquei de tal modo feliz que até esqueci as dores e abandonei as minhas cogitações. Estava salvo.
Só nesse momento fiquei a saber que o cachorro me abandonara para ir em busca de auxílio. Nunca me perdoarei por ter duvidado da fidelidade do meu cão!
E do que é que o Boby se havia de lembrar quando que se apercebeu de que eu estava ferido com gravidade? Partiu à procura do Gilberto que, coitado, agora já mal sai de casa, mas à época ainda era um homem robusto e até cultivava uma fazenda nas proximidades! Para isso, o cão foi direito a essa propriedade onde por sinal, quando eu por ali passava costumava beber um copo com o Gilberto e que distava da minha posição cerca de um quilómetro. Então, assim que o encontrou, tentou despertá-lo para o sucedido. É evidente que o meu amigo conhecia o cão e sabia que ele era meu. Porquanto, assim que o viu, junto a si, com latidos estranhos, ocorreu-lhe que algo de anormal havia acontecido. Então, chamou várias vezes por mim, mas como não obteve qualquer resposta decidiu-se por seguir o cachorro que o foi conduzindo até ao desterro onde eu me encontrava prostrado.
Isto até custa a acreditar, mas foi exatamente assim que aconteceu! Como devem imaginar, eu já gostava muito daquele amigo, fiel e altruísta, mas a partir daí ainda fiquei a gostar mais. É claro que, mais uma vez se confirma o ditado que, tudo o que é bom tem uma validade muito limitada e também com o Boby não foi exceção. Na época seguinte, contraiu a doença provocada pelo mosquito (leishmaniose canina) e foi o fim.
Nessa altura fiquei bastante abalado com a morte do cão e só não desisti da caça porque cheguei à conclusão que ficar em casa a lamentar o acontecido seria, ainda, mais doloroso para mim. Até porque o exercício físico é essencial para manter alguma robustez. – concluiu o Ti Germano.
  Repare só na crueldade da natureza: um animal desses nunca devia morrer! – disse o Gervásio.
 A quem o diz, meu velho amigo!... – rematou resignado o Germano.
Nesse momento, João Antunes caminhou na direção da churrasqueira, pegou no assador, agitou-o e voltou a poisa-lo sobre as brasas, bradando:
  Atenção, meus senhores! As castanhas estão quase a sair!
  Vamos a elas! – exclamaram alguns dos presentes.
No final do almoço, regressámos a casa com o sentimento de que o dia passara demasiado depressa, mas desde logo agendámos novo passeio para o domingo seguinte.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

O GARIMPEIRO DO RIO CUANDO



Descaço, quase nu e com água pela cintura, Macupa vasculhava o leito do rio Cuando indiferente às várias espécies de répteis que por ali coabitavam. Com as mãos calejadas segurava a pá com firmeza e remexia o lodo com tal dinamismo como se a sua sobrevivência dependesse das entranhas daquele rio. Logo que enchia a peneira cirandava com agilidade até deixar à vista os grãos que não passavam na malha da rede. Depois via à lupa tudo o que restava na joeira e assim ia repetindo a operação vezes sem conta na esperança de um lance de sorte.
Macupa era um negro que desconhecia a data do seu nascimento, nem tão puco chegara a conhecer os seus pais, mas fora educado por um aldeão que lhe dera bons alicerces morais. Durante alguns anos, laborou numa fazenda de café onde se tornou um operário especializado em todo o processamento do grão, desde a apanha até ao ensacamento comercial. Após a morte do proprietário da fazenda foi obrigado a procurar outro posto de trabalho longe do meio onde habitualmente trabalhava. Depois de várias ocupações que não lhe deram qualquer estabilidade de emprego, acabaria por ser enganado por um madeireiro que após três meses de trabalho na floresta o abandonou na selva perto do Chiúme sem um centavo no bolso. Ali, longe do essencial e sem meios próprios de subsistência, acabaria por se apoiar nas gentes locais também elas a contas com muitas carências.
Com o passar do tempo, num local onde não existia qualquer posto de trabalho remunerado, foi-se adaptando as circunstâncias e ia sobrevivendo com o pouco que retirava da terra. Ali conheceu Felisbela, com quem acabaria por casar, uma jovem com idade a rondar os trinta anos, um pouco mais nova do que ele e de quem esperava um filho.
A rapariga que, nunca saíra do Chiúme, não conhecia outro lugar para além do horizonte que a sua vista alcançava, no entanto, sonhava com outras terras onde, segundo ouvira, a vida seria mais risonha.
Agora, Felisbela ocupava o seu tempo a trabalhar de costureira. Com o auxílio de uma revista de moda, que um militar lhe oferecera aquando uma Unidade militar ali estivera sediada, confecionava, não só, a sua própria indumentária como ainda de outros habitantes da aldeia. Herdara da mãe uma máquina de costura manual e com ela aprendera a fazer todo o tipo de roupa para homem e ainda, a debruar capulanas, a vestimenta mais usada pela maioria das mulheres da região. Muitas vezes apelava ao marido para rumarem a outro destino, mas ele, por falta de meios, ia argumentando que ainda não havia chegado o momento. Na realidade, a jovem era dotada demais para envelhecer numa aldeia perdida algures naquele fim do mundo. 
Como vinha sendo habitual, quando Macupa regressava da lavra onde se ocupava no cultivo de mandioca, entrava no rio para se dedicar ao garimpo na esperança de encontrar algum diamante que lhe desse alguma esperança para o futuro e por ali ficava o resto do dia ou até o cansaço o dominar. Muitas vezes a Felisbela, no meio de tanta demora para regressar a casa, ia ao seu encontro receando o pior.
Embora se constasse que por ali abundavam pedras preciosas Macupa nunca tivera a ventura de as encontrar. No entanto, o Soba Andino não se cansava de apregoar que nas entranhas daquele rio existiam filões de diamantes. O seu próprio pai ali arranjara uma pequena fortuna, aquando encontrara uma pedra que vendera a um colono e lhe rendera quinze contos. Contava, ainda, que um conterrâneo que se mudara para Mavinga também lá teria encontrado vários diamantes valiosos.
Movido por todo esse historial que associava à vontade de vencer, Macupa não desistia em procurar algo que lhe desse algum conforto para deixar de vez aquela terra à qual tinha uma dívida de gratidão pela forma como fora acolhido, mas que também era limitada demais para o seu mundo. Enquanto se ocupava do garimpo lembrava-se do muito que ouvira sobre a grandiosidade da capital e não se cansava de sonhar com aquela cidade cosmopolita. Ali, labutavam gentes de várias origens e credos e, não faltava trabalho situação que contrastava, e de que maneira, com o local onde vivia. Dali apenas sobressaía uma certeza, nunca teria um futuro risonho, nem para si, nem para a sua família. E não era só devido aos costumes e rituais ancestrais, com os quais não se identificava, mas essencialmente pelo grande isolamento a que aquela terra estava botada que, para ele, constituía um recuo civilizacional de muitas gerações.  
Naquele dia, durante o garimpo, depois de muito lutar com a adversidade, encontrou algo que se assemelhava a um minúsculo pedacito de vidro do tamanho da cabeça de um dedo polegar que brilhava como uma estrela. Ficou de tal modo radiante que, não pensou duas vezes, largou tudo e partiu ao encontro do Soba para que aquele lhe desse uma informação avalizada sobre o seu achado. Em pouco tempo, trepou a encosta e calcorreou perto de três quilómetros que era a distância que o separava do Kimbo onde aquele habitualmente se acomodava com a esposa.
O Soba era o chefe tribal e a autoridade policial e administrativa. Como chefe tribal, era a ele que competia regular a vida da tribo de acordo com a tradição e o costume. Como autoridade policial, competia-lhe cumprir e fazer cumprir as leis da administração e perante a qual respondia. Entre outras funções, também lhe competia impedir ou autorizar casamentos entre os membros da tribo. Bem como ministrar os ensinamentos, sobre sexo, à jovem esposa. Por sua vez, competia à mulher daquele ensinar o jovem marido.     
Ao princípio daquela tarde quente, o Soba Andino, nos seus quarenta e seis anos de vida, estava comodamente recostado numa cadeira de jambirre, junto à palhota, na companhia da esposa. Ambos saboreavam a sombra de um maboqueiro que aprimorava a brisa que soprava da chana. Em modorra pachorrenta, recuperavam as forças depois de terem exercido as suas funções de cobridores. O Soba e a esposa, nessa noite, tiveram a incumbência de descabaçar um casal de jovens, a rondar os catorze anos, que agendaram o casamento para essa data. 
Agora, o Soba, ao ser despertado pelo garimpeiro, não disfarçou o seu ar de desconforto pelo incómodo, mas logo que viu a pedra deixou sair um esgar de espanto. Pegou nela, mirou-a, demoradamente, de vários ângulos, franziu atesta e desprovido das mais elementares regras civilizacionais, meteu-a, tranquilamente, no bolso da camisa e disse:
-    Este tem muito carvão! Não vale nada! Vai procurar um mais valioso! Este fica comigo como recordação!
Macupa era um homem comedido e embora suspeitasse de que estava a ser enganado acatou a decisão do Soba sem esboçar protesto. Apesar de não se tratar de uma atitude própria de uma autoridade não via outra solução senão acomodar-se. Pois, aquele interpretava a lei a seu belo prazer e não valia a pena argumentar para não despoletar a sua ira. Por isso, regressou à luta do garimpo profundamente abalado. 
A determinada altura despertou ao som monótono do batuque que ecoava ao longo da chana, em direção ao rio, anunciando o início da cerimónia de casamento dos dois adolescentes e como o desânimo já se estava a apoderar do seu estado de espírito decidiu por fim ao trabalho para também ele se ir juntar à festa. Enquanto se deslocava de regresso à aldeia deixou que o seu pensamento vagueasse livremente por locais onde passara os melhores anos da sua vida e quando deu por si estava mergulhado num enorme desalento que só um copo bem cheio de álcool poderia ajudar a ultrapassar. 
As cerimónias, que se resumiram à dança e batuque, prolongaram-se por toda a noite e pelo dia seguinte, em que a caxipembe não parou de correr pelas gargantas. Caxipembe era um xarope artesanal, de elevado teor alcoólico, obtido a partir da fermentação de bagas silvestres maceradas com água e açúcar. Perto do final, Macupa já um pouco alterado pela bebida, com a cidade em mente e aconselhado por alguns homens mais ousados, decidiu enfrentar o Soba Andino para recuperar o seu diamante.
Logo que lhe foi possível, ainda o dia seguinte não havia clareado, meteu-se à picada a caminho da cidade, na companhia da esposa, só com a roupa que lhes cobria o corpo. Não sabia quando lá chegaria, mas transportava uma certeza, custasse o que custasse, o diamante voltara a ser seu.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

DEPOIS DA SERVIDÃO




O Sargento Gervásio era um militar que, depois de mais de três décadas em que participara em muitas missões de alto risco, se encontrava na situação de reserva. Para além de outras, destacam-se duas mobilizações para a guerra colonial, uma para Angola outra para Moçambique. Nesses dois cenários integrara as mais variadas missões, mas sempre em locais onde a atividade da guerrilha era mais aguerrida 
Agora, estava refugiado na Serra num pequeno lugarejo situado próximo do rio Zêzere onde buscava o merecido sossego. Local onde esperava encontrar o aconchego que, por imperativo de missão, lhe fora negado ao longo da sua carreira de serviço onde, com resiliência, sempre evidenciara a sua abnegação estoica. 
Finalmente, aguardava o inevitável entardecer da vida longe das sombras desse passado que fora sempre impregnado dos mais variados sacrifícios, mas onde a estrelinha da sorte estivera do seu lado preservando, não só, a sua integridade física como até a de caráter. 
Sempre que recordava aqueles tempos tumultuosos, em que vivera sob um regime que rejubilava ao silenciar os mais fracos, ainda, era notório um pequeno rasgo de nostalgia pela forma como soube enfrentar todas as adversidades com que era confrontado, até mesmo em palcos de guerra. Da mesma forma, lamentava já não ter a idade e a vitalidade daquela época, mas fazia os possíveis para desenvolver uma atividade regular e ocupar o tempo disponível na lida campestre onde acompanhava o crescimento dos muitos produtos hortícolas que ele próprio ia semeando. Não queria ficar ocioso e aguardar o passar do tempo com a resignação pachorrenta de quem já não espera mais nada da vida. 
Agora, o Gervásio raramente se deslocava à cidade, mas quando tal acontecia era para participar em almoços de convívio na companhia de alguns camaradas do seu tempo que, após o afastamento profissional, comungavam, ainda, de elevado espírito de amizade e camaradagem. Não passava de um pretexto para se irem encontrando depois de uma geração inteira de trabalho impregnada de provações em que o relacionamento, entre eles, se fora tornando familiar. Todos esses encontros eram aproveitados para uma confraternização pura. Discutiam assuntos de interesse comum, partilhavam ideias e recordavam histórias, revivendo algumas etapas da caminhada dos sonhos desfeitos. Histórias verdadeiras, não só de momentos eternos e do sentimento do dever cumprido como também das dificuldades, de toda a ordem, que enfrentaram durante todo o percurso ativo. 
Durante os convívios, por vezes, surgiam birras entre alguns elementos do grupo a troco de uma simples teimosia. Todavia, o Gervásio, bom conhecedor da natureza humana, fruto também da sua experiência nas relações com o público, tratava logo de apaziguar os ânimos partindo da ideia de que algumas pessoas, a partir de certa idade, regridem em termos espirituais. Do mesmo modo, lamentava que a parte física não fizesse essa mesma trajetória recuando ao tempo da infância. Essa sim, seria uma mudança maravilhosa para toda a humanidade e que espantaria, até, os cientistas que há muito buscam uma fórmula para eternizar a juventude. 
É por demais evidente que o desgaste ao longo da vida vai tornando os homens mais frágeis e sensíveis, dando facilmente azo a melindres a pretexto das coisas mais insignificantes que poderemos imaginar. Em face disso, compete aos que ainda não atingiram essa fase decadente fazerem uma mediação tolerante e ponderada dos conflitos para que uma longa amizade não seja, subitamente, amputada devido a uma questão de menor importância.
Quando o Gervásio e os camaradas do seu tempo desempenhavam funções, todos os subalternos viviam um quotidiano de tal modo submisso que se tornaram mais solidários e leais, criando em torno desses valores muitas cumplicidades, mas norteando sempre o espírito de unidade que era uma das divisas da sua condição. Assim, viam nessa firme ligação um exercício de bravura e o melhor processo de irem superando as injustiças e as exigências desmedidas que surgiam a cada momento do seu quotidiano. Com o passar lento dos anos e a renovação de alguns quadros as mentalidades foram, felizmente, evoluindo para patamares de maior justiça. Contudo, o espírito de unidade reinante até então, nos escalões inferiores, foi-se mantendo, orgulhosamente, intacto na alma dos que iam restando.
Mais tarde, com a chegada dos mais novos, tudo se tornaria incomparavelmente diferente: por um lado, a liberdade deu origem a formas de trato muito mais humanas e civilizadas que, por si só, permitiram uma maior autonomia individual, a todos os níveis; por outro, a agitação quotidiana não concede, certamente, espaço para grandes amizades entre as pessoas para que se aglutinem em torno dos valores que, para as gerações anteriores, constituíam uma marca de referência.
Naquele dia, estavam reunidos em mais um convívio e a determinada altura, depois de a discussão ter versado vários assuntos, o Gervásio disse:
– Os temas de hoje conduziram-me a um passado com mais de quatro décadas ao encontro de algumas etapas que ainda povoam a minha memória, como foi o caso do cão que me acompanhou em algumas operações no mato, aquando do cumprimento da minha comissão em Angola. 
‘Era um pastor alemão – continuou ele, enquanto os restantes o escutavam, – lindo, pujante e corpulento, parecia um lobo. Também ele foi vítima daquela guerra estúpida que se fartou de molestar inocentes. Apesar de nunca ter sido treinado para isso, acompanhava-nos em muitas operações no mato e cooperava instintivamente na segurança das instalações de um pequeno destacamento perdido algures nas terras do fim do mundo, longe de tudo aquilo que, para nós, era minimamente elementar. Tratava-se de uma pequena subunidade que se ia articulando no terreno, conforme as necessidades de adaptação ao desenrolar da missão que lhe fora atribuída: garantir a segurança do pessoal e meios, empenhados na construção de uma estrada em zona de combate, mais precisamente, nas imediações do rio Sessa que se situa a leste do país. 
A função policial de que tínhamos sido incumbidos representava para nós um risco acrescido e para o qual não havíamos sido preparados. No entanto, para tentar minimizar as consequências que um ataque de surpresa poderia causar às nossas forças, deitávamos mão a tudo o que nos poderia dar alguma vantagem como fora o caso da adoção daquele animal que dava pelo nome de Nero. Só quem viveu aqueles dias atribulados poderá ter uma noção avalizada sobre o enorme sentimento de insegurança que sentíamos na selva. Era à noite que a nossa miserável fragilidade guerreira se tornava mais real e quase assumia laivos de crueldade. Ficávamos entregues a nós próprios no meio das trevas e de um abismo sem fim. Estávamos rodeados de múltiplos e indecifráveis ruídos, com o inimigo a rondar por perto e perfeitamente conhecedor do terreno e da nossa fragilidade de meios. Não passávamos de uma dúzia de gatos-pingados, sem comunicações e logo aí sem possibilidade de pedir a evacuação de um ferido ou até o apoio das forças colocadas em posições mais recuadas no terreno quando tal fosse necessário. Como se tudo isso não bastasse, só tínhamos permissão para fazer uso das armas depois de termos sido flagelados pelo fogo inimigo e nunca como forma de prevenir uma agressão como seria normal esperar numa qualquer frente de combate. Esta restrição à partida deixava-nos em desvantagem perante os rebeldes e logicamente aumentava as dificuldades de progressão e, em última instância, sem medidas políticas de permeio, contribuía de forma decisiva para eternizar o conflito. 
Enfim, com o passar dos dias, fomos convivendo de perto com a triste realidade de que não passávamos de peças de baixo valor sem possibilidade de opinar ou contestar ordens independentemente da sua legitimidade. Em resumo, éramos a peça mais barata de toda a máquina de guerra e incomparavelmente menos importante do que as armas e outros meios logísticos. 
Mas voltando ao cão, – prosseguiu o Gervásio, perante o ar atento dos companheiros, – nunca consegui entender a rapidez com que o animal se adaptou à família militar e às novas exigências, tornando-se, assim, num pisteiro de eleição que farejava o odor rebelde a quilómetros de distância. Qualidades que o tornaram num valoroso aliado das nossas forças. 
Certa madrugada, algures na selva, o Nero, integrado numa missão avançada, detetou a aproximação de um grupo inimigo que se preparava para atacar a nossa pequena guarnição assim que rompesse a aurora. Na realidade é nesse período de transição que o cansaço e a sonolência ficam mais evidentes tornando, assim, os homens mais vulneráveis. Mas voltando ao Nero, mal este se apercebeu de que os rebeldes se aproximavam e sem quebrar o silêncio, despertou a atenção da sentinela que, de imediato, alertou os restantes elementos para adotarem uma postura defensiva e assim forçarem a horda inimiga à debandada imediata.    
Tal como a maioria de nós, o Nero viveu dias atribulados longe de qualquer carinho e sujeito aos mais variados tormentos. O antigo dono era um colono embrutecido pela vida dura em terreno hostil. Estivera vários anos radicado num aldeamento no meio da selva, depois de se ter lançado na aventura africana, em busca de melhores condições de vida que não tinha na pátria mãe. Nesse tempo, para tentar fugir à concorrência comercial que alastrava um pouco por toda a colónia, acabara naquela terra situada a várias centenas de quilómetros longe do tecido citadino mais próximo. Ali, onde fora pioneiro na implantação de um comércio de produtos variados, foi estendendo a sua atividade à produção agrícola. Os primeiros anos foram, para ele, de franco progresso, mas com a chegada da guerrilha a sua vida tornara-se numa insegurança constante e em função disso, resolvera adotar um cão, ainda bebé, com a finalidade de o moldar aos seus caprichos na busca de alguma proteção. Assim, escolhera um Pastor Alemão apenas pelas caraterísticas da raça, tanto em robustez, com até em agressividade. Queria transformá-lo numa fera implacável como forma de preservar a sua segurança e proteger o seu estabelecimento onde vendia, algumas mercearias, roupas defeituosas e cortes de pano coloridos. 
Para o comerciante levar por diante os seus intentos, logo que o cachorro atingiu três meses de idade, procurou um indígena para que este lhe aplicasse, sistematicamente, alguns açoites. Não foi difícil encontrar um negro gentio que cumprisse à risca as suas ordens sem qualquer abalo de consciência. 
Mas, algum tempo depois, o comerciante rumou a outras paragens abandonando o animal à sua sorte que acabaria por se refugiar junto dos militares e em contrapartida nós passamos a contar com um colaborador fiel que sabíamos que nunca nos trairia.
Infelizmente, a partir do dia em que a tropa abandonou a sua posição no terreno, por força da transferência de poderes para a nova administração, muita gente foi deixada para trás ao livre arbítrio rebelde. Foram os grupos especiais que, combatiam ao nosso lado, irmanados dos nossos princípios e valores. Os estrangeiros que ficavam em sentido quando içávamos a nossa bandeira. Tudo isso, sem falar na população que colaborava connosco e estava aos poucos a aprender a nossa língua. Todos eles foram abandonados à sua sorte, sem qualquer preocupação, por parte dos políticos de então. O Nero também foi incluído nesse enorme grupo de dispensados que, certamente, não puderam contar com a tolerância dos novos dirigentes’. – concluiu o Gervásio.
Depois do Gervásio terminar a sua história, brindaram a mais um dia em que a sua sobrevivência se ia tornando, a cada momento, mais problemática…







sexta-feira, 21 de março de 2014

FUGINDO À INDIGÊNCIA






Cansado de um quotidiano de penúria, Joaquim Boavida resolveu dar novo rumo à sua vida. Apesar de trabalhar muitas horas por dia, quase de sol a sol, não ganhava o suficiente para sustentar a família que ia sobrevivendo no limiar da indigência.
Naquela época, o país estava mergulhado numa grande crise económica, (um pouco à semelhança do que se passa atualmente em que a ditadura dos mercados estabelece as suas regras e tudo gira à volta delas), e muita gente buscava na emigração, especialmente para França, a solução para a pobreza que grassava por quase toda a classe operária. Para isso, contatavam emigrantes já consolidados, reuniam o dinheiro exigido pelos passadores e partiam ilegalmente em busca de alguns francos que lhes mitigassem as carências.
Assim, Joaquim Boavida logo que recebeu uma resposta positiva de um amigo, emigrante em França, a quem solicitara que lhe arranjasse trabalho naquele país não pensou duas vezes: pediu dinheiro emprestado a um familiar, procurou um passador e na data acordada meteu-se a caminho.
Na madrugada da véspera de Natal de 1965, apanhou o comboio em Coimbra com destino a Vilar Formoso. Logo no início da viagem, receando vir a ser roubado, descalçou uma bota e acondicionou uma nota de mil escudos, entre a meia e o peito do pé. Uma reserva para fazer frente a qualquer emergência que pudesse surgir. Na bagagem, que se limitava a um pequeno saco de linhagem, levava, apenas, uma muda de roupa, por sinal, já muito ponteada pela sua esposa e alguns pedacitos de pão com sabor a conduto. Ainda se fazia acompanhar de um pequeno feixe de vides com a finalidade de não despertar a atenção da polícia política portuguesa, (PIDE), que à data controlava todos os movimentos dos cidadãos. Fora, assim, aconselhado pelo passador para dar a ideia de que ia trabalhar na vinha daquela região do país. 
Assim, em função do combinado, Joaquim Boavida abandonou o comboio no apeadeiro da Freineda, com o molho de vides debaixo do braço, à espera de um sinal que lhe desse alguma tranquilidade. Logo que se apeou, foi interpelado por um indivíduo que se pronunciava em castelhano e que de imediato o encaminhou para um barracão agrícola, onde já se encontravam outros sete candidatos a emigrantes, oriundos de várias regiões do país. Passaram ali a noite de coração apertado e rodeados de carências. Na madrugada seguinte, foram divididos em dois grupos. O grupo onde se integrava Joaquim Boavida foi o primeiro a sair. Orientado por uma mulher ainda jovem que conduzia um burro carregado com três molhos de vides, caminhou ao longo das propriedades em poisio, com o gelo a estalar debaixo dos pés até chegar a um abrigo improvisado junto à Ribeira de Tourões, já perto da fronteira onde ficaram à espera de ordens. Mais tarde, chegaria também ali o segundo grupo.
Ao início da noite, todos os elementos tiraram a roupa e fizeram a travessia da ribeira a vau, com água pela cintura, enfrentando a torrente e a temperatura gélida que ao crepúsculo ainda se tornara mais inclemente. Mas a vontade de vencer era grande e o frio cortante não constituiu obstáculo para lhes criar desmotivação. Logo que chegaram à outra margem foram conduzidos a outro esconderijo, um aqueduto que se situava perto da fronteira de Vilar Formoso, onde foram informados que a vigilância fronteiriça havia sido reforçada e como tal teriam que esperar o tempo que fosse necessário até aquela abrandar. Ao frio e mal alimentados, só ao início da noite seguinte, receberam uma refeição ligeira trazida por uma senhora idosa que lhes deu informações sobre a situação.
Finalmente, ao início da terceira noite, foram recolhidos pelo mesmo indivíduo que viram em Freineda e que conduzia um Citroen DS, vulgarmente conhecido como boca de sapo, de matrícula espanhola. Após uma rápida troca de palavras com aquele, ficaram a conhecer as regras a seguir durante a viagem em território espanhol. Joaquim Boavida e outro individuo, que eram os mais franzinos, foram encarcerados na bagageira e os restantes seis no habitáculo. 
Quando Joaquim Boavida entrou naquele espaço acanhado, sem ventilação e onde quase não se podia mexer, teve pensamentos de toda a espécie. Desde a ironia do seu apelido, passando pela possibilidade de via ser preso, até ao limite da sua resistência física, tudo lhe passou pela mente. Só ali, naquela clausura, mergulhado na escuridão e sujeito aos mais variados solavancos tomou verdadeira consciência da difícil aventura em que se metera. No entanto, sabia que não tinha alternativa. Não queria ser detido e estava totalmente dependente do passador, que apenas conhecera quando lhe entregara os treze mil e quinhentos escudos para o passar para França. Agora, desistir, para além de uma manifestação de fraqueza, seria alimentar um drama ainda maior. No país não tinha forma de ganhar o dinheiro para o poder restituir a quem lho emprestara. Por isso, não podia fracassar, teria de resistir até ao limite das suas forças sem esboçar protesto.
 Ao fim de quatro horas na mesma posição, mergulhado na escuridão, sentia-se tonto, já mal conseguia respirar e os membros já não reagiam aos seus impulsos cerebrais. Contudo, ia resistindo com a convicção de que a sua vida iria mudar para melhor. Quando lhe abriram a porta, estava paralisado e teve a nítida sensação de que acordara de um sonho de terror em que, por momentos, chegara a perder a consciência. Mas assim que respirou a brisa fria da noite conseguiu recuperar, momento em que foi informado que estava numa estação de serviço, perto de Burgos. Na continuação da viagem, foi substituído na bagageira por outro desgraçado, por sinal um pouco mais encorpado, que não fazia a mínima ideia da tortura que o esperava.
Mais tarde, a caminho dos Perineus, o motorista foi forçado a uma manobra de diversão para se furtar aos agentes da polícia espanhola que mandaram parar o veículo. Assim, depois de alguns quilómetros de uma correria desenfreada, por estradas secundárias, sinuosas e esburacadas, onde só um verdadeiro milagre evitou o acidente, os emigrantes foram deixados numa barraca abandonada, em plena floresta. Por seu turno, o motorista substituiu as chapas de matrícula do Citroen o mais rápido que lhe foi possível e logo a seguir desapareceu no meio do arvoredo deixando, apenas, a intenção de voltar logo que a situação o permitisse.
Ali, em território hostil, de barriga vazia e receando o pior, esperaram até ao início da noite. Momento em que foram surpreendidos por outro espanhol que, depois de entregar um pão a cada um, os encaminhou para um veículo pesado estacionado nas imediações. Assim que o ocuparam ficaram a saber que estava adaptado com uma divisória na caixa de carga. À retaguarda carregava legumes e na outra extremidade, junto à cabine, tinha uma caixa falsa para acomodar os emigrantes. O acesso era pela cabine, através de uma pequena abertura no banco do motorista, pela qual foram empurrados, um a um, como gado para abate. Assim, a situação de clausura repetia-se, agora, até final da viagem. Com uma agravante, o cheiro era insuportável.
No final do dia seguinte, chegaram aos arredores de Paris onde cada um ficou entregue a si próprio. Joaquim Boavida nem queria acreditar de que se livrara daquela viagem atribulada em que passara os dias mais amargurados da sua existência. Todavia, tinha um pressentimento de vitória. Estava feliz, porque acabara de chegar a um país onde lhe era possível sonhar com melhores dias. Com esse espírito em mente, apanhou um táxi a caminho de Maison Laffitte onde o esperava uma vida de muitos sacrifícios, mas também com algumas compensações.
Começou por tratar da sua legalização que lhe ficou em trezentos francos, adiantados pelo patrão que, desde logo, lhe passou a pagar quatro francos por cada hora de trabalho.
Ali, fugindo à indigência, encontrara a sua segunda pátria!