Descaço, quase nu e com água pela
cintura, Macupa vasculhava o leito do rio Cuando indiferente às várias espécies
de répteis que por ali coabitavam. Com as mãos calejadas segurava a pá com
firmeza e remexia o lodo com tal dinamismo como se a sua sobrevivência
dependesse das entranhas daquele rio. Logo que enchia a peneira cirandava com
agilidade até deixar à vista os grãos que não passavam na malha da rede. Depois
via à lupa tudo o que restava na joeira e assim ia repetindo a operação vezes
sem conta na esperança de um lance de sorte.
Macupa era um negro que desconhecia a
data do seu nascimento, nem tão puco chegara a conhecer os seus pais, mas fora educado por um aldeão que lhe dera bons alicerces morais. Durante alguns anos, laborou numa fazenda de café onde se tornou um operário especializado em todo o
processamento do grão, desde a apanha até ao ensacamento comercial. Após a
morte do proprietário da fazenda foi obrigado a procurar outro posto de
trabalho longe do meio onde habitualmente trabalhava. Depois de várias
ocupações que não lhe deram qualquer estabilidade de emprego, acabaria por ser
enganado por um madeireiro que após três meses de trabalho na floresta o
abandonou na selva perto do Chiúme sem um centavo no bolso. Ali, longe do essencial
e sem meios próprios de subsistência, acabaria por se apoiar nas gentes locais também elas a contas com muitas carências.
Com o passar do tempo, num local onde
não existia qualquer posto de trabalho remunerado, foi-se adaptando as
circunstâncias e ia sobrevivendo com o pouco que retirava da terra. Ali conheceu
Felisbela, com quem acabaria por casar, uma jovem com idade a rondar os trinta
anos, um pouco mais nova do que ele e de quem esperava um filho.
A rapariga que, nunca saíra do
Chiúme, não conhecia outro lugar para além do horizonte que a sua vista alcançava,
no entanto, sonhava com outras terras onde, segundo ouvira, a vida seria mais
risonha.
Agora, Felisbela ocupava o seu tempo
a trabalhar de costureira. Com o auxílio de uma revista de moda, que um militar
lhe oferecera aquando uma Unidade militar ali estivera sediada, confecionava, não
só, a sua própria indumentária como ainda de outros habitantes da aldeia. Herdara
da mãe uma máquina de costura manual e com ela aprendera a fazer todo o tipo de
roupa para homem e ainda, a debruar capulanas, a vestimenta mais usada pela
maioria das mulheres da região. Muitas vezes apelava ao marido para rumarem a
outro destino, mas ele, por falta de meios, ia argumentando que ainda não havia
chegado o momento. Na realidade, a jovem era dotada demais para envelhecer numa
aldeia perdida algures naquele fim do mundo.
Como vinha sendo habitual, quando
Macupa regressava da lavra onde se ocupava no cultivo de mandioca, entrava no
rio para se dedicar ao garimpo na esperança de encontrar algum diamante que lhe
desse alguma esperança para o futuro e por ali ficava o resto do dia ou até o
cansaço o dominar. Muitas vezes a Felisbela, no meio de tanta demora para
regressar a casa, ia ao seu encontro receando o pior.
Embora se constasse que por ali
abundavam pedras preciosas Macupa nunca tivera a ventura de as encontrar. No
entanto, o Soba Andino não se cansava de apregoar que nas entranhas daquele rio
existiam filões de diamantes. O seu próprio pai ali arranjara uma pequena
fortuna, aquando encontrara uma pedra que vendera a um colono e lhe rendera
quinze contos. Contava, ainda, que um conterrâneo que se mudara para Mavinga
também lá teria encontrado vários diamantes valiosos.
Movido por todo esse historial que
associava à vontade de vencer, Macupa não desistia em procurar algo que lhe
desse algum conforto para deixar de vez aquela terra à qual tinha uma
dívida de gratidão pela forma como fora acolhido, mas que também era limitada
demais para o seu mundo. Enquanto se ocupava do garimpo lembrava-se do muito
que ouvira sobre a grandiosidade da capital e não se cansava de sonhar com
aquela cidade cosmopolita. Ali, labutavam gentes de várias origens e credos e, não
faltava trabalho situação que contrastava, e de que maneira, com o local onde vivia. Dali apenas sobressaía uma
certeza, nunca teria um futuro risonho, nem para si, nem para a sua família. E
não era só devido aos costumes e rituais ancestrais, com os quais não se
identificava, mas essencialmente pelo grande isolamento a que aquela terra
estava botada que, para ele, constituía um recuo civilizacional de muitas
gerações.
Naquele dia, durante o garimpo, depois
de muito lutar com a adversidade, encontrou algo que se assemelhava a um
minúsculo pedacito de vidro do tamanho da cabeça de um dedo polegar que
brilhava como uma estrela. Ficou de tal modo radiante que, não pensou duas vezes,
largou tudo e partiu ao encontro do Soba para que aquele lhe desse uma
informação avalizada sobre o seu achado. Em pouco tempo, trepou a encosta e
calcorreou perto de três quilómetros que era a distância que o separava do Kimbo onde aquele habitualmente se acomodava com a esposa.
O Soba era o chefe tribal e a
autoridade policial e administrativa. Como chefe tribal, era a ele que competia
regular a vida da tribo de acordo com a tradição e o costume. Como autoridade
policial, competia-lhe cumprir e fazer cumprir as leis da administração e
perante a qual respondia. Entre outras funções, também lhe competia impedir ou
autorizar casamentos entre os membros da tribo. Bem como ministrar os
ensinamentos, sobre sexo, à jovem esposa. Por sua vez, competia à mulher daquele
ensinar o jovem marido.
Ao princípio daquela tarde quente, o
Soba Andino, nos seus quarenta e seis anos de vida, estava comodamente
recostado numa cadeira de jambirre, junto à palhota, na companhia da esposa.
Ambos saboreavam a sombra de um maboqueiro que aprimorava a brisa que soprava da chana. Em modorra pachorrenta, recuperavam as forças depois de terem exercido as suas funções de cobridores. O Soba e a esposa, nessa noite,
tiveram a incumbência de descabaçar um casal de jovens, a rondar os catorze
anos, que agendaram o casamento para essa data.
Agora, o Soba, ao ser despertado
pelo garimpeiro, não disfarçou o seu ar de desconforto pelo incómodo, mas logo
que viu a pedra deixou sair um esgar de espanto. Pegou nela, mirou-a,
demoradamente, de vários ângulos, franziu atesta e desprovido das mais
elementares regras civilizacionais, meteu-a, tranquilamente, no bolso da camisa
e disse:
-
Este tem
muito carvão! Não vale nada! Vai procurar um mais valioso! Este fica comigo
como recordação!
Macupa era um homem comedido e embora
suspeitasse de que estava a ser enganado acatou a decisão do Soba sem esboçar
protesto. Apesar de não se tratar de uma atitude própria de uma autoridade não
via outra solução senão acomodar-se. Pois, aquele interpretava a lei a seu
belo prazer e não valia a pena argumentar para não despoletar a sua ira. Por
isso, regressou à luta do garimpo profundamente abalado.
A determinada altura despertou ao
som monótono do batuque que ecoava ao longo da chana, em direção ao rio,
anunciando o início da cerimónia de casamento dos dois adolescentes e como o
desânimo já se estava a apoderar do seu estado de espírito decidiu por fim ao
trabalho para também ele se ir juntar à festa. Enquanto se deslocava de
regresso à aldeia deixou que o seu pensamento vagueasse livremente por locais
onde passara os melhores anos da sua vida e quando deu por si estava mergulhado
num enorme desalento que só um copo bem cheio de álcool poderia ajudar a
ultrapassar.
As cerimónias, que se resumiram à
dança e batuque, prolongaram-se por toda a noite e pelo dia seguinte, em que a caxipembe
não parou de correr pelas gargantas. Caxipembe era um xarope artesanal, de
elevado teor alcoólico, obtido a partir da fermentação de bagas silvestres
maceradas com água e açúcar. Perto do final, Macupa já um pouco alterado pela
bebida, com a cidade em mente e aconselhado por alguns homens mais ousados,
decidiu enfrentar o Soba Andino para recuperar o seu diamante.
Logo que lhe foi possível, ainda o
dia seguinte não havia clareado, meteu-se à picada a caminho da cidade, na
companhia da esposa, só com a roupa que lhes cobria o corpo. Não sabia quando
lá chegaria, mas transportava uma certeza, custasse o que custasse, o diamante
voltara a ser seu.
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