quinta-feira, 1 de maio de 2014

O GARIMPEIRO DO RIO CUANDO



Descaço, quase nu e com água pela cintura, Macupa vasculhava o leito do rio Cuando indiferente às várias espécies de répteis que por ali coabitavam. Com as mãos calejadas segurava a pá com firmeza e remexia o lodo com tal dinamismo como se a sua sobrevivência dependesse das entranhas daquele rio. Logo que enchia a peneira cirandava com agilidade até deixar à vista os grãos que não passavam na malha da rede. Depois via à lupa tudo o que restava na joeira e assim ia repetindo a operação vezes sem conta na esperança de um lance de sorte.
Macupa era um negro que desconhecia a data do seu nascimento, nem tão puco chegara a conhecer os seus pais, mas fora educado por um aldeão que lhe dera bons alicerces morais. Durante alguns anos, laborou numa fazenda de café onde se tornou um operário especializado em todo o processamento do grão, desde a apanha até ao ensacamento comercial. Após a morte do proprietário da fazenda foi obrigado a procurar outro posto de trabalho longe do meio onde habitualmente trabalhava. Depois de várias ocupações que não lhe deram qualquer estabilidade de emprego, acabaria por ser enganado por um madeireiro que após três meses de trabalho na floresta o abandonou na selva perto do Chiúme sem um centavo no bolso. Ali, longe do essencial e sem meios próprios de subsistência, acabaria por se apoiar nas gentes locais também elas a contas com muitas carências.
Com o passar do tempo, num local onde não existia qualquer posto de trabalho remunerado, foi-se adaptando as circunstâncias e ia sobrevivendo com o pouco que retirava da terra. Ali conheceu Felisbela, com quem acabaria por casar, uma jovem com idade a rondar os trinta anos, um pouco mais nova do que ele e de quem esperava um filho.
A rapariga que, nunca saíra do Chiúme, não conhecia outro lugar para além do horizonte que a sua vista alcançava, no entanto, sonhava com outras terras onde, segundo ouvira, a vida seria mais risonha.
Agora, Felisbela ocupava o seu tempo a trabalhar de costureira. Com o auxílio de uma revista de moda, que um militar lhe oferecera aquando uma Unidade militar ali estivera sediada, confecionava, não só, a sua própria indumentária como ainda de outros habitantes da aldeia. Herdara da mãe uma máquina de costura manual e com ela aprendera a fazer todo o tipo de roupa para homem e ainda, a debruar capulanas, a vestimenta mais usada pela maioria das mulheres da região. Muitas vezes apelava ao marido para rumarem a outro destino, mas ele, por falta de meios, ia argumentando que ainda não havia chegado o momento. Na realidade, a jovem era dotada demais para envelhecer numa aldeia perdida algures naquele fim do mundo. 
Como vinha sendo habitual, quando Macupa regressava da lavra onde se ocupava no cultivo de mandioca, entrava no rio para se dedicar ao garimpo na esperança de encontrar algum diamante que lhe desse alguma esperança para o futuro e por ali ficava o resto do dia ou até o cansaço o dominar. Muitas vezes a Felisbela, no meio de tanta demora para regressar a casa, ia ao seu encontro receando o pior.
Embora se constasse que por ali abundavam pedras preciosas Macupa nunca tivera a ventura de as encontrar. No entanto, o Soba Andino não se cansava de apregoar que nas entranhas daquele rio existiam filões de diamantes. O seu próprio pai ali arranjara uma pequena fortuna, aquando encontrara uma pedra que vendera a um colono e lhe rendera quinze contos. Contava, ainda, que um conterrâneo que se mudara para Mavinga também lá teria encontrado vários diamantes valiosos.
Movido por todo esse historial que associava à vontade de vencer, Macupa não desistia em procurar algo que lhe desse algum conforto para deixar de vez aquela terra à qual tinha uma dívida de gratidão pela forma como fora acolhido, mas que também era limitada demais para o seu mundo. Enquanto se ocupava do garimpo lembrava-se do muito que ouvira sobre a grandiosidade da capital e não se cansava de sonhar com aquela cidade cosmopolita. Ali, labutavam gentes de várias origens e credos e, não faltava trabalho situação que contrastava, e de que maneira, com o local onde vivia. Dali apenas sobressaía uma certeza, nunca teria um futuro risonho, nem para si, nem para a sua família. E não era só devido aos costumes e rituais ancestrais, com os quais não se identificava, mas essencialmente pelo grande isolamento a que aquela terra estava botada que, para ele, constituía um recuo civilizacional de muitas gerações.  
Naquele dia, durante o garimpo, depois de muito lutar com a adversidade, encontrou algo que se assemelhava a um minúsculo pedacito de vidro do tamanho da cabeça de um dedo polegar que brilhava como uma estrela. Ficou de tal modo radiante que, não pensou duas vezes, largou tudo e partiu ao encontro do Soba para que aquele lhe desse uma informação avalizada sobre o seu achado. Em pouco tempo, trepou a encosta e calcorreou perto de três quilómetros que era a distância que o separava do Kimbo onde aquele habitualmente se acomodava com a esposa.
O Soba era o chefe tribal e a autoridade policial e administrativa. Como chefe tribal, era a ele que competia regular a vida da tribo de acordo com a tradição e o costume. Como autoridade policial, competia-lhe cumprir e fazer cumprir as leis da administração e perante a qual respondia. Entre outras funções, também lhe competia impedir ou autorizar casamentos entre os membros da tribo. Bem como ministrar os ensinamentos, sobre sexo, à jovem esposa. Por sua vez, competia à mulher daquele ensinar o jovem marido.     
Ao princípio daquela tarde quente, o Soba Andino, nos seus quarenta e seis anos de vida, estava comodamente recostado numa cadeira de jambirre, junto à palhota, na companhia da esposa. Ambos saboreavam a sombra de um maboqueiro que aprimorava a brisa que soprava da chana. Em modorra pachorrenta, recuperavam as forças depois de terem exercido as suas funções de cobridores. O Soba e a esposa, nessa noite, tiveram a incumbência de descabaçar um casal de jovens, a rondar os catorze anos, que agendaram o casamento para essa data. 
Agora, o Soba, ao ser despertado pelo garimpeiro, não disfarçou o seu ar de desconforto pelo incómodo, mas logo que viu a pedra deixou sair um esgar de espanto. Pegou nela, mirou-a, demoradamente, de vários ângulos, franziu atesta e desprovido das mais elementares regras civilizacionais, meteu-a, tranquilamente, no bolso da camisa e disse:
-    Este tem muito carvão! Não vale nada! Vai procurar um mais valioso! Este fica comigo como recordação!
Macupa era um homem comedido e embora suspeitasse de que estava a ser enganado acatou a decisão do Soba sem esboçar protesto. Apesar de não se tratar de uma atitude própria de uma autoridade não via outra solução senão acomodar-se. Pois, aquele interpretava a lei a seu belo prazer e não valia a pena argumentar para não despoletar a sua ira. Por isso, regressou à luta do garimpo profundamente abalado. 
A determinada altura despertou ao som monótono do batuque que ecoava ao longo da chana, em direção ao rio, anunciando o início da cerimónia de casamento dos dois adolescentes e como o desânimo já se estava a apoderar do seu estado de espírito decidiu por fim ao trabalho para também ele se ir juntar à festa. Enquanto se deslocava de regresso à aldeia deixou que o seu pensamento vagueasse livremente por locais onde passara os melhores anos da sua vida e quando deu por si estava mergulhado num enorme desalento que só um copo bem cheio de álcool poderia ajudar a ultrapassar. 
As cerimónias, que se resumiram à dança e batuque, prolongaram-se por toda a noite e pelo dia seguinte, em que a caxipembe não parou de correr pelas gargantas. Caxipembe era um xarope artesanal, de elevado teor alcoólico, obtido a partir da fermentação de bagas silvestres maceradas com água e açúcar. Perto do final, Macupa já um pouco alterado pela bebida, com a cidade em mente e aconselhado por alguns homens mais ousados, decidiu enfrentar o Soba Andino para recuperar o seu diamante.
Logo que lhe foi possível, ainda o dia seguinte não havia clareado, meteu-se à picada a caminho da cidade, na companhia da esposa, só com a roupa que lhes cobria o corpo. Não sabia quando lá chegaria, mas transportava uma certeza, custasse o que custasse, o diamante voltara a ser seu.

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