sexta-feira, 11 de julho de 2014

O VIVER SERRANO NO PRINCÍPIO DO SÉCULO XX




"Com a chegada da recessão em 1930, as dificuldades agravaram-se e as populações, já anteriormente carenciadas, ainda ficaram mais fragilizadas. Desde o princípio do século que a instabilidade política era a causa apontada para o grande colapso em que viviam as comunidades rurais em Portugal. Agora, para esta agonia económica, teria contribuído essencialmente a crise a nível mundial, como reflexo ainda da Primeira Grande Guerra que doze anos depois, teimava em semear dramas.
Para tentarem fugir à penúria que não parava de os molestar, todos os homens válidos, mas sem pão no açafate, cujo passadio se limitava a um caldo de couves, boiando sem condimentos por o azeite se destinar à candeia fumarenta, com um pouco de broa migada para que o seu bolor se desvanecesse, todos eles olhavam para o horizonte com alguma esperança, sobretudo em época de ceifas, nas grandes planícies do Alentejo ou na província de Badajoz em Espanha."
In Madrugadas de Esperança.




sexta-feira, 4 de julho de 2014

A FONTE MILAGROSA


Naquela manhã de maio, João Nabiça decidiu experimentar a potência do seu novo jeep numa viagem pela serra risonha onde para além do prazer da condução queria saborear a beleza da paisagem. Para além do passeio e do contacto com a natureza, queria, ainda, verificar a resistência da viatura, face à aridez do terreno, numa das diversas vias florestais de acesso à barragem de Santa Luzia. Tratava-se de um período do ano em que os montes serranos se revestiam de um colorido matizado deslumbrante que deleitava o olhar até do mais distraído passante.
A esposa que, nesse dia, não quisera experimentar a viatura para se furtar à constante censura do marido, relativa à sua condução, ia sentada a seu lado contemplando o rendilhado florido que cobria os montes quase no seu auge. Durante todo o percurso de ida, ambos conviviam com toda aquela beleza natural como se visitassem a região serrana pela primeira vez. Passaram ali noutras ocasiões, mas nunca se haviam apercebido de que a paisagem fosse tão arrebatadora, motivo que os forçou a paragens frequentes para o inevitável registo fotográfico.
Depois de um percurso térreo de grande inclinação em que João Nabiça aproveitou para fazer diversos testes ao veículo que, apesar do elevado grau de dificuldade, correspondeu às suas expetativas, chegaram ao Casal da Lapa. Assim, logo que Nabiça estacionou o carro decidiram percorrer o circuito da pista pedestre, construída junto à albufeira da barragem de Santa Luzia, exercitando as pernas e sorvendo o ar puro daquele lugar retemperador.  
Logo que o apetite os despertou para o almoço encaminharam-se para Fajão, uma aldeia de xisto de grandes tradições que, para além do património histórico de visita quase obrigatória, lhes reservava uma refeição como há muito não comiam. Depois das entradas de queijo de cabra curado e doce de chila, optaram por uma emanta de cabrito assado, guarnecido com batata alourada e castanha pilada, acompanhado com um bom tinto. No final, após se terem deliciado com uma sobremesa de tigelada na púcara, Nabiça rematou com um digestivo de aguardente medronheira. Uma iguaria, para auxiliar a digestão, de sabor ligeiramente adamado e aroma inconfundível, produzida na região serrana por gente experiente no fabrico artesanal.  
Quando se encaminhavam para a viatura, Nabiça notou que tinha exagerado nas bebidas alcoólicas. Não estava bêbedo, mas já se sentia um pouco tocado ao ponto de notar pequenas alterações de coordenação motora. Apesar disso, não comentou o assunto com a esposa para não a motivar a pegar no volante. Até porque ela também tinha bebido, embora em menor quantidade. Ao mesmo tempo, ele não tinha muita confiança na sua condução, especialmente, naquela zona montanhosa onde os precipícios se sucediam em cada curva da estrada que ao mínimo descuido poderiam originar um despiste com consequências imprevisíveis. Assim, sentou-se ao volante consciente do seu estado que julgava não ser impeditivo de guiar. De qualquer forma, tinha a noção de que naquela região o trânsito era bastante reduzido e também não era habitual ser confrontado com qualquer ação de fiscalização. Então, iniciou a viagem de regresso à Lousã, em marcha muito cautelosa para tentar minimizar qualquer imprevisto. No entanto, enquanto subia a serra, para uma altitude superior a mil metros e onde a pressão atmosférica já é notória, foi acometido de forte sonolência, mas, apesar disso, foi progredindo tentando contrariar o descanso que organismo lhe pedia.
Entretanto, para obedecer a uma necessidade fisiológica, foi forçado a interromper a marcha no momento em que circulava próximo do cimo da catraia do Farropo. Antes de reiniciar a viagem ficou a saborear a brisa fresca que soprava de norte, tentando, com isso, espantar a sonolência que o atormentava. Vento era coisa que não faltava por ali em qualquer época do ano. No dorso daquelas serranias era utilizado como força propulsora para produção de energia.
Enquanto se movimentava, na berma da estrada, apercebeu-se da existência de uma nascente contígua à via que brotava da fenda de uma rocha em caudal abundante. Como se o cantarolar da corrente lhe tivesse despertado o apetite, desceu o pequeno valeiro, encheu uma garrafa que ali encontrou e bebeu em pequenos goles. Minutos depois repetiu o enchimento e convidou a esposa para que lhe fizesse companhia, mas como aquela declinou ele esvaziou a garrafa sozinho saboreando a frescura e a leveza da água em lentos tragos.
Entretanto, o tempo foi passando e, meia hora mais tarde, notou que a sua disposição melhorara nitidamente. A sonolência e a perturbação visual tinham desaparecido. Em função disso, retomou a marcha, aparentemente, consciente para o exercício da condução.
Porém, quando se aproximava do entroncamento da Catraia da Martinha, lobrigou, por entre a ramagem dos pinheiros, a presença de uma força policial que se encontrava a menos de duzentos metros à sua frente. Ao ver os agentes, Nabiça estremeceu e interrompeu bruscamente a marcha com uma travagem que embora não tivesse sido ruidosa despertou a atenção da fiscalização.
De facto, estava longe de imaginar que, naquele local, em plena serra, iria ser surpreendido por uma operação de stop. Precisamente no dia em que tinha ingerido um copito a mais, uma situação que só muito esporadicamente acontecia. No mesmo instante, sentiu-se invadido por um misto de emoções contraditórias: se por um lado se recriminava por não ter tido cuidado suficiente com a bebida, por outro, insurgia-se contra a presença dos agentes de autoridade logo num local que não lhe deixava alternativa de desvio. Pensou em trocar de lugar com a esposa, mas, ao mesmo tempo, descartou a ideia dado que, certamente, os agentes iriam notar. Ao mesmo tempo, equacionava uma forma de se desenvencilhar da situação em que estava metido, talvez, invertendo o sentido de marcha para se por em fuga. Tinha uma viatura apropriada para circular por qualquer estrada florestal, onde não seria facilmente alcançado, mas corria o risco de vir a ser confundido com um vulgar criminoso, coisa que nem sequer podia imaginar que lhe acontecesse. Considerava-se uma pessoa responsável e, como tal, a sua única solução, seria assumir as consequências que pudessem resultar da fiscalização. Nos poucos segundos que mediaram a sua reflexão tudo isso lhe passou pela mente. Mas, de repente, lembrou-se de que não tinha averbado qualquer infração no seu cadastro de condutor e decidiu prosseguir o caminho na expectativa de que isso lhe servisse de atenuante.
Então, como tanto receara, mal entrou na Estrada Nacional 112, foi logo intercetado pelos agentes de autoridade. Ao ser questionado se havia ingerido bebidas alcoólicas respondeu com realismo. Não valia apena mentir até porque o aparelho não se deixaria, obviamente, iludir pela sua negação. Porém, a sua ansiedade era de tal modo que, depois de sopro, ficou com os olhos vidrados no aparelho como se esperasse algo muito decisivo na sua vida de condutor. Mas o resultado surgiria quase de imediato, com a indicação de 0,35 g/l. Um resultado perfeitamente dentro dos limites legais para poder exercer a condução. Nabiça nem queria acreditar naquilo que ouvia da boca do agente, quando aquele lhe deu conta do resultado.
Só depois de ter sido autorizado a continuar a viagem, comentou com a esposa não só o mau bocado que passara provocado pelos efeitos do excesso de bebida como, ainda, o susto que apanhara no ato da fiscalização. Ao mesmo tempo, não se cansava de fazer conjeturas sobre o resultado do teste e só encontrou uma explicação razoável - as excelentes propriedades da água que tinha ingerido. De facto, logo que a primeira golada deslizou pela garganta, notou uma reação quase imediata que lhe trouxe a boa disposição, razão que julgava suficiente para acreditar naquilo que lhe acontecera.
No dia seguinte, João Nabiça mandou fabricar uma placa metálica com a inscrição seguinte: “Fonte Milagrosa”. Não tardou em arranjar uma oportunidade para voltar à serra e colocar a placa, junto à fonte, bem à vista de qualquer transeunte, como se com esse gesto fizesse um agradecimento à generosidade da natureza pela pureza daquela nascente.  
Dois meses mais tarde, por motivos desconhecidos, a placa com a indicação da "Fonte Milagrosa" viria a desaparecer. 




sexta-feira, 13 de junho de 2014

UM ALMOÇO INESQUECÍVEL



Logo que Norberto Vidreiro e o jovem Vicente chegaram à povoação da Várzea encaminharam-se para a tasca que era o único estabelecimento que servia refeições num raio de vinte quilómetros. Embora nunca lá tivessem entrado, tinham boas referências sobre a qualidade da comida ali confecionada. Apenas um senão, a variedade de pratos estava limitada ao chamado “prato do dia”, a menos que o menu fosse previamente encomendado. De qualquer modo, os dois homens não estavam preocupados com isso, queriam matar a fome fosse qual fosse a ementa.
Para eles a manhã fora longa e atribulada. Levantaram-se cedo a caminho de um lugar que distava das suas residências perto de cem quilómetros. Ali, esperava-os trabalho árduo a braços com a colocação de vidros num edifício em construção. Durante a viagem tiveram uma avaria no veículo que lhes roubou quatro horas de labuta e nem sequer lhes permitiu a ingestão do pequeno-almoço. Motivo suficiente para que nesse dia se sentissem mais esfaimados do que nunca.
O Vidreiro era um antigo atleta na disciplina do lançamento do peso que, depois de alguns anos de entrega à prática desportiva, se dedicava, agora, em exclusivo à sua profissão de vidreiro. Era um homem com cinquenta anos de idade, bem humorado e robusto, que gostava de se alimentar bem. O Vicente era seu empregado. Tinha dezoito anos e nunca lhe faltava o apetite.
Logo que chegaram ao tasco, sentaram-se à mesa e pediram duas doses de jardineira que era a ementa do dia. Mas assim que o tasqueiro colocou as travessas em cima da mesa o Vidreiro olhou-o nos olhos e disse:
-    Olhe que nós pedimos duas doses!
-   Exatamente, estão à sua frente! – respondeu o tasqueiro, também um homem robusto, mas ligeiramente mais velho.
-   Tenho almoçado em muitos locais pelo país e não só, mas nunca me serviram uma dose tão pobre! O senhor acha que isto é refeição suficiente para um homem de trabalho? – insistiu Norberto Vidreiro de plena voz.
-  Se quiser mais peça outra dose! Não se acanhe! A panela está cheia! – respondeu o sexagenário, com cara de quem esperava a visita dos funcionários do fisco.
- Não, obrigado! Para pagar outra dose é preferível fazer a viagem de vinte quilómetros e almoçar num restaurante digno desse nome! – respondeu o Vidreiro, sem alterar o tom de voz.
Ao fim de duas dúzias de garfadas, ambos ficaram com os pratos vazios. O Vidreiro ainda esteve tentado a pedir outra dose para o colaborador, que era jovem e tinha necessidade de se alimentar bem, mas acabaria por desistir depois de ouvir a recusa daquele. Ambos concordaram num jantar reforçado, aquando de regresso às suas residências.
Mas, a meio da tarde, a fome voltou para ensombrar a habitual boa disposição dos dois homens e Vidreiro não se ficou pelas intenções, ordenou ao jovem que fosse comprar qualquer coisa para o lanche. Em função disso, quando o Vicente se dirigiu ao tasqueiro e pediu duas sandes, aquele disse:
-   Muito bem! Enquanto eu as preparo, vá perguntar ao seu patrão se amanhã cá vêm almoçar e diga-lhe que a ementa vai ser favas.
-    Eu não gosto de favas. – atalhou o Vicente.
-    Não faz mal, para si preparo um bife com batatas fritas!
A resposta não tardou muito e foi afirmativa. Norberto Vidreiro adorava favas e decidiu repetir a experiência antes de optar por uma alternativa.
Assim, no dia seguinte, sensivelmente à mesma hora, os dois homens sentaram-se à mesa preparados para satisfazer o apetite, nem que, para isso, tivessem que pedir doses reforçadas. Depois de alguns minutos de espera, o tasqueiro, conforme havia acordado, colocou à frente do jovem um bife de novilho que enchia totalmente o prato e à frente de Vidreiro um tabuleiro a abarrotar de favas. Estavam tão bem empilhadas que, no meio, formavam uma torre em forma de pirâmide. Pelo volume devia rondar dois quilos.
- Para quem é este vagão de favas? – questionou Vidreiro, que parecia impressionado com o que via.
-  Para o homem de trabalho que está sentado a essa mesa! Não quero que ele repita aquilo que disse ontem! E como se não bastasse a reclamação, pronunciou-se em tom audível a outros clientes, pondo em causa o bom nome desta casa, fruto do trabalho de duas gerações. – respondeu o tasqueiro, com ar de quem julgava ter ganho a causa.
-   Muito bem! Então, traga um jarro de vinho de litro!
Só depois do sexagenário se afastar é que Vidreiro tomou consciência do sarilho em que estava metido. Conhecia a sua capacidade gastronómica, mas nunca se vira perante uma situação que tinha tudo para ser um desafio provocador. Embora fosse um homem de trato austero sabia dar o braço a torcer quando a situação o exigia, mas, naquele caso, decidiu enfrentar a refeição como se travasse uma batalha com o tasqueiro que o serviu, personalizada na montanha de favas. Não podia permitir que aquele se divertisse à sua custa.
Depois de várias dezenas de garfadas e um quarto de hora a comer a pirâmide parecia ainda maior, mas o Vidreiro estava determinado a concluir a refeição a que se propusera. Pelo canto do olho, notava que o tasqueiro o tinha sob observação em conluio com alguns comparsas que se apinhavam ao longo do balcão, mas não dava qualquer importância aos olhares indiscretos. A determinada altura levantou o braço e o sexagenário correu na sua direção como se esperasse o anúncio de tréguas. Contudo, a batalha ainda estava longe do fim. Contentou-se com o pedido de outro jarro de vinho.
Alheio à guerra das favas, estava o jovem que, enquanto almoçava, olhava o patrão com o ar divertido de quem nunca assistira a semelhante façanha.
Apesar de totalmente enfartado, o Vidreiro continuou a lenta degustação para que as favas se fossem acomodando o melhor possível. Não tinha pressa. O trabalho podia esperar. Era patrão de si próprio, não tinha que dar contas a ninguém.
Uma hora mais tarde, o tasqueiro não resistiu a uma provocação. Abeirou-se da mesa e questionou:
-     Então! Gosta das favas?
-     Muito! – respondeu o Vidreiro.
-     São do meu quintal!
-    Olhe! Para lhe ser franco, acho-as bem confecionadas! No entanto, se não me leva a mal, gostaria de fazer um pequeno reparo:
-    Fale à vontade, homem!
-   Acho que a cozinheira se excedeu no tempero! Tem piripiri a mais! Mas para isso também o senhor arranja solução! Traga-me mais um jarro de vinho! Tenho a boca a escaldar!
-    Meu amigo! Não seja por isso! A pipa está cheia! Pode beber à vontade! – disse o tasqueiro engolindo em seco a resposta que não esperava. Logo que chegou atrás do balcão, encheu o jarro e trocou palavras em surdina com uma senhora que estava junto a si que logo a seguir foi entregar o vinho que ele acabara de encher.
Depois de quase duas horas, surgiu aquilo que o tasqueiro nunca imaginara. O tabuleiro estava limpo e o jarro vazio. Vidreiro vencera o primeiro combate. O segundo estava reservado para a digestão de todo aquele excesso de comida e bebida.
Logo a seguir, mal o Vidreiro terminou a refeição, o sexagenário abeirou-se da mesa e em tom provocatório, questionou:
-     E, agora, vai desejar sobremesa?
-     Depende do que tiver!
-     Hoje, só temos mousse de chocolate! – respondeu o tasqueiro.
-    Nesse caso fica sem efeito! Não me dou bem com os doces! Traga-me apenas o café e um bagaço bem cheio. Entretanto, pode fazer a conta que ainda tenho meio-dia de trabalho pela frente.
-   Caro amigo! As contas estão feitas! Hoje, é por conta da casa! Dou-lhes os parabéns! Se de facto for tão bom a trabalhar como é a comer não há obra que lhe resista.
-    Pode crer! Mas eu faço questão de pagar a minha despesa. – insistiu o Vidreiro.
-    Como já lhe disse, hoje a despesa é por minha conta!
-   Nesse caso, obrigado! Mas estava longe de imaginar de que iria comer um almoço à borla. Ah!... Quando voltar a servir favas não se esqueça de me avisar! – disse o Vidreiro no momento da despedida, perante o ar desalentado não só do tasqueiro como, também, dos comparsas que o rodeavam. 
Só quando se levantou é que Vidreiro tomou a verdadeira consciência do exagero em que se metera. A barriga estava a abarrotar e as pernas teimavam em não lhe obedecer. Mas ele era resistente e estava mentalizado para as dificuldades que o esperavam. Não estava em condições de trabalhar, mas também não podia estar parado. O movimento era essencial para fazer a digestão. Assim, por via disso, o resto do dia, não parou de caminhar ao longo de uma artéria secundária para não dar a entender o seu transtorno digestivo. Mas o exagero tinha sido grande e não havia forma de se livrar daquele enfartamento. A barrigada fora de tal ordem que se prolongou até ao meio da tarde do dia seguinte, apesar de não mais ter comido nem bebido.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

PASSEIO CINEGÉTICO À PAMP. DA SERRA



Na véspera da primeira caçada à perdiz, em que pude participar naquele ano, comecei por preparar o veículo que habitualmente levava à caça e a organizar todo o equipamento sem esquecer a infinidade de documentos exigidos para a prática cinegética. De seguida, tratei de confecionar o farnel que, nas atuais circunstâncias, é o maior elo de ligação entre os grupos de caçadores e, talvez, o elemento mais importante de toda a jornada.
A noite foi longa. Quase não dormi. O meu cachorro, de raça épagneul, de nome Simba, ficou em desassossego o tempo todo como se me quisesse lembrar, a cada instante, que se aproximava a hora de partirmos. Instinto que era notado, apenas, nos bons caçadores já acostumados às lides cinegéticas.
A ansiedade habitual da caça à perdiz tinha, para mim, desta vez, uma maior expetativa que esperava não viesse a sair gorada, para não continuar a depender inteiramente dos cães de que os meus companheiros de jornada se faziam acompanhar. É lógico que não esperava que o cão, logo na primeira caçada, detetasse um bando a cem metros de distância, ou que se amarrasse até eu me aproximar e depois as levantasse uma a uma, para logo a seguir as ir cobrar, como noutras épocas o vira fazer a bons perdigueiros. Esperava sim que, para além do faro apurado, se entregasse à busca com espírito de caçador.
Por volta das cinco horas, daquele domingo de novembro, depois de ter arrumado todo o material, abri a porta do atrelado e o épagneul acomodou-se no lugar que melhor lhe convinha, atendendo a que, naquele momento, não tinha que partilhá-lo com outro. Apesar disso, estava visivelmente ansioso e atento a tudo o que eu fazia como se desde logo adivinhasse o nosso destino. Logo a seguir deixámos a Lousã e partimos ao encontro do José Luís e do João Antunes, dois velhos amigos que me aguardavam alguns quilómetros mais à frente, para seguirmos juntos, na mesma viatura, a caminho da “nossa coutada”. Um local onde contávamos com a companhia do Gervásio e esperávamos encontrar perdizes bravias e ainda, passar o dia em puro convívio com a natureza. Claro que, nos tempos que corriam, caçar aves inteiramente selvagens era um luxo de que poucos caçadores se podiam gabar, mas elas, por ali, ainda iam aparecendo.
A madrugada estava fria e a escuridão era total. Mas, como se me quisesse certificar das condições meteorológicas, logo que deixei o perímetro urbano, olhei ao longe a linha do horizonte onde apenas se notavam os contornos das serranias que contrastavam nitidamente com o céu estrelado. Essa visão inundou-me de ansiedade e quase me levou a aumentar a velocidade para tentar chegar mais depressa ao destino. Minutos mais tarde, recolhi os dois companheiros de jornada que me esperavam na berma da estrada, com os animais à trela e reclamando do frio que, entretanto, resolvera chegar antes de tempo, como se nos quisesse fazer uma desagradável surpresa. Aliás, já vinha sendo habitual. Com o início das jornadas de caça chegava também a intempérie para nos dificultar a movimentação no terreno.
Na continuação do nosso passeio cinegético, deixámos para trás as preocupações quotidianas e corremos, como adolescentes, em busca de um dia de recreio calcorreando os montes serranos. Mas à medida que nos íamos embrenhando para o interior, o frio ditava as suas leis e acentuavam-se as nossas preocupações em termos de segurança rodoviária. Nas zonas mais baixas, os arbustos brilhavam com gelo aos feixes luminosos dos faróis do veículo que, em marcha cuidadosa, ia circulando pela estrada muito sinuosa e repleta de perigos.
Um pouco mais à frente, quando circulávamos na EN 2, junto ao café restaurante do Esporão, encerrado àquela hora, deparámo-nos com uma raposa que passava revista minuciosa à esplanada do estabelecimento. Ao ver o animal a movimentar-se, descontraidamente, à luz dos candeeiros de iluminação pública, parámos em posição frontal ao parque de estacionamento com a finalidade de apreciar o seu comportamento face à nossa presença e à sua condição selvagem. A surpresa não poderia ter sido maior: numa pose elegante de onde sobressaía a sua pelagem volumosa, olhou-nos com indiferença e, sem perder tempo, aproximou-se do contentor do lixo, tombou-o e começou, aos poucos, a examinar o seu conteúdo em busca de algum esqueleto de frango ou outro petisco qualquer. Tudo isso numa agilidade surpreendente. Era como se estivesse no seu habitat natural sem companhia hostil por perto. É claro que a raposa ao ver o Luís a abandonar a viatura e a encaminhar-se na sua direção, para a impedir que espalhasse os detritos, interrompeu a operação e afastou-se uma vintena de metros deixando, desde logo, a ideia que assim que lhe virássemos as costas voltaria para continuar em busca de presa fácil.
Evidentemente que, para nós, nada disso foi novidade. Pois, à medida que a desertificação se vai acentuando, as terras de semeadura vão ficando em pousio e como tal, já nada têm para oferecer às diversas espécies cinegéticas com habitat na região. Por sua vez, aos predadores daquelas, não resta outra alternativa que não seja mitigarem as suas carências junto do pouco que vai restando nos povoados onde na falta de capoeiras se entregam a remexer os depósitos de lixo.
Depois de assistirmos à ousadia do bicho, continuámos o nosso itinerário lamentando o abandono do interior e a escassez da caça que afeta não só caçadores como também os predadores que se alimentam dela.
Logo a seguir, quando nos aproximávamos da curva das Quelhas, fomos surpreendidos por um veado que, em marcha rotineira, atravessava a estrada rumo ao cimo da encosta.
A visão do animal viria a suscitar algumas considerações sobre a proliferação da espécie pelas florestas da região centro, após o final do século XX. Abundância que dera origem à cobiça desmedida de caçadores furtivos.
Ao chegarmos ao alto da serra, mais concretamente às Cabeçadas, local onde era costume fazermos uma escala, parámos para um café retemperador. Ali, era o local habitual de reencontro com os caçadores oriundos de localidades limítrofes, irmanados do mesmo objetivo, que convergiam para a mesma zona cinegética da Pampilhosa da Serra. Uma paragem que, com o passar dos anos, para além de rotineira se foi tornando quase obrigatória. Não só pela falta de alternativa, mas também pela amizade que, entretanto, fomos cimentando com o proprietário do estabelecimento. 
Por vezes, era ali, saboreando o “mata-bicho” e na cavaqueira com os amigos que obtínhamos informações sobre a localização de alguns bandos de perdizes. Também se definiam estratégias relativamente aos locais que iríamos calcorrear, para nos distribuirmos ordeiramente pela Serra, de forma a evitar desentendimentos e até o fogo cruzado, que poderia resultar de uma prática menos cautelosa. Até o taberneiro, profundo conhecedor da região serrana, tinha sempre notícias sobre os locais onde vira as tão desejadas aves.
Noutras épocas de caça, fora também ali, naquela espécie de fronteira entre o litoral temperado e a serra agreste, que encontrámos abrigo, sempre que nos confrontávamos com condições climatéricas limites: nevoeiro, chuva intensa, ou queda de neve, desde que a intempérie nos impossibilitasse a continuação da viagem.
Naquela manhã, assim que chegámos em frente ao café, "Toca do Judeu" fomos confrontados com a falta de espaço para estacionar. O pequeno parque, junto ao edifício, estava repleto de viaturas. Em função disso, procuramos um lugar mais afastado com a ideia de que algo de anormal acontecera. Assim que abandonámos o veículo demos conta de uma sonoridade desabitual para o local e hora. Quando entrámos no estabelecimento, – que mais se assemelhava a uma taberna de meados do século XX que estava implantado junto à estrada nacional e era o único nas redondezas que abria diariamente às cinco da manhã – deparámo-nos com uma multidão de perto de duas dezenas de indivíduos que se apinhavam ruidosamente em redor do balcão. As suas idades deviam variar entre os dezoito e os trinta anos. Um escalão etário em que o espírito aventureiro ainda povoa muitos momentos do seu universo de vida independentemente das dificuldades que se lhe deparem. Pelo ar cansado que evidenciavam concluímos que nem sequer se haviam deitado naquela noite. A euforia era tão grande que nem deram pela nossa chegada. Só quando João Antunes forçou a passagem até ao balcão é que despertou a atenção daqueles. Todos queriam ser atendidos ao mesmo tempo. Soubemos logo a seguir que, apesar da hora e do frio que se fazia sentir, iam a caminho da barragem do Cabril onde contavam integrar um qualquer convívio de pesca desportiva organizado pela empresa onde laboravam.
Alguns conheciam aquele tasco desde o tempo em que o Rally de Portugal tinha grande projeção a nível internacional e incluía classificativas nas estradas secundárias daquela área. Troços onde alguns dos presentes assistiram a etapas emocionantes que, para além de verdadeiras lições de destreza e perícia automóvel, contagiavam o espírito dos jovens amantes daquele desporto motorizado.
Assim, com essa recordação em pano de fundo, quando saíram da discoteca na cidade, resolveram antecipar a partida para demandarem ao alto da serra onde esperavam aguardar pela restante comitiva. Ali tinham um café aberto para tomarem o que lhes apetecesse serviço que, até na cidade, àquela hora, seria difícil de encontrar.  
O velho comerciante não obstante estar habituado a um ambiente sossegado e pachorrento – pois, desde o tempo do Rally que não tinha memória, àquela hora, que o seu estabelecimento tivesse sido invadido por fregueses tão exigentes – andava numa roda-viva para impedir a balbúrdia e satisfazer a sequiosa e barulhenta clientela. A sua azáfama era tão grande que nem sequer tinha tempo para cumprimentar os caçadores à medida que estes iam entrando. Homens a quem, em dias de movimento normal, tratava pelo nome, conversava e até, de vez em quando, como quem sela uma amizade, oferecia uma bebida com a justificação de que era o melhor remédio para afugentar o frio que, na época da caça, não dava tréguas àquelas paragens.
Enquanto nos íamos esgueirando por entre aquela horda amistosa em busca de um aconchego para o estômago vazio, um moço mais afoito, com ar estonteado, barba por fazer e gaforina que lhe escondia totalmente as orelhas, – por entre tragos de cerveja – abeirou-se de nós e resolveu dirigir-se diretamente ao Luís, de uma forma insolente, quase provocatória. Aquele, embora sendo um homem temperado por alguma inflexibilidade no confronto com a irreverência, naquela situação, teve o bom senso de aceitar o desafio com tolerância, respondendo às questões com a delicadeza que o momento requeria. Forçando um sorriso, foi colaborando, pacientemente, com os jovens como se comungasse do mesmo espírito eufórico do bando, não só em relação aos concursos de pesca, como também no tocante a excessos e façanhas próprias da juventude que, qualquer de nós, com maior ou menor intensidade, já há muito vivera.
Mais tarde, aquando do regresso à viatura, viria a reconhecer que fizera um esforço gigantesco para não reagir como a situação o justificava, mas atendendo a que o jovem indiciava ter bebido em excesso, fora preferível não lhe agitar a vasilha para não turvar mais a bebida.
Por sua vez, João Antunes, ao seu estilo extrovertido, diluiu-se na multidão não só disparando frases divertidas sobre pescarias, como também elogiando a coragem dos jovens face ao frio e à aridez da serra. Também nós, a partir do momento em que nos mostrámos cooperantes, fomos rodeados por outros forasteiros que, para além de nos oferecerem bebidas, aproveitavam a nossa presença para levantar questões sobre alguns aspetos da prática cinegética, apenas por mera curiosidade. No final, quando João pediu a conta a nossa despesa já estava paga.
Depois de um café quente e de respondermos a algumas questões sem qualquer rigor técnico, deixámos o aconchego daquele abrigo e partimos ao encontro da serra nua, onde nos esperava, naturalmente, a hostilidade própria de uma serra agreste e tempo inclemente. Desde logo um frio glaciar trazido pelos ventos de nordeste, a juntar à aridez do terreno.
Quando nos encaminhávamos para o veículo, ainda envoltos na penumbra que agora se misturava com uma leve neblina que teimava em não deixar clarear a manhã, José Luís que, entretanto, se adiantara para fugir à confusão que parecia estar para durar, disse:
  Ouvi um tiro!
  Um tiro? – questionei.
  É verdade! Tudo me leva a acreditar que tivesse partido do lado dos penedos de Góis!
 Começaram cedo! – afirmei, com a ideia de que ainda não era possível avistar uma peça de caça a cinco metros de distância.
  Caçadores de estrada. – disse José Luís.
– Pobres coelhos, assim que saem da toca, começam logo a levar porrada! – disse eu.
– Nós vamos andando com calma que o tempo está feio e não somos responsáveis por essa guerra! – resmungou João Antunes, sem dar mais atenção aquilo que, apesar de marginal, era prática corrente principalmente nas imediações dos povoados.
 Na continuação da viagem, dobrámos a Portela do Vento onde àquela hora, no mesmo sentido, era habitual assistirmos a uma mudança brusca na visibilidade, como se entrássemos noutra galáxia. No entanto, naquela madrugada, rumámos a nascente a caminho da Barragem de Santa Luzia sem que tal tivesse acontecido. Em contrapartida, depois de termos percorrido cerca de um quilómetro, fomos envolvidos por nevoeiro denso que não fora o veículo estar equipado com faróis apropriados a esse fim e as linhas brancas que delimitavam as faixas de rodagem estarem bem visíveis e teria sido quase impossível continuar a viagem.
Apesar das dificuldades, lá fomos progredindo estrada fora em marcha de caracol, tentando tanto quanto possível chegar ao destino sem incidentes, pois, nenhum de nós queria virar as costas à adversidade, mas reconhecíamos que aquela etapa estava a tornar-se particularmente difícil. Mas nada que já não nos tivesse acontecido noutras jornadas.
A determinada altura do nosso percurso, já perto da lomba de Fajão, fomos surpreendidos por uma raríssima visão, há alguns anos a esta parte, na região. Tratava-se de uma lebre, em carne e osso, que ziguezagueava veloz pela via à nossa frente. Embora não estivesse a ser pressionada por mim, depois de ter percorrido duas dezenas de metros e como se quisesse furtar-se ao nosso veículo, a lebre subiu a barreira que se elevava íngreme a mais de dois metros de altura. A sua velocidade era tal que ao aproximar-se do topo esbarrou numa rocha mais saliente e rebolou sucessivamente até se estatelar na valeta. Repentinamente, levantou-se estonteada e esgueirou-se na direção oposta sem que algo de mais grave lhe tivesse acontecido. Foi um episódio que nos divertiu, originando mesmo sonoras gargalhadas em todos os presentes e que alterou, naturalmente, o rumo da nossa conversa.
Finalmente, por volta das sete da manhã, encontrámo-nos com Gervásio que nos aguardava no entroncamento do Vidual, já próximo da "nossa coutada".
Embora a idade de Gervásio já lhe impusesse algumas restrições físicas aquele, ainda, gostava de calcorrear os montes e desfrutar dos momentos que a caça tem de melhor: exercício físico, ar puro e convívio com a natureza e amigos. Na companhia de seu perdigueiro Braco e em marcha mais pausada, trilhava quase sempre os terrenos mais acessíveis, numa espécie de reserva para as dobras, sem nunca esboçar queixume.
 Minutos mais tarde, chegámos ao local que pretendíamos bater na caçada, precisamente o mesmo monte que havíamos calcorreado na época anterior, situado no cume da serra, nas imediações da Malhada do Rei.
Nessa ocasião, encontrámos uma serra rude, mas acolhedora, com uma panorâmica a perder de vista, onde as casas da aldeia situada ao fundo da ravina pareciam reduzidas a vulgares mosquitos. Era o Olimpo mitológico que gerava um sentimento de liberdade infinita e ao mesmo tempo uma maravilhosa terapia para o corpo e para a mente, mas onde à mercê da intempérie vive um Deus enfurecido. Nada que nos intimidasse em demasia, habituados à má sorte e a sacrifícios de toda a ordem, em algumas etapas da vida.
Para além do Braco do Gervásio, o Luís e o João faziam-se acompanhar de dois Pointers que, não obstante, algumas vezes, caçarem demasiado afastados dos donos, tinham um faro apurado e paravam-se muito bem. No entanto, quando caçavam próximos tornavam-se demasiado egoístas. Enquanto um se amarrava o outro procurava antecipar-se, acabando na maioria das vezes por espantar a caça antes que algum de nós tivesse possibilidade de se aproximar. De facto, contrariamente aos cães podengos que se adaptam perfeitamente a caçar em matilha, os perdigueiros são muitos individualistas e por isso devem, tanto quanto possível, trabalhar isolados.  
Enquanto aguardávamos a melhoria das condições climatéricas, fomos controlando a ansiedade entregues a pensamentos que se esgotavam no cenário que nos envolvia. Todavia, ao fim de meia hora, o tempo resolveu dar uma ajuda: o nevoeiro começou aos poucos a dissipar-se e os raios solares fizeram a sua aparição. Porém, ao sairmos da viatura, deparámos com uma brisa gélida de nordeste que, para além de nos resfriar o corpo e fustigar o rosto, também nos dificultava a respiração.
Assim que a visibilidade nos permitiu, formámos uma linha de quatro e iniciámos o movimento que se alongou pela grandiosidade daqueles montes, enfrentando com naturalidade não só o tempo agreste, como também a rudeza da serra. Ora subíamos as encostas íngremes que nos tornavam a respiração ofegante, ora contornávamos urzes e carquejas que, expostas ao cieiro prolongado, se assemelhavam a arame farpado. Ou ainda, descíamos pelos barrocos pedregosos e escorregadios, onde buscávamos as nascentes para saciar a sede, nossa e dos animais. Sempre que o terreno nos permitia, caminhávamos em sentido oposto ao vento para que o ruído que provocávamos não nos denunciasse às presas que buscávamos.
Naquele dia, iniciámos a jornada de caça numa encosta virada a nascente, refúgio habitual das perdizes em manhãs de geada. Para se defenderem do frio cortante das noites longas do Inverno, que se acentua com maior intensidade nas áreas mais baixas, sobem ao cume das serras, onde esperam pelo aconchego do sol.
Para tentar superar a inexperiência do Simba, ocupei uma posição entre o João e o Luís, distando destes cerca de oitenta passos. O Gervásio posicionou-se na orla mais baixa, onde o terreno e a vegetação proporcionavam um andamento mais cómodo, aproveitando, ao mesmo tempo, um carreiro que circundava grande parte da cordilheira e que deixava a nu a altura dos arbustos que o limitavam.
À medida que avançávamos monte dentro, o meu cachorro lá ia deambulando a poucos metros à minha frente, farejando e serpenteando o terreno com notada ingenuidade, mas sempre desperto para tudo o que lhe era estranho. Apesar de ser a sua primeira caçada, buscando perdizes bravias, movimentava-se com desembaraço e sem perder contacto comigo. De vez em quando, levantava o nariz e captava os odores, filtrando as informações trazidas pelo vento, com uma sensibilidade que fazia lembrar um veterano já familiarizado com a prática cinegética.
A certa altura, o João que ia na extremidade mais alta e mais avançada, posição que ocupava na maioria das jornadas, gesticulou em silêncio, alertando-nos para a proximidade das aves. O seu velho Pointer estava amarrado, algumas dezenas de metros à sua frente. Perante a situação, ficámos na expectativa do levanto. Logo que aquele se aproximou, as perdizes saltaram e João disparou dois tiros frenéticos, quase em simultâneo. Uma prática pouco habitual naquele caçador que, normalmente fazia uma ligeira pausa entre eles, como se analisasse o resultado, mas que desta vez tivera êxito. Uma ave perdeu o contacto com o bando e planou cerca de cento e cinquenta metros, até se despenhar ao fundo de uma ravina, a mais de cinquenta passos à minha direita. As outras nove equiparavam-se a jatos supersónicos numa tentativa desesperada para fugirem a um míssil furtivo. Seguiram velozes em voo rasante encosta abaixo, longe de alcance útil para mais disparos de qualquer de nós. Ainda a perdiz que fora atingida não tinha chegado ao chão já o Simba corria ao seu encontro como se procurasse ser o primeiro a apanhar a ave. Lance que me deixou numa enorme expetativa do resultado da sua intervenção sabendo à partida que corria o risco de ficar envergonhado perante os companheiros. Tudo dependia, naturalmente, do destino que o cachorro desse à perdiz até porque iria ser pressionado pelos outros perdigueiros. Contudo, não tardaria a saber o resultado. Decorridos poucos segundos, do fundo de um valeiro com vegetação mais densa, ouvi a voz do Luís que me chegava abafada:
  Simba dá cá a perdiz! Simba dá cá a perdiz!
No mesmo instante, reparei que o animal estava parado ao cimo de uma ribanceira tentando localizar a minha posição. Então gritei:
  Simba!... Estou aqui!
De imediato, o cachorro, com a perdiz na boca e acossado pelo Pointer, arrancou encosta acima ao meu encontro e veio entregar-ma, com uma tal delicadeza que outro mais experiente não teria feito melhor.
Como não poderia deixar de ser, nesse momento, fiquei um pouco embriagado pela forma natural, eu diria que quase mágica, como o épagneul se comportou e abracei-o com enorme satisfação. Acho que até o beijei e atendendo à situação, penso que qualquer verdadeiro caçador o faria.
Minutos mais tarde, quando eu passava por uma zona mais baixa e sombria, tentando a custo desenvencilhar-me dos arbustos que se entrelaçavam de uma forma quase impenetrável, fui surpreendido pelo salto de uma galinhola sem que o cão se tivesse apercebido da sua presença. O levanto foi tão inesperado que não me permitiu qualquer reação atempada.
As galinholas são tímidas e quase inodoras, razão suficiente para não serem facilmente detetadas pelos perdigueiros. Além disso, fazem a sua viagem migratória até ao nosso clima durante as noites de outono e abrigam-se normalmente nos bosques sombrios, onde dificilmente são incomodadas.    
Mais adiante, o Simba amarrou-se junto a um medronheiro que, embora já tivesse o chão coberto de frutos, parecia um excelente esconderijo para as perdizes. O cachorro estava completamente imobilizado: cabeça levantada em frente, pescoço esticado, pata dianteira fletida no ar. Contudo, quando me aproximava pronto para a ação, fui surpreendido pelo levanto de um pisco – uma pequena ave de bico dentado que, apesar de selvagem, se movimenta na proximidade do homem – que poisou logo a seguir, a pouco mais de três metros à minha frente. É claro que, perante isso, me larguei a rir. Quando esperava a descolagem suficientemente rápida e estridente de perdizes bravias saiu-me uma criatura minúscula, simpática e frágil, que pouco faltou para poisar no cano da minha espingarda.
A meio da manhã, já o cachorro se movimentava com visível dificuldade. Não me podia esquecer que era o primeiro dia que ele enfrentava a dureza daquela serra agreste e como tal não podia ignorar as suas queixas sob pena de o animal ficar muito tempo inativo. Mediante isso, observei que tinha várias feridas nas almofadas das patas dianteiras. Então, subi ao viso e atalhei por uma antiga estrada carreteira, agora transformada em coutada para alguns caçadores que fazem das viaturas todo-o-terreno o seu batedor de caça. Porém, a determinada altura, ainda nessa via, o épagneul avançou alguns metros com o nariz no ar e logo a seguir amarrou-se. Ainda a pensar no que ele fizera anteriormente, fiquei um pouco indeciso, mas assim que me aproximei fui surpreendido pelo salto de cinco perdizes. Aquele foi o primeiro teste do exame que o viria a conotar como um perdigueiro excelente.
Entretanto, à medida que se aproximava a hora do almoço, o ar puro da serra reforçava o apetite em cada um de nós. Até o Gervásio que, em dias de caça, dava maior prioridade à contenda do que propriamente à refeição, não parava de lembrar aos companheiros que a sua barriga estava a reclamar uma pausa.
Assim, movidos pelo mesmo objetivo, seguimos para o local habitual, que se situava perto da saída do túnel que liga a Malhada do Rei à barragem do Alto Ceira. Um local que se destinava ao convívio das boas gentes locais e a quem o procurava, dentro dos princípios básicos do civismo e do respeito pelo património coletivo. Para além dos sanitários, estava ainda equipado com uma churrasqueira e várias mesas em madeira, dispostas pelo recinto alcatroado, para que os utilizadores se sentissem confortáveis. Também não será demais salientar a forma cuidada como a maioria dos utilizadores preservava aquele espaço. 
Quando chegámos ao local onde tomávamos a refeição deparámo-nos, como habitualmente, com outros caçadores e entre os quais estava o Ti Germano que era um homem aprimorado pelo tempo e pelo seu percurso de vida, tanto culturalmente como na personalidade. Era também o caçador mais idoso dos que habitualmente calcorreavam aquelas serranias. Agora, como o peso dos anos ia vincando as suas marcas, raramente se aventurava pelos terrenos mais áridos, refugiava-se em áreas abertas de fácil acesso, para não correr riscos que lhe poderiam ser fatais. Apenas ia respondendo ao apelo da alma mais pelo convívio salutar que ainda era notado entre muitos caçadores, do que pela busca das peças de caça que só muito esporadicamente abatia. Embora ainda tivesse um espírito jovial, já não tinha a robustez física de outros tempos para enfrentar a dureza daqueles montes, onde passara as melhores e piores etapas da sua vida de caçador. Melhores porque, para além do convívio e das excelentes caçadas, conhecera de perto o viver daquelas gentes trabalhadoras e humildes com quem criara amizades como não imaginara; Piores porque, fora também naquelas serranias que passara momentos dramáticos aquando se vira a braços com uma queda que o conduziria ao hospital. Fora também naquela região que manchara o seu cadastro de caçador, pela simples razão de se ter esquecido dos documentos da caça. Para os apresentar à fiscalização, deslocou-se à residência o mais depressa que lhe foi possível, mas nem assim se livrou de uma pesada punição que lhe viria a causar muitas dores de cabeça. Apesar das contrariedades que ali vivera, amava aqueles montes como se de um autóctone se tratasse.
Agora, ali, sob os carvalhos gigantescos que uma brisa de norte ia ajudando a despir de folhagem e ao som que chegava da ribeira contígua, onde a corrente de água deslizava de pedra em pedra num murmúrio ininterrupto, confraternizávamos em desassossego tranquilo. Enquanto íamos degustando o repasto, os cachorros, de barriga vazia, recuperavam do esforço despendido, sem o mínimo sinal de protesto. Porém, a cada momento lançavam, sobre os convivas, um olhar piedoso, na esperança de que, como era costume, no final alguma coisa lhes coubesse.  
Entretanto, o Ti Germano foi atingido suavemente na face por uma folha que se desprendera de um ramo e por via disso pareceu despertar dos pensamentos negativos que lhe ocupavam a mente. Começou por encher os copos expostos sobre a mesa, levou um à boca e bebeu uma golada. Depois, fez uma pequena pausa como se lhe tomasse o paladar e exclamou:
– Podem beber sem preocupações que este é o puro néctar da uva! E sem esperar resposta, prosseguiu:
– Enquanto o nosso amigo João Antunes acaba de assar as castanhas, vou contar o episódio do meu acidente de caça que ocorreu aqui ao cimo da serra, já lá vão quase trinta anos:
 ‘Naquele dia, – começou ele, – por impossibilidade dos meus habituais companheiros de jornada, embarquei sozinho, imbuído do mesmo entusiasmo, com destino aqui aos nossos montes serranos. Não obstante a minha mulher insistir para que eu não saísse de casa sozinho, acabaria por levar a minha vontade por diante apenas na companhia do Boby, o meu velho perdigueiro. Digo velho porque à data já contava perto de dez anos, mas continuava a ter um vício e uma agilidade admiráveis. Não sei se algum de vocês ainda se lembra dele?
  Perfeitamente! – atalhou o Gervásio.
Pois, – continuou o Ti Germano, – era um híbrido que resultara do cruzamento entre o Perdigueiro Português e o Pointer! Mistura que à primeira vista pode parecer um pouco estranha, mas nem por isso deixou de ter as caraterísticas que se exigem a um animal caçador à pena. Antes pelo contrário, tenho a impressão que os itens comuns à genética original das duas raças se tornaram ainda mais aprimorados: tanto no porte, como no faro apurado, no comportamento dócil, na robustez e até na fidelidade ao dono. Aquilo era o que se poderia chamar um cão de eleição.
É claro que se eu adivinhasse o que me estava reservado, podem ter a certeza de que nem sequer punha um pé fora de casa, naquela manhã, por sinal, bastante carrancuda: com vento forte, frio e a ameaçar chuva. De resto, todos nós que vivemos intensamente a época venatória, temos um pouco a convicção de que a natureza reserva sempre o mau tempo para os dias de caça. De qualquer forma, ainda bem que não temos o dom de adivinho senão a vida perderia, certamente, todo o seu verdadeiro sentido. Mas voltando àquela malfadada caçada, durante a viagem tudo decorreu normalmente, contudo, assim que ocupei a minha posição no terreno surgiram os primeiros pingos de chuva, fria como gelo e que foi um excelente aviso em relação ao agasalho apropriado à situação. Ora, como o bom tempo se espera no monte, avancei serra dentro sem preocupações de maior, para além dos cuidados a que a vegetação densa obriga.
Uma hora depois e após calcorrear muito terreno, continuava sem ter visto qualquer peça de caça, mas isso não era motivo para desânimo pois, tinha sempre presente que de um momento para o outro a sorte poderia mudar. E assim aconteceu. Logo que atingi o dorso do monte, o meu Boby amarrou-se junto a uma moiteira. Estava tão solene que nem a pelagem lhe bulia. Perante isso, adiantei-me ao cão e assim que as perdizes saltaram, deitei uma abaixo. Mas devido à minha precipitação para observar o destino do resto do bando, nem sequer tive tempo para ver onde aquela caíra, deixando essa tarefa ao cuidado do cachorro que a cobrar era infalível. Então, para tentar concretizar os meus intentos corri a dobrar o morro sem levar em conta as condições do piso rochoso, coberto de musgo, que o tornava ainda mais escorregadio e paguei bem caro pela imprudência. Assim, tropecei numa rocha escarpada e quando me tentava apoiar na laje que estava à minha frente, deslizei rochedo abaixo acabando estatelado no fundo de um barranco. As consequências só não foram dramáticas porque alguma santa me amparou no momento do trambolhão, mas, ainda assim, tive múltiplas escoriações e fraturei a perna direita.
Quando tomei consciência do que me acontecera, tive a perceção de que já tinha a minha conta. As dores eram insuportáveis e mal me conseguia movimentar. Como se isto não bastasse, também não havia ninguém por perto que me pudesse auxiliar. Nesse momento, presenciei aquilo que nunca imaginara. O meu cão quando se apercebeu do que me tinha acontecido, começou a ganir à minha volta numa aflição de meter dó e logo a seguir desatou a correr desaparecendo do meu horizonte visual, sem sequer me deixar um adeus. Abalou precisamente no instante em que eu mais precisava de ajuda. Ainda o chamei várias vezes, para que não me abandonasse, mas ele não me deu ouvidos, seguindo o que o seu instinto lhe ditara.
Incapaz de caminhar, arrastei-me alguns metros apoiado na espingarda, numa tentativa desesperada para tentar chegar à estrada, mas os obstáculos eram muitos: desde logo o terreno acidentado, seguido da distância e da vegetação densa, impregnado de pedras e troncos que eram verdadeiros obstáculos até para uma pessoa sem dificuldades físicas, quanto mais para mim atendendo à minha incapacidade. É claro que, ao fim de meia centena de metros a lutar contra tanta adversidade, acabaria por perder os sentidos. Quando recuperei, interroguei-me sobre o que me poderia acontecer se, entretanto, não fosse socorrido. 
Naquele tempo não existiam telemóveis. Encontrava-me no cimo da serra, num ermo que não conduzia a lado nenhum e onde dificilmente passava alguém: nem habitantes das redondezas, nem pastores, nem mesmo outros caçadores que só esporadicamente se faziam àquela colina, talvez receando a dureza do terreno. Sem me deixar resignar pela má sorte pensei, então, no carro. Sim, o carro via-se de longe e poderia ser a minha última esperança, logo que dessem pela minha falta. Contudo, ali estava exposto ao frio e à chuva, onde certamente não resistiria o tempo suficiente até tal acontecer. Pensava eu naquele momento de aflição.
Enquanto permaneci naquele fim de mundo, envolto em dor e angústia, fui assaltado por mil pensamentos sobre o que é na realidade a essência da vida e como de um momento para o outro, o curso real da nossa existência se pode alterar, de uma forma abrupta, para sempre. Sonhos e projetos de toda a ordem que podem terminar a qualquer instante sem que para isso tenhamos sequer direito a um pré-aviso de advertência, para logo a seguir mergulharmos num esquecimento sem fim. Na realidade, só valorizamos a saúde e a vida quando tomamos consciência que estamos em risco de as perder. Como se estes dois vetores não fossem nucleares e ao mesmo tempo o bem mais precioso de que qualquer um de nós pode possuir.
Ao fim de perto de uma hora, que me pareceu uma eternidade, qual não é o meu espanto quando fui surpreendido pelo regresso do meu cão. Atrás dele vinha o Gilberto, um amigo de longa data. Ao longe até me parecia uma visão fantástica e só à medida que se foram aproximando é que acreditei que, de facto, era real. Então, eu que já tinha perdido a esperança de ser encontrado com vida, quando os vi, fiquei de tal modo feliz que até esqueci as dores e abandonei as minhas cogitações. Estava salvo.
Só nesse momento fiquei a saber que o cachorro me abandonara para ir em busca de auxílio. Nunca me perdoarei por ter duvidado da fidelidade do meu cão!
E do que é que o Boby se havia de lembrar quando que se apercebeu de que eu estava ferido com gravidade? Partiu à procura do Gilberto que, coitado, agora já mal sai de casa, mas à época ainda era um homem robusto e até cultivava uma fazenda nas proximidades! Para isso, o cão foi direito a essa propriedade onde por sinal, quando eu por ali passava costumava beber um copo com o Gilberto e que distava da minha posição cerca de um quilómetro. Então, assim que o encontrou, tentou despertá-lo para o sucedido. É evidente que o meu amigo conhecia o cão e sabia que ele era meu. Porquanto, assim que o viu, junto a si, com latidos estranhos, ocorreu-lhe que algo de anormal havia acontecido. Então, chamou várias vezes por mim, mas como não obteve qualquer resposta decidiu-se por seguir o cachorro que o foi conduzindo até ao desterro onde eu me encontrava prostrado.
Isto até custa a acreditar, mas foi exatamente assim que aconteceu! Como devem imaginar, eu já gostava muito daquele amigo, fiel e altruísta, mas a partir daí ainda fiquei a gostar mais. É claro que, mais uma vez se confirma o ditado que, tudo o que é bom tem uma validade muito limitada e também com o Boby não foi exceção. Na época seguinte, contraiu a doença provocada pelo mosquito (leishmaniose canina) e foi o fim.
Nessa altura fiquei bastante abalado com a morte do cão e só não desisti da caça porque cheguei à conclusão que ficar em casa a lamentar o acontecido seria, ainda, mais doloroso para mim. Até porque o exercício físico é essencial para manter alguma robustez. – concluiu o Ti Germano.
  Repare só na crueldade da natureza: um animal desses nunca devia morrer! – disse o Gervásio.
 A quem o diz, meu velho amigo!... – rematou resignado o Germano.
Nesse momento, João Antunes caminhou na direção da churrasqueira, pegou no assador, agitou-o e voltou a poisa-lo sobre as brasas, bradando:
  Atenção, meus senhores! As castanhas estão quase a sair!
  Vamos a elas! – exclamaram alguns dos presentes.
No final do almoço, regressámos a casa com o sentimento de que o dia passara demasiado depressa, mas desde logo agendámos novo passeio para o domingo seguinte.