A visão do animal viria a
suscitar algumas considerações sobre a proliferação da espécie pelas florestas
da região centro, após o final do século XX. Abundância que dera origem à cobiça
desmedida de caçadores furtivos.
Ao chegarmos ao alto da serra,
mais concretamente às Cabeçadas, local onde era costume fazermos uma escala,
parámos para um café retemperador. Ali, era o local habitual de reencontro com
os caçadores oriundos de localidades limítrofes, irmanados do mesmo objetivo,
que convergiam para a mesma zona cinegética da Pampilhosa da Serra. Uma paragem que, com o passar dos anos, para além de rotineira se foi tornando quase
obrigatória. Não só pela falta de alternativa, mas também pela amizade que,
entretanto, fomos cimentando com o proprietário do estabelecimento.
Por vezes, era ali, saboreando o
“mata-bicho” e na cavaqueira com os amigos que obtínhamos informações sobre a
localização de alguns bandos de perdizes. Também se definiam estratégias
relativamente aos locais que iríamos calcorrear, para nos distribuirmos
ordeiramente pela Serra, de forma a evitar desentendimentos e até o fogo
cruzado, que poderia resultar de uma prática menos cautelosa. Até o taberneiro,
profundo conhecedor da região serrana, tinha sempre notícias sobre os locais
onde vira as tão desejadas aves.
Noutras épocas de caça, fora
também ali, naquela espécie de fronteira entre o litoral temperado e a serra
agreste, que encontrámos abrigo, sempre que nos confrontávamos com condições
climatéricas limites: nevoeiro, chuva intensa, ou queda de neve, desde que a
intempérie nos impossibilitasse a continuação da viagem.
Naquela manhã, assim que
chegámos em frente ao café, "Toca do Judeu" fomos confrontados com a falta de espaço para
estacionar. O pequeno parque, junto ao edifício, estava repleto de viaturas. Em
função disso, procuramos um lugar mais afastado com a ideia de que algo de
anormal acontecera. Assim que abandonámos o veículo demos conta de uma
sonoridade desabitual para o local e hora. Quando entrámos no estabelecimento,
– que mais se assemelhava a uma taberna de meados do século XX que estava
implantado junto à estrada nacional e era o único nas redondezas que abria
diariamente às cinco da manhã – deparámo-nos com uma multidão de perto de duas
dezenas de indivíduos que se apinhavam ruidosamente em redor do balcão. As suas
idades deviam variar entre os dezoito e os trinta anos. Um escalão etário em
que o espírito aventureiro ainda povoa muitos momentos do seu universo de vida independentemente das dificuldades que se lhe deparem. Pelo ar cansado que
evidenciavam concluímos que nem sequer se haviam deitado naquela noite. A
euforia era tão grande que nem deram pela nossa chegada. Só quando João
Antunes forçou a passagem até ao balcão é que despertou a atenção daqueles.
Todos queriam ser atendidos ao mesmo tempo. Soubemos logo a seguir que, apesar
da hora e do frio que se fazia sentir, iam a caminho da barragem do Cabril onde
contavam integrar um qualquer convívio de pesca desportiva organizado pela
empresa onde laboravam.
Alguns conheciam aquele tasco
desde o tempo em que o Rally de Portugal tinha grande projeção a nível
internacional e incluía classificativas nas estradas secundárias daquela área.
Troços onde alguns dos presentes assistiram a etapas emocionantes que, para
além de verdadeiras lições de destreza e perícia automóvel, contagiavam o
espírito dos jovens amantes daquele desporto motorizado.
Assim, com essa recordação em
pano de fundo, quando saíram da discoteca na cidade, resolveram antecipar a
partida para demandarem ao alto da serra onde esperavam aguardar pela restante
comitiva. Ali tinham um café aberto para tomarem o que lhes apetecesse serviço
que, até na cidade, àquela hora, seria difícil de encontrar.
O velho comerciante não
obstante estar habituado a um ambiente sossegado e pachorrento – pois, desde o
tempo do Rally que não tinha memória, àquela hora, que o seu estabelecimento
tivesse sido invadido por fregueses tão exigentes – andava numa roda-viva para
impedir a balbúrdia e satisfazer a sequiosa e barulhenta clientela. A sua
azáfama era tão grande que nem sequer tinha tempo para cumprimentar os
caçadores à medida que estes iam entrando. Homens a quem, em dias de movimento
normal, tratava pelo nome, conversava e até, de vez em quando, como quem sela
uma amizade, oferecia uma bebida com a justificação de que era o melhor remédio
para afugentar o frio que, na época da caça, não dava tréguas àquelas paragens.
Enquanto nos íamos esgueirando
por entre aquela horda amistosa em busca de um aconchego para o estômago vazio,
um moço mais afoito, com ar estonteado, barba por fazer e gaforina que lhe
escondia totalmente as orelhas, – por entre tragos de cerveja –
abeirou-se de nós e resolveu dirigir-se diretamente ao Luís, de uma forma
insolente, quase provocatória. Aquele, embora sendo um homem temperado por alguma
inflexibilidade no confronto com a irreverência, naquela situação, teve o bom
senso de aceitar o desafio com tolerância, respondendo às questões com a
delicadeza que o momento requeria. Forçando um sorriso, foi colaborando,
pacientemente, com os jovens como se comungasse do mesmo espírito eufórico do
bando, não só em relação aos concursos de pesca, como também no tocante a
excessos e façanhas próprias da juventude que, qualquer de nós, com maior ou
menor intensidade, já há muito vivera.
Mais tarde, aquando do regresso
à viatura, viria a reconhecer que fizera um esforço gigantesco para não reagir
como a situação o justificava, mas atendendo a que o jovem indiciava ter bebido
em excesso, fora preferível não lhe agitar a vasilha para não turvar mais a
bebida.
Por sua vez, João Antunes, ao
seu estilo extrovertido, diluiu-se na multidão não só disparando frases
divertidas sobre pescarias, como também elogiando a coragem dos jovens face ao
frio e à aridez da serra. Também nós, a partir do momento em que nos mostrámos
cooperantes, fomos rodeados por outros forasteiros que, para além de nos
oferecerem bebidas, aproveitavam a nossa presença para levantar questões sobre
alguns aspetos da prática cinegética, apenas por mera curiosidade. No final,
quando João pediu a conta a nossa despesa já estava paga.
Depois de um café quente e de
respondermos a algumas questões sem qualquer rigor técnico, deixámos o
aconchego daquele abrigo e partimos ao encontro da serra nua, onde nos
esperava, naturalmente, a hostilidade própria de uma serra agreste e tempo
inclemente. Desde logo um frio glaciar trazido pelos ventos de nordeste, a
juntar à aridez do terreno.
Quando nos encaminhávamos para o
veículo, ainda envoltos na penumbra que agora se misturava com uma leve neblina
que teimava em não deixar clarear a manhã, José Luís que, entretanto, se
adiantara para fugir à confusão que parecia estar para durar, disse:
– Ouvi um tiro!
– Um tiro? – questionei.
– É verdade! Tudo me leva a acreditar que
tivesse partido do lado dos penedos de Góis!
– Começaram cedo! – afirmei, com a ideia de que
ainda não era possível avistar uma peça de caça a cinco metros de distância.
– Caçadores de estrada. – disse José Luís.
– Pobres coelhos, assim que saem
da toca, começam logo a levar porrada! – disse eu.
– Nós vamos andando com calma
que o tempo está feio e não somos responsáveis por essa guerra! – resmungou João
Antunes, sem dar mais atenção aquilo que, apesar de marginal, era prática
corrente principalmente nas imediações dos povoados.
Na continuação da viagem, dobrámos a Portela
do Vento onde àquela hora, no mesmo sentido, era habitual assistirmos a uma mudança brusca na visibilidade, como se entrássemos
noutra galáxia. No entanto, naquela madrugada, rumámos a nascente a caminho da
Barragem de Santa Luzia sem que tal tivesse acontecido. Em contrapartida,
depois de termos percorrido cerca de um quilómetro, fomos envolvidos por nevoeiro
denso que não fora o veículo estar equipado com faróis apropriados a esse fim
e as linhas brancas que delimitavam as faixas de rodagem estarem bem visíveis e
teria sido quase impossível continuar a viagem.
Apesar das dificuldades, lá
fomos progredindo estrada fora em marcha de caracol, tentando tanto quanto
possível chegar ao destino sem incidentes, pois, nenhum de nós queria virar as
costas à adversidade, mas reconhecíamos que aquela etapa estava a tornar-se
particularmente difícil. Mas nada que já não nos tivesse acontecido noutras
jornadas.
A determinada altura do nosso
percurso, já perto da lomba de Fajão, fomos surpreendidos por uma raríssima
visão, há alguns anos a esta parte, na região. Tratava-se de uma lebre, em carne
e osso, que ziguezagueava veloz pela via à nossa frente. Embora não estivesse a
ser pressionada por mim, depois de ter percorrido duas dezenas de metros e como
se quisesse furtar-se ao nosso veículo, a lebre subiu a barreira que se
elevava íngreme a mais de dois metros de altura. A sua velocidade era tal que
ao aproximar-se do topo esbarrou numa rocha mais saliente e rebolou
sucessivamente até se estatelar na valeta. Repentinamente, levantou-se
estonteada e esgueirou-se na direção oposta sem que algo de mais grave lhe
tivesse acontecido. Foi um episódio que nos divertiu, originando mesmo sonoras
gargalhadas em todos os presentes e que alterou, naturalmente, o rumo da nossa
conversa.
Finalmente, por volta das sete
da manhã, encontrámo-nos com Gervásio que nos aguardava no entroncamento do
Vidual, já próximo da "nossa coutada".
Embora a idade de Gervásio já
lhe impusesse algumas restrições físicas aquele, ainda, gostava de calcorrear os
montes e desfrutar dos momentos que a caça tem de melhor: exercício físico, ar
puro e convívio com a natureza e amigos. Na companhia de seu perdigueiro Braco
e em marcha mais pausada, trilhava quase sempre os terrenos mais acessíveis,
numa espécie de reserva para as dobras, sem nunca esboçar queixume.
Minutos mais tarde, chegámos ao local que
pretendíamos bater na caçada, precisamente o mesmo monte que havíamos calcorreado na
época anterior, situado no cume da serra, nas imediações da Malhada do Rei.
Nessa ocasião, encontrámos uma
serra rude, mas acolhedora, com uma panorâmica a perder de vista, onde as casas
da aldeia situada ao fundo da ravina pareciam reduzidas a vulgares mosquitos.
Era o Olimpo mitológico que gerava um sentimento de liberdade infinita e ao
mesmo tempo uma maravilhosa terapia para o corpo e para a mente, mas onde à
mercê da intempérie vive um Deus enfurecido. Nada que nos intimidasse em demasia, habituados à má sorte e a
sacrifícios de toda a ordem, em algumas etapas da vida.
Para além do Braco do Gervásio,
o Luís e o João faziam-se acompanhar de dois Pointers que, não obstante,
algumas vezes, caçarem demasiado afastados dos donos, tinham um faro apurado e
paravam-se muito bem. No entanto, quando caçavam próximos tornavam-se demasiado
egoístas. Enquanto um se amarrava o outro procurava antecipar-se, acabando na
maioria das vezes por espantar a caça antes que algum de nós tivesse
possibilidade de se aproximar. De facto, contrariamente aos cães podengos que
se adaptam perfeitamente a caçar em matilha, os perdigueiros são muitos
individualistas e por isso devem, tanto quanto possível, trabalhar
isolados.
Enquanto aguardávamos a melhoria
das condições climatéricas, fomos controlando a ansiedade entregues a
pensamentos que se esgotavam no cenário que nos envolvia. Todavia, ao fim de meia
hora, o tempo resolveu dar uma ajuda: o nevoeiro começou aos poucos a
dissipar-se e os raios solares fizeram a sua aparição. Porém, ao sairmos da
viatura, deparámos com uma brisa gélida de nordeste que, para além de nos resfriar
o corpo e fustigar o rosto, também nos dificultava a respiração.
Assim que a visibilidade nos
permitiu, formámos uma linha de quatro e iniciámos o movimento que se alongou pela
grandiosidade daqueles montes, enfrentando com naturalidade não só o tempo
agreste, como também a rudeza da serra. Ora subíamos as encostas íngremes que
nos tornavam a respiração ofegante, ora contornávamos urzes e carquejas que,
expostas ao cieiro prolongado, se assemelhavam a arame farpado. Ou ainda,
descíamos pelos barrocos pedregosos e escorregadios, onde buscávamos as
nascentes para saciar a sede, nossa e dos animais. Sempre que o terreno nos
permitia, caminhávamos em sentido oposto ao vento para que o ruído que
provocávamos não nos denunciasse às presas que buscávamos.
Naquele dia, iniciámos a jornada
de caça numa encosta virada a nascente, refúgio habitual das perdizes em manhãs
de geada. Para se defenderem do frio cortante das noites longas do Inverno, que
se acentua com maior intensidade nas áreas mais baixas, sobem ao cume das
serras, onde esperam pelo aconchego do sol.
Para tentar superar a
inexperiência do Simba, ocupei uma posição entre o João e o Luís, distando
destes cerca de oitenta passos. O Gervásio posicionou-se na orla mais baixa,
onde o terreno e a vegetação proporcionavam um andamento mais cómodo,
aproveitando, ao mesmo tempo, um carreiro que circundava grande parte da
cordilheira e que deixava a nu a altura dos arbustos que o limitavam.
À medida que avançávamos monte
dentro, o meu cachorro lá ia deambulando a poucos metros à minha frente,
farejando e serpenteando o terreno com notada ingenuidade, mas sempre desperto
para tudo o que lhe era estranho. Apesar de ser a sua primeira caçada, buscando
perdizes bravias, movimentava-se com desembaraço e sem perder contacto comigo.
De vez em quando, levantava o nariz e captava os odores, filtrando as
informações trazidas pelo vento, com uma sensibilidade que fazia lembrar um
veterano já familiarizado com a prática cinegética.
A certa altura, o João que ia na
extremidade mais alta e mais avançada, posição que ocupava na maioria das
jornadas, gesticulou em silêncio, alertando-nos para a proximidade das aves. O
seu velho Pointer estava amarrado, algumas dezenas de metros à sua frente.
Perante a situação, ficámos na expectativa do levanto. Logo que aquele se aproximou, as
perdizes saltaram e João disparou dois tiros frenéticos, quase em simultâneo.
Uma prática pouco habitual naquele caçador que, normalmente fazia uma ligeira
pausa entre eles, como se analisasse o resultado, mas que desta vez tivera
êxito. Uma ave perdeu o contacto com o bando e planou cerca de cento e
cinquenta metros, até se despenhar ao fundo de uma ravina, a mais de cinquenta
passos à minha direita. As outras nove equiparavam-se a jatos supersónicos numa
tentativa desesperada para fugirem a um míssil furtivo. Seguiram velozes em voo
rasante encosta abaixo, longe de alcance útil para mais disparos de qualquer de
nós. Ainda a perdiz que fora atingida não tinha chegado ao chão já o Simba
corria ao seu encontro como se procurasse ser o primeiro a apanhar a ave. Lance
que me deixou numa enorme expetativa do resultado da sua intervenção sabendo à
partida que corria o risco de ficar envergonhado perante os companheiros. Tudo
dependia, naturalmente, do destino que o cachorro desse à perdiz até porque
iria ser pressionado pelos outros perdigueiros. Contudo, não tardaria a saber o
resultado. Decorridos poucos segundos, do fundo de um valeiro com vegetação
mais densa, ouvi a voz do Luís que me chegava abafada:
– Simba dá cá a perdiz! Simba dá cá a perdiz!
No mesmo instante, reparei que o
animal estava parado ao cimo de uma ribanceira tentando localizar a minha
posição. Então gritei:
– Simba!... Estou aqui!
De imediato, o cachorro, com a
perdiz na boca e acossado pelo Pointer, arrancou encosta acima ao meu encontro
e veio entregar-ma, com uma tal delicadeza que outro mais experiente não teria
feito melhor.
Como não poderia deixar de ser,
nesse momento, fiquei um pouco embriagado pela forma natural, eu diria que
quase mágica, como o épagneul se comportou e abracei-o com enorme satisfação.
Acho que até o beijei e atendendo à situação, penso que qualquer verdadeiro
caçador o faria.
Minutos mais tarde, quando eu
passava por uma zona mais baixa e sombria, tentando a custo desenvencilhar-me
dos arbustos que se entrelaçavam de uma forma quase impenetrável, fui
surpreendido pelo salto de uma galinhola sem que o cão se tivesse apercebido da
sua presença. O levanto foi tão inesperado que não me permitiu qualquer reação
atempada.
As galinholas são tímidas e
quase inodoras, razão suficiente para não serem facilmente detetadas pelos
perdigueiros. Além disso, fazem a sua viagem migratória até ao nosso clima
durante as noites de outono e abrigam-se normalmente nos bosques sombrios, onde
dificilmente são incomodadas.
Mais adiante, o Simba amarrou-se
junto a um medronheiro que, embora já tivesse o chão coberto de frutos, parecia
um excelente esconderijo para as perdizes. O cachorro estava completamente
imobilizado: cabeça levantada em frente, pescoço esticado, pata dianteira
fletida no ar. Contudo, quando me aproximava pronto para a ação,
fui surpreendido pelo levanto de um pisco – uma pequena ave de bico dentado
que, apesar de selvagem, se movimenta na proximidade do homem – que poisou logo
a seguir, a pouco mais de três metros à minha frente. É claro que, perante isso, me larguei a rir. Quando esperava a descolagem suficientemente rápida e
estridente de perdizes bravias saiu-me uma criatura minúscula, simpática e
frágil, que pouco faltou para poisar no cano da minha espingarda.
A meio da manhã, já o cachorro
se movimentava com visível dificuldade. Não me podia esquecer que era o
primeiro dia que ele enfrentava a dureza daquela serra agreste e como tal não
podia ignorar as suas queixas sob pena de o animal ficar muito tempo inativo.
Mediante isso, observei que tinha várias feridas nas almofadas das patas
dianteiras. Então, subi ao viso e atalhei por uma antiga estrada carreteira,
agora transformada em coutada para alguns caçadores que fazem das viaturas
todo-o-terreno o seu batedor de caça. Porém, a determinada altura, ainda nessa
via, o épagneul avançou alguns metros com o nariz no ar e logo a seguir
amarrou-se. Ainda a pensar no que ele fizera anteriormente, fiquei um pouco
indeciso, mas assim que me aproximei fui surpreendido pelo salto de cinco
perdizes. Aquele foi o primeiro teste do exame que o viria a conotar como um
perdigueiro excelente.
Entretanto, à medida que se aproximava
a hora do almoço, o ar puro da serra reforçava o apetite em cada um de nós. Até
o Gervásio que, em dias de caça, dava maior prioridade à contenda do que
propriamente à refeição, não parava de lembrar aos companheiros que a sua
barriga estava a reclamar uma pausa.
Assim, movidos pelo mesmo
objetivo, seguimos para o local habitual, que se situava perto da saída do
túnel que liga a Malhada do Rei à barragem do Alto Ceira. Um local que se
destinava ao convívio das boas gentes locais e a quem o procurava, dentro dos
princípios básicos do civismo e do respeito pelo património coletivo. Para além
dos sanitários, estava ainda equipado com uma churrasqueira e várias mesas em
madeira, dispostas pelo recinto alcatroado, para que os utilizadores se
sentissem confortáveis. Também não será demais salientar a forma cuidada como a
maioria dos utilizadores preservava aquele espaço.
Quando chegámos ao local onde tomávamos a refeição deparámo-nos, como habitualmente, com outros caçadores e entre os quais estava o Ti Germano que era um homem aprimorado
pelo tempo e pelo seu percurso de vida, tanto culturalmente como na
personalidade. Era também o caçador mais idoso dos que habitualmente
calcorreavam aquelas serranias. Agora, como o peso dos anos ia vincando as suas
marcas, raramente se aventurava pelos terrenos mais áridos, refugiava-se em
áreas abertas de fácil acesso, para não correr riscos que lhe poderiam ser
fatais. Apenas ia respondendo ao apelo da alma mais pelo convívio salutar que
ainda era notado entre muitos caçadores, do que pela busca das peças de caça
que só muito esporadicamente abatia. Embora ainda tivesse um espírito jovial,
já não tinha a robustez física de outros tempos para enfrentar a dureza
daqueles montes, onde passara as melhores e piores etapas da sua vida de
caçador. Melhores porque, para além do convívio e das excelentes caçadas,
conhecera de perto o viver daquelas gentes trabalhadoras e humildes com quem
criara amizades como não imaginara; Piores porque, fora também naquelas
serranias que passara momentos dramáticos aquando se vira a braços com uma
queda que o conduziria ao hospital. Fora também naquela região que manchara o
seu cadastro de caçador, pela simples razão de se ter esquecido dos
documentos da caça. Para os apresentar à fiscalização, deslocou-se à residência
o mais depressa que lhe foi possível, mas nem assim se livrou de uma pesada
punição que lhe viria a causar muitas dores de cabeça. Apesar das
contrariedades que ali vivera, amava aqueles montes como se de um autóctone se
tratasse.
Agora, ali, sob os carvalhos
gigantescos que uma brisa de norte ia ajudando a despir de folhagem e ao som
que chegava da ribeira contígua, onde a corrente de água deslizava de pedra em
pedra num murmúrio ininterrupto, confraternizávamos em desassossego tranquilo.
Enquanto íamos degustando o repasto, os cachorros, de barriga vazia,
recuperavam do esforço despendido, sem o mínimo sinal de protesto. Porém, a
cada momento lançavam, sobre os convivas, um olhar piedoso, na esperança de
que, como era costume, no final alguma coisa lhes coubesse.
Entretanto, o Ti Germano foi
atingido suavemente na face por uma folha que se desprendera de um ramo e por
via disso pareceu despertar dos pensamentos negativos que lhe ocupavam a
mente. Começou por encher os copos expostos sobre a mesa, levou um à boca e
bebeu uma golada. Depois, fez uma pequena pausa como se lhe tomasse o paladar e
exclamou:
– Podem beber sem preocupações
que este é o puro néctar da uva! E sem esperar resposta, prosseguiu:
– Enquanto o nosso amigo João
Antunes acaba de assar as castanhas, vou contar o episódio do meu acidente de
caça que ocorreu aqui ao cimo da serra, já lá vão quase trinta anos:
‘Naquele dia, – começou ele, – por
impossibilidade dos meus habituais companheiros de jornada, embarquei sozinho,
imbuído do mesmo entusiasmo, com destino aqui aos nossos montes serranos. Não
obstante a minha mulher insistir para que eu não saísse de casa sozinho, acabaria por levar a minha vontade por diante apenas na companhia do Boby, o meu velho
perdigueiro. Digo velho porque à data já contava perto de dez anos, mas
continuava a ter um vício e uma agilidade admiráveis. Não sei se algum de vocês
ainda se lembra dele?
– Perfeitamente! – atalhou o Gervásio.
Pois, – continuou o Ti Germano,
– era um híbrido que resultara do cruzamento entre o Perdigueiro Português e o
Pointer! Mistura que à primeira vista pode parecer um pouco estranha, mas nem
por isso deixou de ter as caraterísticas que se exigem a um animal caçador à
pena. Antes pelo contrário, tenho a impressão que os itens comuns à genética
original das duas raças se tornaram ainda mais aprimorados: tanto no porte,
como no faro apurado, no comportamento dócil, na robustez e até na fidelidade
ao dono. Aquilo era o que se poderia chamar um cão de eleição.
É claro que se eu adivinhasse o
que me estava reservado, podem ter a certeza de que nem sequer punha um pé fora
de casa, naquela manhã, por sinal, bastante carrancuda: com vento forte, frio e
a ameaçar chuva. De resto, todos nós que vivemos intensamente a época
venatória, temos um pouco a convicção de que a natureza reserva sempre o mau
tempo para os dias de caça. De qualquer forma, ainda bem que não temos o dom de
adivinho senão a vida perderia, certamente, todo o seu verdadeiro sentido. Mas
voltando àquela malfadada caçada, durante a viagem tudo decorreu normalmente,
contudo, assim que ocupei a minha posição no terreno surgiram os primeiros
pingos de chuva, fria como gelo e que foi um excelente aviso em relação ao
agasalho apropriado à situação. Ora, como o bom tempo se espera no monte,
avancei serra dentro sem preocupações de maior, para além dos cuidados a que a
vegetação densa obriga.
Uma hora depois e após
calcorrear muito terreno, continuava sem ter visto qualquer peça de caça, mas
isso não era motivo para desânimo pois, tinha sempre presente que de um momento
para o outro a sorte poderia mudar. E assim aconteceu. Logo que atingi o dorso
do monte, o meu Boby amarrou-se junto a uma moiteira. Estava tão solene que nem
a pelagem lhe bulia. Perante isso, adiantei-me ao cão e assim que as perdizes
saltaram, deitei uma abaixo. Mas devido à minha precipitação para observar o
destino do resto do bando, nem sequer tive tempo para ver onde aquela caíra,
deixando essa tarefa ao cuidado do cachorro que a cobrar era infalível. Então,
para tentar concretizar os meus intentos corri a dobrar o morro sem levar em
conta as condições do piso rochoso, coberto de musgo, que o tornava ainda mais
escorregadio e paguei bem caro pela imprudência. Assim, tropecei numa rocha
escarpada e quando me tentava apoiar na laje que estava à minha frente,
deslizei rochedo abaixo acabando estatelado no fundo de um barranco. As
consequências só não foram dramáticas porque alguma santa me amparou no momento
do trambolhão, mas, ainda assim, tive múltiplas escoriações e fraturei a perna
direita.
Quando tomei consciência do que
me acontecera, tive a perceção de que já tinha a minha conta. As dores eram
insuportáveis e mal me conseguia movimentar. Como se isto não bastasse, também
não havia ninguém por perto que me pudesse auxiliar. Nesse momento, presenciei
aquilo que nunca imaginara. O meu cão quando se apercebeu do que me tinha
acontecido, começou a ganir à minha volta numa aflição de meter dó e logo a
seguir desatou a correr desaparecendo do meu horizonte visual, sem sequer me
deixar um adeus. Abalou precisamente no instante em que eu mais precisava de
ajuda. Ainda o chamei várias vezes, para que não me abandonasse, mas ele não me
deu ouvidos, seguindo o que o seu instinto lhe ditara.
Incapaz de caminhar, arrastei-me
alguns metros apoiado na espingarda, numa tentativa desesperada para tentar
chegar à estrada, mas os obstáculos eram muitos: desde logo o terreno
acidentado, seguido da distância e da vegetação densa, impregnado de pedras e
troncos que eram verdadeiros obstáculos até para uma pessoa sem dificuldades
físicas, quanto mais para mim atendendo à minha incapacidade. É claro que, ao
fim de meia centena de metros a lutar contra tanta adversidade, acabaria por
perder os sentidos. Quando recuperei, interroguei-me sobre o que me poderia
acontecer se, entretanto, não fosse socorrido.
Naquele tempo não existiam
telemóveis. Encontrava-me no cimo da serra, num ermo que não conduzia a lado
nenhum e onde dificilmente passava alguém: nem habitantes das redondezas, nem
pastores, nem mesmo outros caçadores que só esporadicamente se faziam àquela
colina, talvez receando a dureza do terreno. Sem me deixar resignar pela má
sorte pensei, então, no carro. Sim, o carro via-se de longe e poderia ser a
minha última esperança, logo que dessem pela minha falta. Contudo, ali estava
exposto ao frio e à chuva, onde certamente não resistiria o tempo suficiente
até tal acontecer. Pensava eu naquele momento de aflição.
Enquanto permaneci naquele fim
de mundo, envolto em dor e angústia, fui assaltado por mil pensamentos sobre o
que é na realidade a essência da vida e como de um momento para o outro, o
curso real da nossa existência se pode alterar, de uma forma abrupta, para
sempre. Sonhos e projetos de toda a ordem que podem terminar a qualquer
instante sem que para isso tenhamos sequer direito a um pré-aviso de
advertência, para logo a seguir mergulharmos num esquecimento sem fim. Na
realidade, só valorizamos a saúde e a vida quando tomamos consciência que
estamos em risco de as perder. Como se estes dois vetores não fossem nucleares
e ao mesmo tempo o bem mais precioso de que qualquer um de nós pode possuir.
Ao fim de perto de uma hora, que
me pareceu uma eternidade, qual não é o meu espanto quando fui surpreendido
pelo regresso do meu cão. Atrás dele vinha o Gilberto, um amigo de longa data.
Ao longe até me parecia uma visão fantástica e só à medida que se foram
aproximando é que acreditei que, de facto, era real. Então, eu que já tinha
perdido a esperança de ser encontrado com vida, quando os vi, fiquei de tal
modo feliz que até esqueci as dores e abandonei as minhas cogitações. Estava
salvo.
Só nesse momento fiquei a saber
que o cachorro me abandonara para ir em busca de auxílio. Nunca me perdoarei
por ter duvidado da fidelidade do meu cão!
E do que é que o Boby se havia
de lembrar quando que se apercebeu de que eu estava ferido com gravidade?
Partiu à procura do Gilberto que, coitado, agora já mal sai de casa, mas à
época ainda era um homem robusto e até cultivava uma fazenda nas proximidades!
Para isso, o cão foi direito a essa propriedade onde por sinal, quando eu por
ali passava costumava beber um copo com o Gilberto e que distava da minha
posição cerca de um quilómetro. Então, assim que o encontrou, tentou
despertá-lo para o sucedido. É evidente que o meu amigo conhecia o cão e sabia que
ele era meu. Porquanto, assim que o viu, junto a si, com latidos estranhos,
ocorreu-lhe que algo de anormal havia acontecido. Então, chamou várias vezes
por mim, mas como não obteve qualquer resposta decidiu-se por seguir o
cachorro que o foi conduzindo até ao desterro onde eu me encontrava prostrado.
Isto até custa a acreditar, mas
foi exatamente assim que aconteceu! Como devem imaginar, eu já gostava muito
daquele amigo, fiel e altruísta, mas a partir daí ainda fiquei a gostar mais. É
claro que, mais uma vez se confirma o ditado que, tudo o que é bom tem uma
validade muito limitada e também com o Boby não foi exceção. Na época seguinte,
contraiu a doença provocada pelo mosquito (leishmaniose canina) e foi o fim.
Nessa altura fiquei bastante abalado
com a morte do cão e só não desisti da caça porque cheguei à conclusão que ficar
em casa a lamentar o acontecido seria, ainda, mais doloroso para mim. Até
porque o exercício físico é essencial para manter alguma robustez. – concluiu o
Ti Germano.
– Repare só na crueldade da natureza: um animal
desses nunca devia morrer! – disse o Gervásio.
– A quem o diz, meu velho amigo!... – rematou
resignado o Germano.
Nesse momento, João Antunes
caminhou na direção da churrasqueira, pegou no assador, agitou-o e voltou a
poisa-lo sobre as brasas, bradando:
– Atenção, meus senhores! As castanhas estão
quase a sair!
– Vamos a elas! – exclamaram alguns dos
presentes.
No final do almoço, regressámos
a casa com o sentimento de que o dia passara demasiado depressa, mas desde logo
agendámos novo passeio para o domingo seguinte.