Logo que Norberto Vidreiro e o
jovem Vicente chegaram à povoação da Várzea encaminharam-se para a tasca que era o único estabelecimento que servia refeições num raio de vinte quilómetros.
Embora nunca lá tivessem entrado, tinham boas referências sobre a qualidade da
comida ali confecionada. Apenas um senão, a variedade de pratos estava limitada
ao chamado “prato do dia”, a menos que o menu fosse previamente encomendado. De
qualquer modo, os dois homens não estavam preocupados com isso, queriam matar
a fome fosse qual fosse a ementa.
Para eles a manhã fora longa e
atribulada. Levantaram-se cedo a caminho de um lugar que distava das suas
residências perto de cem quilómetros. Ali, esperava-os trabalho árduo a braços
com a colocação de vidros num edifício em construção. Durante a viagem tiveram
uma avaria no veículo que lhes roubou quatro horas de labuta e nem sequer lhes
permitiu a ingestão do pequeno-almoço. Motivo suficiente para que nesse dia se
sentissem mais esfaimados do que nunca.
O Vidreiro era um antigo atleta
na disciplina do lançamento do peso que, depois de alguns anos de entrega à prática desportiva, se dedicava, agora, em exclusivo à sua
profissão de vidreiro. Era um homem com cinquenta
anos de idade, bem humorado e robusto, que gostava de se alimentar bem. O Vicente era seu empregado.
Tinha dezoito anos e nunca lhe faltava o apetite.
Logo que chegaram ao tasco, sentaram-se à mesa e pediram
duas doses de jardineira que era a ementa do dia. Mas assim que o tasqueiro
colocou as travessas em cima da mesa o Vidreiro olhou-o nos olhos e disse:
- Olhe
que nós pedimos duas doses!
- Exatamente,
estão à sua frente! – respondeu o tasqueiro, também um homem robusto, mas ligeiramente
mais velho.
- Tenho almoçado em muitos locais pelo país e
não só, mas nunca me serviram uma dose tão pobre! O senhor acha que isto é refeição
suficiente para um homem de trabalho? – insistiu Norberto Vidreiro de plena
voz.
- Se quiser mais peça outra dose! Não se
acanhe! A panela está cheia! – respondeu o sexagenário, com cara de quem
esperava a visita dos funcionários do fisco.
- Não, obrigado! Para pagar outra dose é
preferível fazer a viagem de vinte quilómetros e almoçar num restaurante digno
desse nome! – respondeu o Vidreiro, sem alterar o tom de voz.
Ao fim de duas dúzias de
garfadas, ambos ficaram com os pratos vazios. O Vidreiro ainda esteve tentado a
pedir outra dose para o colaborador, que era jovem e tinha necessidade de se
alimentar bem, mas acabaria por desistir depois de ouvir a recusa daquele. Ambos
concordaram num jantar reforçado, aquando de regresso às suas residências.
Mas, a meio da tarde, a fome
voltou para ensombrar a habitual boa disposição dos dois homens e Vidreiro não
se ficou pelas intenções, ordenou ao jovem que fosse comprar qualquer
coisa para o lanche. Em função disso, quando o Vicente se dirigiu ao
tasqueiro e pediu duas sandes, aquele disse:
- Muito
bem! Enquanto eu as preparo, vá perguntar ao seu patrão se amanhã cá vêm
almoçar e diga-lhe que a ementa vai ser favas.
- Eu não gosto de favas. – atalhou o
Vicente.
- Não faz mal, para si preparo um bife com
batatas fritas!
A resposta não tardou muito e
foi afirmativa. Norberto Vidreiro adorava favas e decidiu repetir a experiência
antes de optar por uma alternativa.
Assim, no dia seguinte,
sensivelmente à mesma hora, os dois homens sentaram-se à mesa preparados para
satisfazer o apetite, nem que, para isso, tivessem que pedir doses reforçadas. Depois
de alguns minutos de espera, o tasqueiro, conforme havia acordado, colocou à
frente do jovem um bife de novilho que enchia totalmente o prato e à frente de Vidreiro um tabuleiro a abarrotar de favas. Estavam tão bem empilhadas que, no meio,
formavam uma torre em forma de pirâmide. Pelo volume devia rondar dois quilos.
- Para quem é este vagão de favas? –
questionou Vidreiro, que parecia impressionado com o que via.
- Para o homem de trabalho que está sentado a
essa mesa! Não quero que ele repita aquilo que disse ontem! E como se não
bastasse a reclamação, pronunciou-se em tom audível a outros clientes, pondo em
causa o bom nome desta casa, fruto do trabalho de duas gerações. – respondeu o
tasqueiro, com ar de quem julgava ter ganho a causa.
- Muito bem! Então, traga um jarro de vinho
de litro!
Só depois do sexagenário se
afastar é que Vidreiro tomou consciência do sarilho em que estava metido.
Conhecia a sua capacidade gastronómica, mas nunca se vira perante uma situação
que tinha tudo para ser um desafio provocador. Embora fosse um homem de trato austero
sabia dar o braço a torcer quando a situação o exigia, mas, naquele caso, decidiu
enfrentar a refeição como se travasse uma batalha com o tasqueiro que o serviu,
personalizada na montanha de favas. Não podia permitir que aquele se divertisse
à sua custa.
Depois de várias dezenas de
garfadas e um quarto de hora a comer a pirâmide parecia ainda maior, mas o
Vidreiro estava determinado a concluir a refeição a que se propusera. Pelo
canto do olho, notava que o tasqueiro o tinha sob observação em conluio com
alguns comparsas que se apinhavam ao longo do balcão, mas não dava qualquer
importância aos olhares indiscretos. A determinada altura levantou o braço e o
sexagenário correu na sua direção como se esperasse o anúncio de tréguas. Contudo, a
batalha ainda estava longe do fim. Contentou-se com o pedido de outro jarro
de vinho.
Alheio à guerra das favas,
estava o jovem que, enquanto almoçava, olhava o patrão com o ar divertido
de quem nunca assistira a semelhante façanha.
Apesar de totalmente enfartado,
o Vidreiro continuou a lenta degustação para que as favas se fossem acomodando
o melhor possível. Não tinha pressa. O trabalho podia esperar. Era patrão de si
próprio, não tinha que dar contas a ninguém.
Uma hora mais tarde, o tasqueiro
não resistiu a uma provocação. Abeirou-se da mesa e questionou:
- Então! Gosta das favas?
- Muito! – respondeu o Vidreiro.
- São do meu quintal!
- Olhe! Para lhe ser franco, acho-as bem
confecionadas! No entanto, se não me leva a mal, gostaria de fazer um pequeno
reparo:
- Fale à vontade, homem!
- Acho que a cozinheira se excedeu no tempero!
Tem piripiri a mais! Mas para isso também o senhor arranja solução! Traga-me
mais um jarro de vinho! Tenho a boca a escaldar!
- Meu amigo! Não seja por isso! A pipa está
cheia! Pode beber à vontade! – disse o tasqueiro engolindo em seco a resposta
que não esperava. Logo que chegou atrás do balcão, encheu o jarro e trocou
palavras em surdina com uma senhora que estava junto a si que logo a seguir foi entregar o vinho que ele acabara de encher.
Depois de quase duas horas,
surgiu aquilo que o tasqueiro nunca imaginara. O tabuleiro estava limpo e o jarro vazio. Vidreiro vencera o primeiro combate. O segundo estava reservado
para a digestão de todo aquele excesso de comida e bebida.
Logo a seguir, mal o Vidreiro terminou a
refeição, o sexagenário abeirou-se da mesa e em tom provocatório, questionou:
- E, agora, vai desejar sobremesa?
- Depende do que tiver!
- Hoje, só temos mousse de chocolate! –
respondeu o tasqueiro.
- Nesse caso fica sem efeito! Não me dou bem
com os doces! Traga-me apenas o café e um bagaço bem cheio. Entretanto, pode
fazer a conta que ainda tenho meio-dia de trabalho pela frente.
- Caro amigo! As contas estão feitas! Hoje, é
por conta da casa! Dou-lhes os parabéns! Se de facto for tão bom a trabalhar
como é a comer não há obra que lhe resista.
- Pode crer! Mas eu faço questão de pagar a
minha despesa. – insistiu o Vidreiro.
- Como já lhe disse, hoje a despesa é por
minha conta!
- Nesse caso, obrigado! Mas estava longe de
imaginar de que iria comer um almoço à borla. Ah!... Quando voltar a servir
favas não se esqueça de me avisar! – disse o Vidreiro no momento da despedida,
perante o ar desalentado não só do tasqueiro como, também, dos comparsas que o
rodeavam.
Só quando se levantou é que Vidreiro tomou a verdadeira consciência do exagero em que se metera. A barriga
estava a abarrotar e as pernas teimavam em não lhe obedecer. Mas ele era
resistente e estava mentalizado para as dificuldades que o esperavam. Não
estava em condições de trabalhar, mas também não podia estar parado. O
movimento era essencial para fazer a digestão. Assim, por via disso, o resto
do dia, não parou de caminhar ao longo de uma artéria secundária para não dar a
entender o seu transtorno digestivo. Mas o exagero tinha sido grande e não
havia forma de se livrar daquele enfartamento. A barrigada fora de tal ordem que
se prolongou até ao meio da tarde do dia seguinte, apesar de não mais ter
comido nem bebido.
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