sexta-feira, 12 de julho de 2019

A MINA DAS AGRURAS


Durante o Estado Novo o investimento público no interior serrano era quase inexistente e obras de vital importância para a população, como as relacionadas com o abastecimento de água, distribuição de luz elétrica ou a melhoria das vias de comunicação, só se conseguiam depois de muita insistência e diplomacia junto dos organismos estatais.
Com esse fim em vista, e para apoiar o povo deixado ao abandono, foram criadas muitas coletividades regionalistas, que tinham como divisa estatutária, entre outros valores, “melhorar e engrandecer a sua terra” e os seus dirigentes não se poupavam a esforços para levar por diante obras que, de outra maneira, dificilmente se concretizariam. 
Devido a essa falta de investimento, nos anos sessenta do século passado, algumas aldeias serranas ainda não possuíam água canalizada e Moninho, apesar de se situar junto à EN 112 e perto de Pampilhosa da serra, sede do concelho, era uma delas.
Ali, beber um simples copo de água, cozinhar, lavar a loiça, tomar banho, dar de beber aos animais, regar as plantas e demais utilizações domésticas, sem uma torneira por perto, era um trabalho acrescido para os habitantes da aldeia. Em função disso, a única forma de terem água para essas necessidades diárias era carrega-la, em cântaros e outras vasilhas, desde uma mina que existia ao fundo de um valeiro, nas imediações do povoado, até aos seus lares. Era uma fonte que teve origem com uma escavação, a perder de vista, até às entranhas da terra, de onde brotava água com abundância, mesmo durante o verão. Ali, perto da noite, as donas de casa, depois de terminarem a labuta do campo, onde se ocupavam na agricultura de subsistência, faziam fila para encher cântaros e outras vasilhas. Uma tarefa impensável nos dias que correm, mesmo nos lugares mais desertificados do interior. 
Ora, se não havia água para o consumo doméstico, nem mesmo em fontanários, quando se tratava de realizar uma obra de construção civil, à base de massas de cimento, essa tarefa era ainda mais complicada. Não existia outra alternativa senão carregá-la utilizando os meios compatíveis com as necessidades de consumo. 
Nessa época, durante as férias grandes, André Sargaço, que à data tinha pouco mais de doze anos, foi contratado para aquela aldeia a fim de transportar água para uma obra onde os operários se encarregavam do restauro de uma habitação. Queria comprar uma viola e aceitara trocar uns dias de divertimento e convívio com os amigos, por um trabalho que seria remunerado de acordo com os resultados. No entanto, quando aceitara aquela função estava longe de imaginar o calvário que o esperava. Carregar água de uma mina, que se situava ao fundo de um barroco por um trilho com bastante inclinação, que distava do local cerca de cem metros, não era tarefa agradável, especialmente, para uma pessoa com a sua idade.
No seu primeiro dia de trabalho, logo que se inteirou da função de que fora incumbido, entregou-se à luta de forma dinâmica como se um divertimento se tratasse. 
Começou por carregar dois baldes, de dez litros cada, um em cada mão, cujo líquido se destinava a ir enchendo vários bidões de duzentos litros cada. Mas os primeiros resultados não foram animadores: a subida era íngreme e os braços frágeis depressa começaram a ceder. Para além disso, o desperdício de água provocado pela deslocação em terreno acidentado era considerável. Depois de cada descarga, André Sargaço olhava para o bidão e ao notar que o nível quase não se alterava ficava um pouco desalentado. Mas, logo a seguir, caminhava mais depressa ao encontro de novo carregamento para tentar mostrar serviço e não por em causa a sua capacidade. 
Ao fim de várias deslocações à fonte, concluiu que tinha que arranjar outra forma de transporte menos cansativa e com menor desperdício. Então, pensou em utilizar dois regadores em zinco que eram, parcialmente, protegidos com tampa. Sim, essa parecia ser uma forma de poder caminhar mais depressa e não entornar parte da água. Solução que, embora não fosse a ideal, lhe parecia ser a mais adequada àquele serviço. Com essa ideia em mente, o seu trabalho foi continuando cada vez com maior dificuldade e com paragens mais frequentes para aliviar os braços que não estavam familiarizados com um esforço tão prolongado. 
Enquanto aguardava pela chegada das vasilhas que solicitara e se ia movimentando naquele vai e vem extenuante, pensava nos amigos que, certamente, àquela hora, se encaminhavam para o Poço Escuro para os habituais mergulhos e pescarias. Coisa que, para ele, apesar do calor que se fazia sentir, agora, estava vedado. Logo a seguir, veio-lhe à mente uma história que ouvira a um antigo militar sobre o Forte da Graça em Elvas, para onde aquele fora atirado por motivo de castigo. Segundo contava, os prisioneiros, ali, eram obrigados a carregar um barril meio-cheio de água desde a fonte, no sopé da montanha, até ao Forte situado la bem no topo, e André Sargaço imaginou o sacrifício que aqueles fariam. 
A meio da tarde todo o corpito lhe doía. Como se isso já não fosse suficiente o calor sufocante ainda veio agravar a situação. Para além dos braços também as pernas não queriam colaborar no esforço. Nem mesmo as palavras de incentivo que lhe chegavam das pessoas com quem se encontrava no trajeto lhe davam alento. Embora lhe apetecesse desistir não o podia fazer, por uma questão de princípio, perante o compromisso que assumira.  
No meio daquela azáfama, André Sargaço foi incumbido de se deslocar à taberna, que se situava junto à EN 112, a cerca de duzentos metros da obra, para ir buscar uma mistura de bebidas a que chamavam cervejão. Conforme acordaram, dessa vez, seria constituída por cerveja, gasosa e vinho branco. Uma espécie de refresco, pese embora algum teor alcoólico, que permitia aos trabalhadores ingerir maior quantidade sem se sentirem afetados pela bebida. Então, assim que foi delegado naquele recado sentiu-se aliviado e meteu-se a caminho sem grande pressa porque enquanto tratava daquele assunto folgava os braços e se a água, entretanto, acabasse já tinha uma justificação. Ainda assim, levava na bagagem uma recomendação para que se apressasse no regresso para o refresco não aquecer. 
Assim que chegou à taberna, local onde os trabalhadores se reuniam no final da jorna para tomar uma bebida antes de seguirem aos seus destinos, entregou o garrafão, de cinco litros, ao taberneiro, com a indicação da quantidade e da mistura que pretendia. Aquele que, algumas vezes, bebia em parceria com os clientes, não perdeu tempo e, como se procurasse o melhor vinho para servir bem os fregueses, abriu um garrafão que escolheu entre o amontoado que tinha junto ao balcão, encheu um copo e saboreou uma golada, depois de analisar o néctar esboçou um esgar de satisfação e disse: 
-    Oh rapaz!? Diz ao teu patrão que este vinho é do melhor que há cá na Serra! Portanto, desta vez, não aceito reclamações!
Seguidamente, entregou-se à preparação da mistura adicionando os ingredientes solicitados. Assim que terminou e de acordo com a indicação que, inicialmente, recebera do encarregado da obra, anotou a despesa no livro de registo dos débitos ou livro dos calotes como ele gostava de dizer. E logo a seguir, levou o copo à boca, bebeu o resto vinho e dando ênfase à sua especialidade de enólogo, comentou: 
-    É uma pena misturar vinho desta qualidade com outras zurrapas! Querem boa qualidade e depois estragam tudo: vinho, gasosa e cerveja! – e concluiu: - Não te demores rapaz! Que, com este calor, o cervejão aquece depressa!
Embora não precisasse de recomendações, André Sargaço partiu sem responder ao taberneiro que, por sinal, lhe pareceu já um pouco tocado. Logo que atravessou a EN e entrou no carreiro de atalho à via principal, ladeado pelo emaranhado de acácias mimosas, não resistiu. A sede era muita e resolveu molhar a boca seca. Levantou o garrafão, provou e bebeu uma golada, depois outra bastante mais prolongada até se achar satisfeito e logo a seguir, partiu em passo rasgado ao encontro dos operários que aguardavam o refresco com ansiedade. Enquanto se deslocava, concluiu que era a primeira vez que bebia cervejão e ficou agradavelmente surpreendido dado que lhe soubera melhor que o vinho tinto que, por vezes, provava na adega do seu pai. 
Assim que chegou à obra, depois de servir um copo a cada trabalhador, não se fez rogado, bebeu também a sua parte e logo a seguir voltou à via-sacra que lhe fora reservada. Decorridos alguns minutos, tudo se modificou para melhor: os baldes ficaram mais leves e as pernas deixaram de reclamar. Apesar do calor que se fazia sentir, descia e subia a rampa em marcha mais rápida e assim continuou, com o mesmo empenho, até ao fim da jornada. 
Na madrugada seguinte acordou mal disposto só que não teria sido pela quantidade da bebida, mas pelo facto de não estar habituado a ingerir bebidas alcoólicas. Quando regressava ao trabalho, ainda enjoado, prometeu, a si próprio, não repetir a experiência. Promessa que não viria a cumprir atendendo a que passou a ir à taberna duas vezes por dia e o calor não dava tréguas. 
Logo que chegou à obra, já na presença dos regadores, muniu-se de um pequeno pau para servir de canga à qual, em cada extremidade, juntou um gancho em ferro para pendurar as novas vasilhas. Assim, o peso já recaía sobre as costas e não nos braços como acontecera na véspera. Nos primeiros carregamentos tudo lhe pareceu mais facilitado: andava mais rápido e não tinha desperdício de água, mas com o passar do tempo o cansaço e a saturação acabariam por se manifestar. 
Naquele tempo, na região serrana, o movimento rodoviário era muito reduzido e a passagem de qualquer viatura pela EN despertava a curiosidade dos residentes que, por vezes, atendendo ao tipo de veículo, até davam palpites sobre o nome do condutor e proprietário em causa. Talvez por isso, a meio da tarde, quando André Sargaço se deslocava para a taberna, a fim de se ocupar de mais um refresco, ouviu o som de uma buzina e parou para observar o que se passava quando reparou que aquela se limitava a anunciar a aproximação de um ciclista que se deslocava no sentido Valongo – Moninho. Tratava-se de um cantoneiro que, depois de terminar o seu período de trabalho, se fazia anunciar numa algazarra interminável provocada por uma buzina manual que adaptara à bicicleta. Como diariamente acontecia, tinha paragem obrigatória na taberna onde, repunha os níveis de líquidos, conversava e, quando era provocado, fazia questão de se empenhar na defesa à sua classe. Quando era confrontado com críticas à falta de produtividade dos cantoneiros, que há época eram habituais, para além de contrariar esse ponto de vista, não se cansava de realçar a dureza do seu trabalho enfrentando os humores da natureza, tanto no verão como no inverno. 
Naquele dia, o cantoneiro não perdeu tempo. Quando André Sargaço chegou à taberna já aquele segurava um copo de tinto e falava da sua jornada de trabalho que decorrera debaixo de um sol escaldante na zona do Valongo. Valongo era a área do seu Cantão (área de trabalho que lhe estava destinada) onde lamentava não existirem sombras para se abrigar do sol escaldante nem água fresca para matar a sede.

Para André Sargaço o quotidiano foi decorrendo sem grandes alterações, mas ao fim de duas semanas deixou o trabalho, recebeu o ordenado e foi gozar as merecidas férias.

terça-feira, 23 de abril de 2019

O CACIMBADO NAS TERRAS DO FIM DO MUNDO

Vista aérea do aquartelamento de Gago Coutinho, sede do Comando da Unidade.

                             A propósito das comemorações de mais um aniversário da revolução de 25 de Abril, lembrei-me de um camarada que me acompanhou na guerra colonial.
                            

Passaram muitos anos desde que deixei as matas de Ninda, mas hoje, enquanto remexia o arquivo da minha memória, regressei ao tempo em que calcorreei aquelas terras, lembrando um camarada que me acompanhou em algumas etapas calcando areia minada. Embora se tratasse de uma convivência de, apenas, três meses foi a suficiente para verificar a degradação, física e psicológica, a que a longa servidão o conduzira. Um jovem, como todos nós, a quem roubaram a juventude a troco de interesses que não eram os seus. Então foi assim:
Naquele dia, o meu grupo de combate foi escalado para se deslocar a Gago Coutinho (atual Lumbala) a fim de se ocupar do reabastecimento logístico. Às seis horas da manhã, a coluna composta por quatro Berliets e trinta militares, iniciou a marcha em Ninda, para percorrer cerca de setenta quilómetros de picada cujo percurso, sem incidentes, demorava perto de três horas.
Logo que chegámos à sede da Unidade, o Comandante determinou-me para não regressar a Ninda sem me fazer acompanhar de um Furriel, com alcunha de Cacimbado, que, por motivo de castigo, acabara de chegar do norte de Angola. Com a indicação de que se aquele não acatasse, prontamente, a ordem de marcha teria que ir sob prisão. Ainda tinha seis meses de comissão para cumprir e acreditava que ali, naquele fim de mundo, seria o local mais indicado para expurgar as suas faltas disciplinares. O aumento de tempo na comissão resultara da sua última punição que motivou a transferência para a Unidade a que eu pertencia.
Em face da descrição daquele homem concluí que o bar seria o local mais provável para o localizar. Assim, logo que entrei, deparei-me com um militar que não se enquadrava no escalão etário dos restantes elementos da Unidade. Era um veterano, visivelmente desgastado, que vestia farda número dois com muito uso, dando ideia, à partida, de uma longa vivência como militar. Estava sentado com as pernas apoiadas numa cadeira e na mão segurava um copo com uma bebida que me pareceu Whisky. Sem alterar a postura, logo que encarou comigo, atirou de imediato:
-    Oh maçarico?! Nem penses que me vais levar! Não volto para o mato!
Logo a seguir, antes de me pronunciar, bebeu um trago e levou um cigarro à boca libertando uma baforada aromática a maconha que lhe ocultou, momentaneamente, a cara. Estivera sempre nas piores zonas de guerra devido aos castigos que já ultrapassavam duas dezenas. Com isso, tivera agravamentos sucessivos no tempo de comissão que, nessa data, já excedia quarenta meses. Tinha razões de sobra para estar saturado da guerra e, talvez por isso, parecia ausente da realidade que o rodeava. À medida que me ia aproximando, olhava na minha direção, ria-se e, ao mesmo tempo, sussurrava uma canção que nesse momento passava na rádio. Face ao cenário que se me apresentava, deduzi que não iria ser fácil cumprir aquela missão, mas também não queria optar pela alternativa que o Comandante determinou. Aquele homem já tinha sido violentado demasiadas vezes e apenas me limitei a dizer:
-     Aí é que estamos em desacordo! Não posso regressar a Ninda sem ti. Não há outra solução!
-     Estou farto de guerra! Não volto para o mato! Em Ninda só se safa quem andar com os pés às costas. – pegou no copo e saboreou mais uma golada e mal terminou elogiou o puro néctar do Dimple de doze anos, deu uma sentida gargalhada e exclamou:
-     Oh maçarico?! Esquece a ordem e vem beber um copo comigo! Este é do bom e lá não há disto!
Com alguma paciência e perseverança fui desmontando todos os cenários que ele ia criando para se proteger até o convencer a acompanhar-me. Assim, vinte minutos mais tarde, pegou num pequeno saco com bugigangas e partimos, ainda assim, com paragens frequentes para me questionar sobre a situação que iria encontrar e para acender cigarros que só duravam uma fumaça. Logo que chegámos à parada, ao cruzar com um camarada, arranjou um motivo para regressar ao bar para brindarem à despedida. Naquela fase tudo lhe servia de pretexto para tentar protelar a partida, situação a que anuí depois de contar com a colaboração do militar em causa. Assim depois de um brinde rápido chegámos junto das viaturas. Mas aí, logo que o Cacimbado encarou o Comandante tudo se complicou, estacou e disse em voz alta:
-   Comandante?! Eu não vou para o desterro! As Nep’s dizem que numa zona cem por cento operacional nenhum militar pode andar sem uniforme camuflado e eu não o tenho!
Nesse momento, o Comandante ordenou ao quarteleiro que lhe entregasse um uniforme camuflado. O Cacimbado dirigiu-se, sem pressas, para a arrecadação, na companhia do quarteleiro, de onde viria a sair vinte minutos mais tarde, enfiado num fato desproporcionado ao seu físico: parecia um espantalho e alguns militares riam-se daquela triste figura.
-  Então? Agora já está tudo bem?! – questionou o Comandante, que esperava no mesmo local, visivelmente impaciente. Todavia, o Cacimbado não tinha pressa e ainda guardava mais um trunfo para jogar, tentando por todos os meios, evitar ir para um local que tanto receava e disse:
-    Saiba V.ª Ex.ª. que, como as Nep’s também dizem, numa zona cem por cento operacional nenhum militar pode andar desarmado.
Aí o Comandante ficou, momentaneamente, indeciso avaliando as consequências que daí poderiam resultar, mas, ao fim de alguns segundos, num repente impulsivo, gritou a plenos pulmões:
-   Oh quarteleiro! Dá uma espingarda a este gajo antes que eu lhe parta os cornos! Este cabrão está a gozar comigo!
Enquanto o quarteleiro se deslocava, em passo de corrida, para a arrecadação, o Cacimbado ficou calado e imóvel no meio de uma assembleia de maçaricos, como ele os chamava. Em poucos segundos recebeu a arma devidamente municiada e, com ela, fez a continência ao Comandante, que retribuiu o cumprimento e questionou num tom vincadamente irónico:
-   Oh furriel?! Agora as Nep´s já não dizem mais nada?
Aquele ignorou a pergunta, virou-lhe as costas, subiu para a carroçaria da viatura e deitou-se sobre a sacaria, a caminho de cumprir mais seis meses de comissão. Durante a viagem colaborou, com a sua experiência e estoicismo, na segurança de todo o pessoal e meios.

Três meses mais tarde, numa noite em que eu pernoitava no aquartelamento de Ninda, despertei ao som de um estalido, caraterístico, provocado pelo manobrador da espingarda G3 para introduzir uma munição na câmara. Talvez por via disso e da intranquilidade que ali se vivia, de imediato, como que impelido por uma mola, saltei da cama, agarrei a arma que me fazia companhia junto à cabeceira e abeirei-me da janela para tentar analisar o que estaria a acontecer. Ao fim de alguns segundos de espera, que nunca mais passavam, concluí que o estridor teria sido obra do Cacimbado em mais uma das suas noitadas de vigia como ele costumava dizer.
Embora aquele homem já tivesse uma longa vivência em cenários de guerra, durante a noite, raramente dormia. Acreditava que um ataque ao aquartelamento estaria eminente e a melhor forma de minimizar as consequências seria estar sempre em alerta para não ser apanhado à mão, como tanto receava que acontecesse. Sem dúvida que um ataque de surpresa enquanto a maioria dos militares descansavam poderia ser devastador. E para isso, segundo pensava, nem seriam precisos muitos meios, bastaria que meia dúzia de elementos IN, munidos de armas brancas, se infiltrassem no aquartelamento, iludindo ou eliminando as sentinelas. Aí, os invasores poderiam tirar vantagem, por vários motivos: desde logo pela fragilidade da vedação, a que se juntava a pouca visibilidade do perímetro exterior do aquartelamento e pelo cansaço dos homens de vigia. Isto, para já nas falar das rotinas que, com o passar do tempo, o dispositivo ia mergulhando. No entanto, talvez por receio do IN, as suspeitas daquele ali, nunca se concretizaram.
Com base nessa possibilidade e para tentar preservar a sua integridade física, o Cacimbado passava as noites no bar, a que chamávamos “escape do guerreiro”, com a espingarda acessível à mão. Bebia, fumava, ouvia música e por vezes, enquanto estava sóbrio também chorava. A música fazia-o levitar e transportava-o à terra distante de onde, apesar da sua oposição ao regime e à guerra, fora arrancado quando frequentava o ensino superior. Contudo, só possuía uma cassete com vinte músicas da banda “the Doors” de Jim Morrison, mas em cada noite não se cansava de as ouvir vezes sem conta. Quando a cassete chegava ao fim de um lado virava-a para o outro. Por vezes, trauteava as canções como se fizesse parte da banda e quisesse afugentar as suas angústias que não paravam de o atormentar. À medida que o tempo se alongava ia ficando mais debilitado, mas nem assim abandonava o posto até chegar a alvorada, momento em que o efetivo disponível começava aos poucos a despertar, como se esperasse pelo render da guarda.
A noite estava quente e os mosquitos nem com repelente deixavam de utilizar o ferrão venenoso. Para molhar a boca seca, abandonei a tarimba e percorri a camarata em silêncio para não despertar outros camaradas que ressonavam em uníssono, depois de uma operação na mata que durara cinco dias e quatro noites. Desta vez foram eles, para a próxima seria o meu grupo de combate a partir para outra zona de intervenção. Agora, quando entrei no bar a música habitual não se fazia ouvir e deparei-me com um ambiente de tal modo saturado que mal se via o espaço interior. No entanto, depois de me adaptar à nuvem de fumo, reparei que as garrafas de cerveja, vazias, ocupavam grande parte da mesa junto ao Cacimbado. Ali, não havia preocupações com a arrumação e a contagem dos consumos estava reservada para o faxina do bar, quando este retomasse ao serviço, na manhã seguinte. Num olhar mais detalhado reparei no Cacimbado que estava com o tronco curvado para a frente com o cano da G3 debaixo do queixo e com um dedo encostado ao gatilho. Assim que se apercebeu da minha presença retraiu-se desmontando, rapidamente, a figura que formava. Parecia estar no limite. A sua fragilidade era notória. O cinzeiro estava cheio de beatas. Fumara dois maços de cigarros Hermínios e perdera a conta ao número às cervejas que bebera, mas continuava ali, e agora parecia que se preparava para levar a cabo um ato tresloucado. Quando o questionei sobre como tinha decorrido a vigia, limitou-se a encolher os ombros, mas, alguns segundos depois, acabaria por dizer:
Estava a experimentar tirar a folga ao gatilho!
Seguidamente, sem comentar o assunto que presenciara, abri a velha geleira a petróleo e retirei duas cervejas, uma para mim, outra para o meu camarada. Embora ele não aparentasse ter sede pensei que talvez fosse a melhor forma de começar um diálogo. Assim aconteceu e ali ficámos a conversar até ao romper da aurora em que a família e a crueldade da guerra foram os temas dominantes.
Habitualmente o Cacimbado era de poucas falas, mas agora tinha resolvido desabafar as suas mágoas. Reconhecia que chegara a um beco sem saída e a sua eternização na guerra encaminhava-o para pôr um termo ao sofrimento. Embora, em situação normal, no seu trato quotidiano, tentasse sobreviver a todo o custo, perder a esperança poderia ser a diferença entre o sobreviver ou ficar pelo caminho. Mas ele tinha razão para recear não mais voltar a casa. Pelo menos enquanto o regime político, então vigente, se mantivesse em funções não teria qualquer solução para a sua vida. Porque, quando um homem caía em desgraça e estava a necessitar de auxílio, alguém se encarregava de o empurrar para o abismo. Como fora o caso dessa vez. Tinha acabado de chegar àquele Destacamento, para onde fora transferido por motivo de punição e já lhe chegavam rumores que brevemente iria ser brindado com mais um castigo por não ter acatado, prontamente, a decisão do Comandante. Era assim naquele tempo! Nessa fase o Cacimbado parecia-me física e psicologicamente derrotado.
No dia seguinte, fui informado de que na próxima madrugada iria partir para a mata, numa operação de cinco dias e o Cacimbado, que havia sido integrado no meu pelotão, também fora escalado. No entanto, quando o informei da situação, respondeu:
-     Amanhã, provavelmente, não posso ir! Estou a ficar muito doente! Isto é paludismo!
Quando se aproximava a hora da partida, o Cacimbado deitou-se na tarimba e mandou chamar o enfermeiro alegando que estava doente. O encarregado dos cuidados de saúde dos militares, naquele fim de mundo, apressou-se a observar o doente e concluiria que ele estava com 41.º de febre. Medicou-o com uma droga qualquer e deu-lhe convalescença, com a indicação de que se a febre, entretanto, não baixasse teria que ser evacuado para o posto médico de Gago Coutinho. Ali, o enfermeiro também era médico. Assim, como o militar previra não partiu para o mato.
 Quando regressámos tive conhecimento que, duas horas após a nossa partida, já estava restabelecido. Logo que tive oportunidade não resisti e questionei-o como conseguira tamanho milagre, ao que me respondeu que, um dia, quando fosse embora, me havia de contar.
Entretanto, algum tempo depois, a revolução de 25 de Abril viria a colocar um ponto final no drama do Cacimbado. A punição, que estava na forja, ficaria sem efeito e já não cumpriu o resto do tempo que faltava para terminar a comissão, regressando mais depressa a casa. Mas, na hora da partida, disse-me que quando queria ficar com febre se limitava a introduzir um dente de alho no rabo e logo que retirasse a febre passava. Nunca mais soube nada dele. 












quarta-feira, 21 de novembro de 2018

CRISE NA PERDIZ VERMELHA


Depois de muitas jornadas a calcorrear os montes sou obrigado a concluir que as espécies cinegéticas menores estão em vias de extinção, pelo menos, em algumas regiões de Portugal. Já lá vai o tempo em que coelhos, lebres e perdizes abundavam pelos montados e serranias do interior país, mas por motivos diversos caminham inevitavelmente para o extermínio. Há cerca de uma década, ainda, era frequente encontrar bandos, numerosos, de quinze e dezoito perdizes. Hoje, tudo se modificou para pior. Mesmo em alguns dos, pomposamente, chamados pelos responsáveis políticos de terrenos ordenados, que só são ordenados para emitir as credenciais de acesso, raramente se encontra um bando digno desse nome. Até mesmo casais só esporadicamente se encontram. É mais frequente deparar com perdizes solitárias e isso, não só, significa que a nidificação não se consumou, mas também que o outro elemento do casal terá sido capturado por um qualquer predador.
Para a redução de exemplares estarão, certamente, os muitos perseguidores que têm por esta ave um apetite especial. Para além do javali, raposas, saca-rabos e aves de rapina, que as buscam o tempo todo, o homem pouco tem contribuído para preservar a espécie. Paralelamente a esses, os incêndios e as doenças, também, não lhe têm facilitado a vida. Mas, em minha opinião, o javali é o pior de todos os predadores e o principal responsável pelo declínio das espécies menores que se vem acentuando ano após ano.
Não há dúvida que a desertificação potenciou o terreno para os grandes incêndios que passaram a assolar, periodicamente, todo o interior reduzindo a cinza muitas espécies vegetais e também muitos exemplares animais. Mas a natureza regenera-se e não é por aí que vem o mal maior em relação à perdiz vermelha. Uma ave que dispõe de grande instinto de sobrevivência para fugir às chamas quando estas se propagam durante o dia. Embora acredite que à noite seja mais problemático. Pena é que, após os incêndios, muitos desses terrenos tenham sido ocupados por plantações de eucaliptos que para além dos malefícios para o ambiente alteraram definitivamente o habitat das espécies menores. A desertificação também contribuiu para que muitas terras de semeadura ficassem em pousio, onde as espécies menores se alimentavam. Tudo isso tem contribuído negativamente na sobrevivência das aves.
Por outro lado, nas áreas que não foram castigadas pelos incêndios, o abandono das terras permitiu que os matagais, à mistura com outra invasora que é a acácia mimosa, alastrassem descontroladamente por vastas áreas onde a caça maior se sente no seu habitat natural. Em função desse abandono do interior e aproveitando as condições favoráveis, do terreno e da legislação em vigor, algumas organizações de caça maior promoveram o repovoamento do javali por esses territórios.
Nessa época, uma vez que foi essa a decisão, o javali deveria ter sido limitado a pequenas áreas onde fosse possível controlar a sua implementação, ou seja, em locais guarnecidos por vedação, mas como nada disso aconteceu o resultado não poderia ter sido mais devastador. Todo o interior foi tomado pelo javali. Mais, já são vistos, com frequência, pelo litoral e até na proximidade das grandes cidades. O javali é um invasor que, rapidamente, se multiplicou por todo o território não poupando vinhas, pomares e outras plantações, nem as espécies cinegéticas menores escapam a esse predador selvagem de grande poder destrutivo. Indiferente ao tempo e hora, devora e vira do avesso tudo por onde passa, tanto por terrenos de semeadura como em plena serrania agreste.
Ainda assim, fico espantado quando oiço supostos defensores da natureza que alegam, talvez por interesses ocultos, que há necessidade urgente de preservar o javali. Em meu entender, se é que entendo bem, só será necessário proteger mais o javali, do que já é presentemente, se quiserem fazer do interior do país uma imensa coutada onde o homem não tenha mais lugar para viver. Se é isso que querem estão no caminho certo, embora eu pense que as pessoas deveriam estar em primeiro lugar, porque sem gente a natureza torna-se ainda mais agreste. Este é apenas o meu pensamento porque os grandes crânios têm, como não podia deixar de ser, outra ideia, mas nem sempre baseada no conhecimento do terreno. Mas, entretanto, relatem essa intenção, essa nova forma de encarar a natureza, àqueles resistentes que, ainda, vão tentando zelar por aquilo que é seu e assistem impotentes à destruição do património sem qualquer retorno económico por parte dessas organizações.
Agora, aos heróis que, ainda, vão resistindo, nas aldeias do interior, já não é permitido fazer a agricultura de qualquer tipo, nem mesmo a de subsistência, porque o javali não consente. Nem mesmo nos quintais contíguos aos povoados conseguem que as suas plantações de novidades tenham êxito se não estiverem protegidos por vedação. Em função disso, sem outras armas, só lhes resta a resignação ou rumar a outras paragens deixando o legado dos seus antepassados, fruto de muitos séculos de um trabalho gigantesco, entregue aos invasores de quatro patas.
Atualmente, as perdizes bravias, que ainda vão resistindo, vivem numa intranquilidade permanente. Deixaram de ter habitat devido à perseguição que lhes é movida pelos diversos predadores que não as deixam ter sossego, tanto de dia como de noite. Dificilmente conseguem que a sua reprodução se concretize. E é aqui que reside o problema e não há proteção ou repovoamento que permita inverter a situação enquanto os predadores não forem controlados. De facto, como todos sabemos, sem reprodução não haverá continuidade da espécie. Tudo, porque os ninhos, exclusivamente feitos no solo, não passam incólumes no período de postura de ovos e incubação que dura cerca de vinte e três dias a partir da postura do último ovo. Isso, para já não falar na fragilidade dos perdigotos enquanto estes não conseguem voar situação que só se verifica a partir das seis semanas de vida. Nem os mimetismos da progenitora para se defender e tentar salvar a ninhada dá bons resultados. Com os coelhos e lebres acontece a mesma coisa. As luras não resistem tempo suficiente ao faro apurado dos javalis e têm o mesmo destino, a destruição, e assim não se conseguem reproduzir.

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

MOINHOS DE ÁGUA

         Poço de Pé Carvalho, com os antigos moinhos encarrapitados nos rochedos contíguos.

MOINHOS DE ÁGUA - Obreiros de outros tempos

Em muitas localidades serranas, os moinhos de água serviram muitas gerações de moleiros e foram palco de inúmeras histórias de vida que, mais tarde, preenchiam os serões da aldeia e prendiam a atenção dos mais novos. Algumas reais que ilustravam as agruras dos moleiros, ocasionais, carregando os cereais por incontáveis precipícios que não passavam de carreiros rudes, por veredas e piçarros quase inacessíveis às cabras e muito menos a gente feita burro de carga. Carreiros que começavam logo à saída dos povoados e se prolongavam até aos moinhos que, como era o caso dos do Pé Carvalho, Pampilhosa da serra, distavam cerca de quatro quilómetros. Outras histórias não passavam de fruto da imaginação dos moleiros relatando medos e encantamentos ou situações insólitas com abordagem do sobrenatural. Situações passadas quase sempre à noite, onde supostas bruxas aproveitando a escuridão e os locais ermos, sem horizontes, geralmente afundados entre montanhas, se divertiam a encravar e desencravar os moinhos com a finalidade de exasperar os pobres dos moleiros. Esses, impotentes perante a proximidade das imaginárias criaturas do além refugiavam-se em exorcismos que julgavam apropriados à situação e que, algumas vezes, duravam até ao nascer do dia momento em que todos esses medos se dissipavam.


O que sobra dos moinhos.

A propósito dessas situações insólitas, o Ti António contava o que lhe acontecera certa noite em que pernoitara no moinho de Pé Carvalho para moer dois alqueires de milho.
Nessa ocasião, segundo contava, logo que chegou ao moinho apressou-se a coloca-lo a trabalhar para que a chegada do crepúsculo não lhe dificultasse o acerto da moagem. Assim, depois de concluir que a farinha estava a seu gosto, em termos de espessura, saiu a rua para apanhar um pouco de lenha para a fogueira e mato para improvisar uma espécie de colchão. De regresso ao moinho, logo que a escuridão caiu sobre aquele vale sombrio, preparou a tarimba no espaço disponível ao lado da tremonha. Depois, com a ajuda de uma moita, ateou os troncos de madeira como forma de afugentar ratos e répteis que, por vezes, se movimentavam pelas paredes dos moinhos. Por fim, trancou a porta pronto para se acomodar. Não era um homem medroso, mas não podia esquecer que estava sozinho naquele ermo e nunca seria demais prevenir-se dado que, na época, pela região, o pão era escasso e os furtos de cereais eram frequentes. Por fim, como que embalado pelo crepitar da fogueira, acendeu um cigarro e bebeu um trago de alcoviteira de medronho para lhe ajudar a passar o tempo, mas logo que se deixou cair sobre o colchão improvisado o moinho encravou. A surpresa gelou a alma do Ti António. Já não tinha farinha para cozer a broa e regressar a casa com o milho era uma possibilidade que o atormentava. Então, havia que meter mãos à obra até esgotar as suas capacidades em termos de reparação. Para o tentar desencravar, levantou e baixou, várias vezes, a mó com a ajuda do pau das cunhas e nem sinal de movimento. Logo a seguir, saiu à rua, munido de uma tocha, para observar a cale e verificou que estava cheia de água. Em face disso, pouco havia a fazer, mas, pelo sim pelo não, desceu ao leito da ribeira tentando verificar o que havia acontecido. Logo que se enquadrou com a abertura destinada ao rodizio o moinho arrancou a toda a velocidade ao ponto do Ti António ter sido atingido pelo jato de água libertado pelo movimento da turbina. Quando se preparava para entrar no moinho aquele voltou a encravar. Tudo aquilo acompanhado de gargalhadas estridentes que, ecoaram pela ribeira e, lhe gelaram o espirito. O Ti António para tentar fugir ao abismo de emoções em que ficara mergulhado, gritou e praguejou em todas as direções até ficar totalmente exausto. Por fim, vencido e impotente perante a adversidade, recolheu ao moinho, trancou a porta, espevitou a fogueira, bebeu mais um trago de aguardente e atirou-se sobre as carquejas indiferente à dureza do colchão. Logo a seguir, sem que nada o fizesse prever, o moinho voltou a funcionar, agora, sem mais paragens, até terminar a moagem.

Os moinhos eram edificados em pedra nua de xisto ao longo das margens serpenteadas das ribeiras bordadas, aqui e acolá, por caprichados lameiros de semeadura, ideais para o cultivo de milheirais. Em meados do século XX, na aldeia de Carvalho, talvez uma das maiores produtoras de milho do concelho da Pampilhosa da Serra, existiam doze moinhos de água de utilização comunitária e dois ou três particulares. A utilização comunitária era regulada individualmente através de uma adua, materializada num determinado número de dias ou horas mensais. Situação que não deixava de gerar conflitos entre os usuários, aquando da utilização abusiva ou menos cuidada na conservação. Bastava que qualquer dos deles ultrapassasse os tempos de utilização para logo prejudicar terceiros. Qualquer descuido que deixasse o moinho a trabalhar sem cereal, era suficiente para que as mós de moer o pão ficassem danificadas, dando assim origem a paragens com que não contavam, ao que acrescia a despesa da picagem das mós.
Enquanto a água corria com abundancia pelas ribeiras, normalmente, durante o inverno até meados da primavera, os moinhos trabalhavam sem descanso, dia e noite. Fora dessa época ou durante longos períodos de estio tudo se tornava mais problemático atendendo a que, para além da redução natural dos caudais, o precioso líquido era utilizado na rega dos milheirais e noutras novidades hortícolas. Em função disso a corrente de água, que restava, mal dava para oxigenar trutas, bordalos e enguias que, só muito a custo, se iam esgueirando por entre as pedras e muito menos para fazer mover os moinhos que só trabalhavam com a cale cheia. Assim, só à noite, com a pausa nas regas era possível moer algum cereal. Situação que obrigava, quem necessitasse de farinha, a passar a noite nos moinhos para controlar a moagem face à constante alteração dos caudais. Como era o caso dos moinhos do Pé Carvalho que, atendendo a todas essas contingências a que se juntava a dificuldade de acesso, obrigava a que os moleiros ali passassem a noite em condições muito precárias. Mas a necessidade do pão falava mais alto.
Durante séculos, essas moendas foram o melhor processo de transformar os cereais em farinha. Concretamente, de milho, trigo e centeio, tão necessária à cozedura da broa, indispensável na alimentação das gentes serranas onde, em alguns lares, por falta de outros meios, a comiam quase sem condimentos.
Quando a água não permitia moer os cereais numa determinada localidade, as populações procuravam um moinho, onde quer que funcionasse, independentemente da distância e sujeitando-se à maquia que lhes fosse exigida. Como era o caso das gentes de Carvalho que, confrontados com a falta de farinha, chegavam a ir a Alvares para moer um saco de milho. Percorriam mais de dez quilómetros, carregados como burros, por não haver noutro lugar mais próximo a possibilidade de o fazer.
Hoje, como é sobejamente sabido, os tempos são outros e os moinhos de água perderam a importância que tinham naquela época e como não podia deixar de ser, seguiram a mesma trajetória decadente das terras de semeadura que foram deixadas em pousio. O que não deixa de ser compreensível pois, atendendo a vários fatores onde se inclui a desertificação e a idade avançada dos poucos residentes que ainda vão restando, tornou-se impossível a preservação de todo esse património histórico, bem como o proceder à limpeza das ribeiras, levadas e açudes, como era feita noutros tempos. Assim, depois de muitos anos deixados ao abandono, as estruturas ruíram e as peças com algum valor, como as mós de moer o pão, rumaram a outras paragens onde passaram a ser usadas como meros objetos decorativos. Por via disso, de muitos desses moinhos pouco mais resta do que os escombros e estes, ainda assim, tem sido devorados pela vegetação selvagem que, junto às linhas de água, atingiu proporções quase impenetráveis. Só agora, depois dos incêndios, em alguns locais, é possível ter acesso ao que resta deles. Uma situação que para além de trágica acabaria por, de certo modo, ser benéfica por deixar à vista esses pedaços de história.
Agora, resta aguardar que a natureza viva se refaça e os homens se encarreguem da limpeza das ribeiras, açudes e levadas que as espécies piscícolas muito iriam beneficiar.

Abandono e decadência

sexta-feira, 23 de março de 2018

FUGINDO AO STRESS DA GUERRA




A noite caía sobre as colinas de Sessa. O sol que se escondera por detrás do arvoredo deixava no horizonte um clarão avermelhado que, anunciava a continuação de um tempo tórrido que, naquela época do ano, era muito acentuado. Com a chegada do crepúsculo as sentinelas reforçavam os postos de vigia para a indispensável segurança  e a solidão invadia todo o dispositivo. Por muito resistente que cada homem fosse, era à noite que a sua fragilidade emocional se tornava por demais evidente. Então, enquanto uns se refugiavam no aconchego da camarata outros amontoavam-se na barraca a que chamávamos cantina e ali iam afogando as mágoas até que o cantineiro o permitisse. As constantes recordações das origens também não contribuíam para facilitar a estadia naquele cenário de guerra. Naquela fase do conflito a atividade operacional exigia dos soldados uma resiliência muito para além da sua capacidade, tanto física como psicológica, mas eles lá iam resistindo, como podiam, enfrentando todas as adversidades. 
A última operação fora longa e cansativa. Desenrolara-se ao longo de quatro etapas onde o calor, durante o dia, não dera tréguas e as noites não pararam de se revestir de uma crueldade abismal. Para além do equipamento que carregávamos e que nos dificultava os movimentos em plena selva, ainda tivemos que lutar contra milhões de mosquitos que nos atacavam os olhos, o nariz e os ouvidos com uma sofreguidão insuportável. O terreno, naquela região, era constituído por um misto de mata densa e áreas mais abertas onde, por imperativo de missão, tivemos de rasgar o capim e atravessar chanas com água pela cintura convivendo de perto com répteis e bicharada de toda a espécie. Embora, desta vez, não tenha havido contacto com os rebeldes que, certamente, controlavam os nossos movimentos à medida que íamos progredindo no terreno, o perigo era anunciado em cada momento, desde logo, no chão que pisávamos que escondia minas traiçoeiras preparadas para estilhaçar as pernas das suas vítimas e desmoralizar todo um batalhão. Apesar da nossa juventude, à medida que o tempo ia passando, o desgaste era espelhado em cada rosto. 
Assim, logo que regressámos ao aquartelamento, depois de quatro dias e três noites em constante desassossego, resolvi deixar o, aparente, conforto da camarata e rumar à sanzala. Uma deslocação que eu ansiava há algum tempo, talvez para conhecer de perto o viver indígena que surpreendia pela sua capacidade de sobrevivência, numa terra onde faltava tudo o indispensável. Tratava-se de uma aldeia localizada numa colina perto do rio Sessa e que era constituída por dezenas de palhotas onde se acomodava mais de uma centena de habitantes e que distava dali perto de oitocentos metros. Naquele dia, para além de tentar aliviar o stress e fugir à guerra, queria entregar roupa à lavadeira que havia contratado assim que fui colocado para aquele fim do mundo. Ali, estávamos entregues a uma rotina que nos ia devorando a alma, nos expunha aos perigos, nos castigava o corpo e privava da liberdade, sem direito a contestação de qualquer tipo. Enfim, apesar de tudo, a vida tinha que continuar.
Pela frente, esperava-me uma picada arenosa ladeada por vetação diversa que dificultava a visibilidade para ambos os lados e de onde só podiam surgir surpresas desagradáveis. Mas, convivendo de perto com os riscos que era uma realidade que tínhamos de enfrentar todos os dias, não pensei duas vezes, peguei no saco com a roupa que atestei com cerveja gelada, meti duas granadas ofensivas nos bolsos do camuflado e parti indiferente àquilo que pudesse surgir. As granadas, nesta situação, funcionavam mais como aconchego de espirito de que como arma de defesa, em caso de ataque surpresa de pouco me serviriam, mas, ainda assim, nunca seria demais estar minimamente prevenido. 
Logo à saída, fui alertado pelos funcionários da JAEA, (Junta Autónoma de Estradas de Angola), um ramo da organização que estava sediada em instalações contíguas às nossas, que teceram comentários desencorajadores à minha deslocação. Trabalhavam há muitos anos em zona de guerra, na construção de vias de comunicação, e conheciam muito bem, não só, a forma de atuar dos guerrilheiros como das populações locais. Ainda assim, as suas recomendações não foram suficientes para me levar a mudar de intenção. 
Durante o percurso a escuridão abateu-se, rapidamente, sobre toda a área que me envolvia e com ela a temperatura baixou acentuadamente, nada que não fosse habitual naquela época do ano. Ao longe, eram visíveis pequenos pontos de luz deixados pelas fogueiras que os aldeões acendiam à porta das palhotas e só então tomei consciência da aventura em que me metera. No momento em que acendia um cigarro surgiu na minha proximidade um ruido, inesperado, vindo da mata, que interrompeu os meus pensamentos e provocou em mim um pequeno sobressalto. Receio esse que rapidamente se dissipou ao ver que se tratava de uma gazela em fuga que fora surpreendida com a minha presença. Nesse momento, comecei, então, a equacionar o meu regresso ao aquartelamento logo que terminasse o motivo que me levava à sanzala. Esse sim, seria, certamente, muito mais problemático para a minha condição de homem desarmado e isolado em meio hostil. Até porque os potenciais inimigos que, eventualmente, coabitassem com a população local, para obter logística e informações, ficariam perfeitamente inteirados da minha movimentação, mas agora era tarde demais para fugir à minha insensatez. 
Assim que atingi o perímetro do casario, edificado de forma simples e desordenada, de ambos os lados da rua, numa extensão que devia rondar os duzentos metros, fui saudado com um “moio”, muito efusivo, que me pareceu mais de espanto do que de saudação. O cumprimento partiu de um indígena que se encontrava sentado à porta do kimbo. Parecia o mais velho de um grupo de seis pessoas que saboreavam o jantar à volta da fogueira. De imediato, todos os comensais, interromperam a refeição e ficaram de olhar pregado em mim como se esperassem algo de dramático com a minha chegada. Depois de retribuir a saudação continuei, normalmente, o meu caminho sem demonstrar qualquer intimidação embora a realidade fosse bastante mais cruel. Não podia afastar a ideia de estar a ser observado por elementos inimigos que me podiam intercetar sem que tivesse oportunidade de me defender. Só nesse momento me apercebi do sussurro que se gerava nos populares à medida que ia prosseguindo a marcha sem, no entanto, perceber o seu conteúdo. Do dialeto “canguela” apenas entendia meia-dúzias de palavras e, apesar disso, lá fui avançando até à casa da lavadeira que se situava no extremo oposto da sanzala, relativamente ao meu sentido de deslocação. Embora não fosse um homem medroso fui avançando atento a tudo o que pudesse surgir.
A Teresa lavadeira vivia sozinha e, à semelhança dos outros populares, estava sentada à porta da cubata a preparar o jantar. Uma pequena panela de ferro, escurecida pelo uso prolongado e abraçada pelas chamas, estava apoiada em duas pedras para mais facilmente ficar exposta ao calor. A ementa era fuba, um prato tradicional da região. Num outro recipiente, encostado às brasas, preparava o molho que, segundo fui informado, era elaborado a partir de carne de galinha. A rapariga, apesar dos seus trinta e oito anos de idade e de algumas rugas que lhe davam ar de mulher madura, prendia a atenção de qualquer homem. Eu diria que até mesmo noutras circunstâncias e bem longe de tantas privações. Vestia saia cintada e blusa garrida que davam destaque ao seu corpo elegante e bem torneado. Não obstante o sotaque africano, falava português quase na perfeição. O seu antigo companheiro morrera quando desempenhava uma missão de pisteiro e ela, agora, numa terra onde não existiam oportunidades de trabalho remunerado, ia sobrevivendo do cultivo das lavras e dos trocos que recebia de cuidar da roupa de alguns militares. Ali, confrontada pela minha presença, àquela hora tardia, pareceu-me um pouco embaraçada e cumprimentou-me num murmúrio quase indecifrável. Parecia que queria ocultar da vizinhança aquilo que dizia. Durante a noite não era habitual os militares se movimentarem pela aldeia e talvez por isso a minha presença tenha causado tanta apreensão nos moradores.
Com os olhos adaptados à penumbra que envolvia a sanzala, localizei facilmente um tronco que arrastei para me sentar junto à fogueira. Depois de acender um cigarro, para tentar disfarçar o meu embaraço, comecei por me justificar com a necessidade urgente de roupa limpa. Devo confessar que, nesse momento, tive o pressentimento de que devassava a intimidade de toda aquela gente. Era como se tivesse entrado numa casa comunitária sem ser convidado, mas também reconheci que já não era possível fugir a isso. Então, abri o saco e tirei duas cervejas que abri de imediato, entreguei uma à lavadeira e segurei outra, como forma de partir o gelo que, aparentemente, se instalara com a minha presença. Logo que refrescámos a garganta ela aconchegou as brasas para espevitar a chama, pegou na colher de pau e mexeu a fuba até o jantar ficar pronto. No final ofereceu-me da sua comida que, por delicadeza, não pude recusar. 
O tempo foi passando e quando demos por isso a maioria dos habitantes tinham recolhido à privacidade das suas casas. As fogueiras, aos poucos, iam sucumbindo e a sanzala ficava mais escura e abandonada. O sussurro ia dando lugar ao silêncio apenas quebrado por ruídos indecifráveis que chegavam da mata contígua e onde se movimentava bicharada de muitas espécies. Enquanto isso acontecia, entreguei-me ao prazer de mais um cigarro e no intervalo de uma baforada concluí que estava na hora de tomar uma decisão: regressar ao aquartelamento ou aceitar o convite que Teresa, entretanto, me fizera para pernoitar na sua casa. Qual seria a melhor decisão? Ambas me pareciam arriscadas! Mas viver ali, naquele ambiente agreste, era um risco permanente. Portanto, regressar à base seria, certamente, um alvo fácil, mas ficar na sanzala também se tornava arriscado, pensamento assente em relatos, de outros locais e, de situações idênticas em que militares, indefesos, foram surpreendidos e atacados por criminosos. No entanto, sem grande alternativa, optei pelo convite, mas ficámos mais um instante no aconchego da fogueira indiferentes a tudo o que nos rodeava. Em aconchego nostálgico, falámos do nosso quotidiano, das minhas saudades da terra distante, da esperança em melhores dias e de coisas sem importância como se, entre nós, existisse uma grande intimidade. Como eu ansiara por um momento assim, esquecendo, temporariamente, o quotidiano de guerra e trazendo à ribalta aquilo que nos ia prendendo à vida. 
Quando concluímos que naquele labirinto de cubatas não se vislumbrava vivalma, resolvemos recolher à privacidade do lar onde Teresa se acomodava. A casa era rudimentar como a generalidade das habitações da aldeia. Construída com paus e capim, com paredes revestidas a barro. Mas, apesar desse aparente desconforto nenhum de nós, naquele momento, se mostrava exigente. Existia uma calorosa cumplicidade e isso, agora, era suficiente. Logo que nos encontrámos no interior, a rapariga acendeu um candeeiro a petróleo que deixou a nu o espaço exíguo que ocupava, cerca de dez metros quadrados, que era constituído por piso térreo onde se destacava um baú em madeira tosca e uma tarimba apoiada em quatro troncos e ainda, um caniço, uma espécie de primeiro andar que funcionava como arrumação. Nesse momento, a minha preocupação centrou-se na porta que, em meu entender, oferecia fraca resistência contra qualquer intruso que tentasse invadir a nossa intimidade. Então, para além de a trancar com o fecho apropriado, utilizei o baú para a bloquear na perspetiva de obter uma maior segurança. Apesar dos riscos que corríamos, ficámos longe de olhares indiscretos e entregues à volúpia como se aquela fosse a última noite das nossas vidas. 
Assim, na madrugada seguinte, aproveitando a madorra em que a sanzala estava mergulhada, regressei ao aquartelamento sem que nada de grave me tivesse acontecido e pronto para mais uma etapa que me fosse destinada.