A
noite caía sobre as colinas de Sessa. O sol que se escondera por detrás do
arvoredo deixava no horizonte um clarão avermelhado que, anunciava a
continuação de um tempo tórrido que, naquela época do ano, era muito acentuado.
Com a chegada do crepúsculo as sentinelas reforçavam os postos de vigia para a
indispensável segurança e a solidão invadia todo o dispositivo. Por muito
resistente que cada homem fosse, era à noite que a sua fragilidade emocional se
tornava por demais evidente. Então, enquanto uns se refugiavam no aconchego da camarata outros amontoavam-se na barraca a que chamávamos cantina e ali iam afogando as mágoas até que o cantineiro o permitisse. As
constantes recordações das origens também não contribuíam para facilitar a estadia naquele cenário de guerra. Naquela fase do conflito a atividade operacional exigia dos soldados uma resiliência muito para
além da sua capacidade, tanto física como psicológica, mas eles lá iam
resistindo, como podiam, enfrentando todas as adversidades.
A
última operação fora longa e cansativa. Desenrolara-se ao longo de quatro
etapas onde o calor, durante o dia, não dera tréguas e as noites não pararam de se revestir de uma crueldade abismal. Para além do equipamento que carregávamos
e que nos dificultava os movimentos em plena selva, ainda tivemos que lutar
contra milhões de mosquitos que nos atacavam os olhos, o nariz e os ouvidos com
uma sofreguidão insuportável. O terreno, naquela região, era constituído por um
misto de mata densa e áreas mais abertas onde, por imperativo de missão,
tivemos de rasgar o capim e atravessar chanas com água pela cintura convivendo de perto com répteis e bicharada de toda a espécie. Embora, desta
vez, não tenha havido contacto com os rebeldes que, certamente, controlavam os
nossos movimentos à medida que íamos progredindo no terreno, o perigo era
anunciado em cada momento, desde logo, no chão que pisávamos que escondia minas
traiçoeiras preparadas para estilhaçar as pernas das suas vítimas e
desmoralizar todo um batalhão. Apesar da nossa juventude, à medida que o tempo
ia passando, o desgaste era espelhado em cada rosto.
Assim,
logo que regressámos ao aquartelamento, depois de quatro dias e três noites em constante desassossego, resolvi deixar o, aparente, conforto da camarata e rumar
à sanzala. Uma deslocação que eu ansiava há algum tempo, talvez para conhecer
de perto o viver indígena que surpreendia pela sua capacidade de sobrevivência, numa terra onde faltava tudo o indispensável. Tratava-se de uma aldeia localizada numa colina perto do rio Sessa e que era constituída por
dezenas de palhotas onde se acomodava mais de uma centena de habitantes e que
distava dali perto de oitocentos metros. Naquele dia, para além de tentar
aliviar o stress e fugir à guerra, queria entregar roupa à lavadeira que
havia contratado assim que fui colocado para aquele fim do mundo. Ali, estávamos entregues a uma rotina que nos ia devorando a alma, nos expunha aos perigos,
nos castigava o corpo e privava da liberdade, sem direito a contestação de
qualquer tipo. Enfim, apesar de tudo, a vida tinha que continuar.
Pela
frente, esperava-me uma picada arenosa ladeada por vetação diversa que
dificultava a visibilidade para ambos os lados e de onde só podiam surgir surpresas desagradáveis.
Mas, convivendo de perto com os riscos que era uma realidade que tínhamos de
enfrentar todos os dias, não pensei duas vezes, peguei no saco com a roupa que
atestei com cerveja gelada, meti duas granadas ofensivas nos bolsos do
camuflado e parti indiferente àquilo que pudesse surgir. As granadas, nesta
situação, funcionavam mais como aconchego de espirito de que como arma de
defesa, em caso de ataque surpresa de pouco me serviriam, mas, ainda assim, nunca seria demais estar minimamente prevenido.
Logo
à saída, fui alertado pelos funcionários da JAEA, (Junta Autónoma de Estradas
de Angola), um ramo da organização que estava sediada em instalações contíguas às nossas, que
teceram comentários desencorajadores à minha deslocação. Trabalhavam há muitos
anos em zona de guerra, na construção de vias de comunicação, e conheciam muito
bem, não só, a forma de atuar dos guerrilheiros como das populações locais.
Ainda assim, as suas recomendações não foram suficientes para me levar a mudar de intenção.
Durante
o percurso a escuridão abateu-se, rapidamente, sobre toda a área que me
envolvia e com ela a temperatura baixou acentuadamente, nada que não fosse habitual naquela época do ano. Ao longe, eram visíveis pequenos pontos de luz deixados
pelas fogueiras que os aldeões acendiam à porta das palhotas e só então tomei
consciência da aventura em que me metera. No momento em que acendia um cigarro
surgiu na minha proximidade um ruido, inesperado, vindo da mata, que interrompeu
os meus pensamentos e provocou em mim um pequeno sobressalto. Receio esse que
rapidamente se dissipou ao ver que se tratava de uma gazela em fuga que fora surpreendida com a minha presença. Nesse momento, comecei, então, a equacionar o meu
regresso ao aquartelamento logo que terminasse o motivo que me levava à
sanzala. Esse sim, seria, certamente, muito mais problemático para a minha
condição de homem desarmado e isolado em meio hostil. Até porque os potenciais
inimigos que, eventualmente, coabitassem com a população local, para obter logística e
informações, ficariam perfeitamente inteirados da minha movimentação, mas agora
era tarde demais para fugir à minha insensatez.
Assim
que atingi o perímetro do casario, edificado de forma simples e desordenada, de
ambos os lados da rua, numa extensão que devia rondar os duzentos metros, fui
saudado com um “moio”, muito efusivo, que me pareceu mais de espanto do
que de saudação. O cumprimento partiu de um indígena que se encontrava sentado à
porta do kimbo. Parecia o mais velho de um grupo de seis pessoas que saboreavam o jantar à
volta da fogueira. De imediato, todos os comensais, interromperam a refeição e
ficaram de olhar pregado em mim como se esperassem algo de dramático com a
minha chegada. Depois de retribuir a saudação continuei, normalmente, o meu
caminho sem demonstrar qualquer intimidação embora a realidade fosse bastante
mais cruel. Não podia afastar a ideia de estar a ser observado por
elementos inimigos que me podiam intercetar sem que tivesse oportunidade de me
defender. Só nesse momento me apercebi do sussurro que se gerava nos populares
à medida que ia prosseguindo a marcha sem, no entanto, perceber o seu conteúdo. Do
dialeto “canguela” apenas entendia meia-dúzias de palavras e, apesar disso, lá
fui avançando até à casa da lavadeira que se situava no extremo oposto da
sanzala, relativamente ao meu sentido de deslocação. Embora não fosse um homem
medroso fui avançando atento a tudo o que pudesse surgir.
A
Teresa lavadeira vivia sozinha e, à semelhança dos outros populares, estava
sentada à porta da cubata a preparar o jantar. Uma pequena panela de ferro, escurecida pelo uso
prolongado e abraçada pelas chamas, estava apoiada em duas pedras para mais
facilmente ficar exposta ao calor. A ementa era fuba, um prato tradicional da região.
Num outro recipiente, encostado às brasas, preparava o molho que, segundo fui
informado, era elaborado a partir de carne de galinha. A rapariga, apesar dos
seus trinta e oito anos de idade e de algumas rugas que lhe davam ar de mulher
madura, prendia a atenção de qualquer homem. Eu diria que até mesmo noutras circunstâncias e bem longe de tantas privações. Vestia saia cintada e blusa garrida que davam
destaque ao seu corpo elegante e bem torneado. Não obstante o sotaque africano,
falava português quase na perfeição. O seu antigo companheiro morrera quando
desempenhava uma missão de pisteiro e ela, agora, numa terra onde não existiam
oportunidades de trabalho remunerado, ia sobrevivendo do cultivo das lavras e
dos trocos que recebia de cuidar da roupa de alguns militares. Ali, confrontada
pela minha presença, àquela hora tardia, pareceu-me um pouco embaraçada e
cumprimentou-me num murmúrio quase indecifrável. Parecia que queria ocultar da
vizinhança aquilo que dizia. Durante a noite não era habitual os militares se
movimentarem pela aldeia e talvez por isso a minha presença tenha causado tanta
apreensão nos moradores.
Com
os olhos adaptados à penumbra que envolvia a sanzala, localizei facilmente um tronco que
arrastei para me sentar junto à fogueira. Depois de acender um cigarro, para
tentar disfarçar o meu embaraço, comecei por me justificar com a necessidade
urgente de roupa limpa. Devo confessar que, nesse momento, tive o
pressentimento de que devassava a intimidade de toda aquela gente. Era como se
tivesse entrado numa casa comunitária sem ser convidado, mas também
reconheci que já não era possível fugir a isso. Então, abri o saco e tirei duas
cervejas que abri de imediato, entreguei uma à lavadeira e segurei outra, como
forma de partir o gelo que, aparentemente, se instalara com a minha presença.
Logo que refrescámos a garganta ela aconchegou as brasas para espevitar a chama, pegou na colher de pau e mexeu a fuba até o jantar ficar pronto. No final ofereceu-me da sua comida que, por delicadeza, não
pude recusar.
O
tempo foi passando e quando demos por isso a maioria dos habitantes tinham
recolhido à privacidade das suas casas. As fogueiras, aos poucos, iam sucumbindo e a sanzala
ficava mais escura e abandonada. O sussurro ia dando lugar ao silêncio apenas
quebrado por ruídos indecifráveis que chegavam da mata contígua e onde se movimentava bicharada de muitas espécies. Enquanto isso
acontecia, entreguei-me ao prazer de mais um cigarro e no intervalo de uma
baforada concluí que estava na hora de tomar uma decisão: regressar ao
aquartelamento ou aceitar o convite que Teresa, entretanto, me fizera para
pernoitar na sua casa. Qual seria a melhor decisão? Ambas me pareciam arriscadas!
Mas viver ali, naquele ambiente agreste, era um risco permanente. Portanto,
regressar à base seria, certamente, um alvo fácil, mas ficar na sanzala também
se tornava arriscado, pensamento assente em relatos, de outros locais e, de
situações idênticas em que militares, indefesos, foram surpreendidos e atacados
por criminosos. No entanto, sem grande alternativa, optei pelo convite, mas
ficámos mais um instante no aconchego da fogueira indiferentes a tudo o que nos
rodeava. Em aconchego
nostálgico, falámos do nosso quotidiano, das minhas saudades da terra distante, da esperança em melhores dias e de
coisas sem importância como se, entre nós, existisse uma grande intimidade. Como eu
ansiara por um momento assim, esquecendo, temporariamente, o quotidiano de
guerra e trazendo à ribalta aquilo que nos ia prendendo à vida.
Quando
concluímos que naquele labirinto de cubatas não se vislumbrava vivalma,
resolvemos recolher à privacidade do lar onde Teresa se acomodava. A casa era
rudimentar como a generalidade das habitações da aldeia. Construída com paus e capim, com
paredes revestidas a barro. Mas, apesar desse aparente desconforto nenhum de
nós, naquele momento, se mostrava exigente. Existia uma calorosa cumplicidade e
isso, agora, era suficiente. Logo que nos encontrámos no interior, a rapariga
acendeu um candeeiro a petróleo que deixou a nu o espaço exíguo que ocupava,
cerca de dez metros quadrados, que era constituído por piso térreo onde se
destacava um baú em madeira tosca e uma tarimba apoiada em quatro troncos e
ainda, um caniço, uma espécie de primeiro andar que funcionava como arrumação.
Nesse momento, a minha preocupação centrou-se na porta que, em meu entender,
oferecia fraca resistência contra qualquer intruso que tentasse invadir a nossa
intimidade. Então, para além de a trancar com o fecho apropriado, utilizei o
baú para a bloquear na perspetiva de obter uma maior segurança. Apesar dos
riscos que corríamos, ficámos longe de olhares indiscretos e entregues à
volúpia como se aquela fosse a última noite das nossas vidas.
Assim,
na madrugada seguinte, aproveitando a madorra em que a sanzala estava
mergulhada, regressei ao aquartelamento sem que nada de grave me tivesse
acontecido e pronto para mais uma etapa que me fosse destinada.
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